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A DESTRUIÇÃO DA CAMADA PROTETORA

No documento Schumpeter Capitalismo Socialismo Democracia (páginas 169-175)

PODERÁ SOBREVIVER O CAPITALISMO?

II. A DESTRUIÇÃO DA CAMADA PROTETORA

Estudamos, até agora, os efeitos do processo capitalista sobre as bases econômicas da camada superior da sociedade capitalista e a posição e prestígio social de que ela goza. Esses efeitos, todavia, se estendem ao quadro institucional que os protege. Ao debater o assunto, usaremos o termo na sua acepção mais vasta, de maneira a incluir não apenas as instituições legais, mas as atitudes do público e a própria política.

1. A evolução capitalista destruiu, em primeiro lugar, ou fez o possível para destruir, o sistema institucional do mundo feudal — o castelo, a aldeia e a corporação de artesãos. Os fatos e o mecanismo em que se desenrolou esse processo são por demais conhecidos para justificar uma longa análise. A destruição se processou através de três maneiras. O mundo artesão foi

destruído principalmente pelos (170) efeitos automáticos da concorrência desfechada pelo empresário capitalista. A ação política, visando à eliminação de organizações e regimes atrofiados, produziu resultados apenas nominais. O mundo do senhor feudal e do camponês sucumbiu primariamente sob os efeitos da ação política e, em alguns casos, revolucionária, limitando-se o capitalismo a dirigir as transformações adaptáveis, digamos, do sistema agrícola feudal alemão, para as unidades de produção agrícola de larga escala. Mas juntamente com essas revoluções industriais e camponesas ocorreu uma mudança não menos revolucionária na atitude habitual das autoridades legislativas e da opinião pública. Juntamente com a velha organização econômica desapareceram os privilégios econômicos e políticos de classes e grupos que outrora nele desempenhavam papel de destaque, particularmente as isenções de impostos e prerrogativas políticas da nobreza latifundiária, gentis-homens e clero.

Economicamente, tudo isso significou o rompimento de muitas cadeias e a demolição de outras tantas barreiras para a burguesia. Politicamente, a substituição de uma ordem na qual o burguês era súdito humilde por outra mais coerente com sua mente racionalista e interesses imediatos. Mas, examinando o processo do ponto-de-vista que hoje prevalece, o observador pode-se perguntar se, em última instância, essa emancipação completa foi boa para a burguesia e para o seu mundo. O fato é que as cadeias não apenas limitavam, mas também protegiam. Antes de prosseguir no nosso estudo, devemos esclarecer e estudar cuidadosamente esse ponto.

2. O processo relacionado com o surgimento da burguesia capitalista e dos Estados nacionais produziu, nos séculos XVI, XVII e XVIII, uma estrutura social que nos pode parecer híbrida, mas que não o era mais, ou mais passageira, do que qualquer outra. Examinemos, por exemplo, o grande exemplo que nos é dado pela monarquia de Luís xiv. O poder real havia subjugado a nobreza latifundiária, mas ao mesmo tempo a conciliava com o oferecer empregos e pensões e aceitar condicionalmente a sua pretensão a uma posição de liderança ou preeminência. O mesmo poder real havia subjugado e se aliado com o clero*. (* O galícanismo nada mais era que um reflexo ideológico dessa situação.) E, finalmente, havia fortalecido seu

poder sobre a burguesia, o antigo aliado na luta contra os magnatas territoriais, protegendo e dinamizando suas empresas para explorá-las depois com melhores resultados. Os

camponeses e o pequeno proletariado industrial foram dirigidos, explorados e protegidos de maneira idêntica pela autoridade pública — embora a proteção, no caso do ancien regime francês, fosse menos visível do que na Áustria de MARIA TERESA OU (171) JOSÉ II — e, por extensão, pelos latifundiários e industriais. Não tínhamos aqui simplesmente um governo no sentido do liberalismo do século XIX, isto é, uma entidade social que existia para o desempenho de umas poucas funções que seriam financiadas com um mínimo de renda pública. Por princípio, a monarquia tudo dirigia, das consciências às padronagens das fábricas de seda de Lyons e procurava, financeiramente, tirar o máximo de renda. Embora o soberano jamais fosse realmente absoluto, a autoridade pública presidia a todas as atividades.

O diagnóstico correto desse sistema tem a máxima importância para o nosso estudo. O rei, a corte, o exército, a Igreja e a burocracia viviam cada vez mais à custa das rendas criadas pelo processo capitalista. Até mesmo as fontes puramente feudais de renda eram ingurgitadas em conseqüência do desenvolvimento capitalista da época. E cada vez mais, além disso, a política interna e externa e as transformações nas instituições eram modeladas para se adaptarem e acelerarem esse desenvolvimento. Dessa maneira, os elementos feudais na estrutura da chamada monarquia absoluta podem ser classificados apenas como atávicos. Na verdade, esse seria o diagnóstico que se adotaria à primeira vista.

Aprofundando nossa análise, no entanto, descobrimos que esses elementos significam algo mais do que isso. A armação de aço dessa estrutura consistia ainda de material humano da sociedade feudal, material esse que ainda se comportava de acordo com normas pré-- capitalistas. Congestionava as repartições públicas, fornecia os quadros do exército, formulava política, funcionava, enfim, como uma classe dirigente, e, embora levando em conta os interesses burgueses, procurava deles se diferenciar. A figura dominante, o soberano, era rei pela graça de Deus. Mas a base da sua posição era feudal, não apenas no sentido histórico, mas sociológico também, não importa o quanto se aproveitasse das possibilidades econômicas oferecidas pelo capitalismo. É isto era mais do que atavismo. Tratava-se de uma simbiose ativa de duas camadas sociais, uma das quais sem dúvida apoiava a outra economicamente, mas por seu turno era apoiada politicamente. Seja o que pensarmos dos êxitos ou deficiências desse arranjo, tenha ou não o próprio burguês dele desconfiado mais cedo ou mais tarde, assim como os ociosos e folgazões aristocratas,

constituía ele ainda assim a essência daquela sociedade.

3. E apenas daquela sociedade? O curso subseqüente dos acontecimentos, melhor exemplificados pelo caso inglês, sugere a resposta. O elemento aristocrático continuou a mandar no poleiro até o fim do período do capitalismo puro e vigoroso. Não há dúvida (172) de que esse elemento, embora em nenhum lugar de maneira tão-eficiente como na Inglaterra, absorveu os cérebros da outra camada, que se desviariam normalmente para a política, tornou-se representante dos interesses burgueses e por eles lutou. Teve, evidentemente, de renunciar aos seus últimos privilégios legais, mas, a despeito disso e por objetivos que não eram mais os seus, continuou a dirigir a máquina política, a administrar o Estado e a governar.

A parte economicamente ativa da camada burguesa não ofereceu muita resistência a esses fenômenos. De maneira geral, esse tipo de divisão do trabalho era-lhes conveniente e os agradava. Nos casos em que se revoltaram ou assumiram o poder político sem violência, não deram qualquer exemplo excepcional de arte de governar e não se manifestaram capa2es de manter a posição conquistada. Não se sabe se é realmente justa a suposição de que esses fracassos se deveram simplesmente à falta de oportunidade de adquirir experiência e, com ela, as atitudes de classe dominante.

Não foi esse o caso. Há uma razão muito mais fundamental para esses fracassos, entre os quais podíamos citar como exemplo as experiências francesa e alemã com as tentativas burguesas de dominar, uma razão que se tornará mais clara se contrastarmos as figuras do industrial e comerciante com o senhor medieval. A profissão desse último não apenas o qualificava admiravelmente para a defesa dos seus próprios interesses de classe, pois era capaz de defendê-los até fisicamente, mas também porque o envolvia com uma auréola e o tornava líder. A segunda era importante, mas muito mais ainda era o encanto místico e o ar senhorial, aquela habilidade e hábito de comandar e ser obedecido, envolvido num prestígio reconhecido por todas as classes da sociedade e em cada estação da vida. Esse prestígio-era tão grande e a atitude tão útil, que a posição da classe sobreviveu às condições sociais e tecnológicas que a produziram e se mostrou adaptável, através de uma transformação da função da classe, a con- dições econômicas e sociais inteiramente diferentes. Com a maior facilidade e graça, os lordes e cavaleiros se metamorfosearam em cortesãos, administradores, diplomatas, políticos e

funcionários de um tipo que nada tinha a ver com o cavaleiro medieval. E, fenômeno- extraordinário quando nele pensamos, um resto daquele velho prestígio sobrevive até hoje e impressiona não apenas as mulheres.

Justamente o oposto ocorre com o industrial e o comerciante. Não os vemos certamente cercados por qualquer vestígio de auréola mística, que é justamente o fator importante quando se trata de dirigir homens. A Bolsa é um pobre substituto para o Santo Graal. Dissemos acima que o industrial e o comerciante, na medida em que (173) são também empresários, desempenham também a função de líderes. Mas a liderança econômica desse tipo não se expande prontamente, como a liderança militar do lorde medieval para a liderança de uma nação. Pelo contrário, o Diário e o cálculo de custo absorvem e limitam.

Referirno-nos alhures ao burguês como pessoa racionalista e não-heróica. Defendendo a sua posição ou dobrando a nação de acordo com seu desejo, ele poderá usar apenas métodos racionalistas e não-heróicos. Pode impressionar de acordo com o que o povo espera do seu rendimento econômico, defender seu caso, prometer pagar ou recusar-se a soltar o dinheiro, alugar os traiçoeiros serviços de um condoitiere político ou jornalista. Mas isto é tudo, e superestimado quinto ao seu valor político. Tampouco são as suas experiências e hábitos de vida do tipo que cria fascinação pessoal. Um gênio no escritório comercial pode ser, e freqüentemente é, absolutamente incapaz, fora do seu meio, de afugentar um rato, seja na sala de visitas seja na tribuna. Conhecendo isso, ele prefere ser deixado sozinho e deixar também de lado a política.

Mais uma vez, naturalmente exceções ocorrem ao leitor. Mas não significam grande coisa. A atitude correta, o interesse e o êxito na administração das cidades constitui a única exceção importante na Europa e, como se verá, fortalecerá o nosso argumento em vez de enfraquecê-lo. Antes do advento da metrópole moderna, que não é mais assunto burguês, a administração das cidades era semelhante à administração de uma empresa. A compreensão dos seus problemas e a autoridade nos seus bairros eram naturais ao industrial e ao comerciante. Os interesses locais da indústria e comércio forneciam a maior parte do conteúdo de sua política, que, conseqüentemente, podia ser tratada com os métodos e com o espírito do mundo dos negócios. Em circunstâncias excepcionalmente favoráveis, situações únicas surgiam dessas raízes, de que

serve de bom exemplo os casos das repúblicas veneziana e genovesa. O caso dos Países-Baixos é semelhante, e particularmente instrutivo, em vista do fato de que as repúblicas de mercadores falharam invariavelmente no grande jogo da política internacional e que, praticamente em todas as situações de emergência, tiveram de passar as rédeas do governo a um senhor de guerra de origem feudal. No caso dos Estados Unidos, seria fácil citar as circunstâncias singularmente favoráveis — em rápido desaparecimento — que lhe explicariam o caso.

4. A inferência é óbvia: excluindo-se essas condições excepcionais, a classe burguesa está mal preparada para enfrentar problemas, (174) internos e internacionais, que têm normalmente de ser encarados por qualquer país de importância. Os próprios burgueses sentem isso, a despeito da fraseologia que usam e que parece negar esse fato. As massas também o percebem claramente. Dentro do quadro protetor, não construído de material burguês, a burguesia pôde ter algum êxito, não apenas na política defensiva, mas também na ofensiva, especialmente na oposição. Por algum tempo, ela se sentiu tão segura a ponto de se dar ao luxo de atacar a própria estrutura protetora, de que o caso da Alemanha imperial constitui um exemplo perfeito. Mas, sem proteção de um grupo não-burguês, a burguesia é politicamente inerme e incapaz não apenas de liderar a nação, mas até mesmo de defender seus próprios interesses de classe, o que quer dizer que ela necessita de um senhor.

O processo capitalista, no entanto, em vista tanto de sua mecânica econômica como dos seus efeitos socio-psícológicos, desembaraçou-se desse protetor e, nos Estados Unidos, nunca lhe deu, ou a um seu substituto, oportunidade de desenvolver-se. As implicações dessa tendência são fortalecidas por outra conseqüência do mesmo processo. A evolução capitalista elimina não apenas o rei Dei Gratia, mas também as bases políticas que, se tivessem sido viáveis, teriam sido formadas pela aldeia ou pela corporação de artesãos. Evidentemente, nenhuma dessas duas organizações poderia ter sido mantida da mesma forma que o capitalismo as encontrou. Mas a política capitalista levou a destruição muito além do que seria inevitável. Atacou o artesão em territórios em que teria podido sobreviver por um tempo indefinido. Forçou o camponês a aceitar todas as bênçãos do primitivo liberalismo (a posse livre, mas desprotegida) e toda a corda individualista de que ele precisava para enforcar-se.

barreiras que lhe impediam o progresso, mas também as escoras que lhe impediam o colapso. Esse processo, impressionante em sua inexorável necessidade, não constitui simplesmente a remoção da madeira podre das instituições, mas a separação dos membros da camada

No documento Schumpeter Capitalismo Socialismo Democracia (páginas 169-175)

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