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O OBSOLETISMO DA FUNÇÃO DO EMPRESÁRIO

No documento Schumpeter Capitalismo Socialismo Democracia (páginas 165-169)

PODERÁ SOBREVIVER O CAPITALISMO?

I. O OBSOLETISMO DA FUNÇÃO DO EMPRESÁRIO

Ao discutir a teoria da oportunidade decrescente para o investimento, fizemos uma ressalva sobre a possibilidade de que as necessidades econômicas da humanidade talvez algum dia seriam tão completamente satisfeitas que pouco motivo haveria para se levar avante o esforço produtivo. Tal estado de saciedade está indubitavelmente ainda muito distante, mesmo se conservarmos o atual grau de necessidade. E se levarmos em conta o fato de que, à medida que são alcançados padrões mais altos de vida, as necessidades automaticamente se expandem e novas necessidades surgem ou são criadas,*a saciedade torna-se meta fugitiva, sobretudo se incluirmos o ócio entre os bens de consumo. Nada obstante, examinemos brevemente essa pos- sibilidade, supondo, ainda mais irrealisticamente, que os métodos de produção alcançaram um estado de perfeição que não mais admite novos melhoramentos.

Surgiria um Estado mais ou menos estacionado. O capitalismo, sendo essencialmente um processo evolutivo, tornar-se-ia atrofiado. Nada mais existiria capaz de interessar o empresário individual. Ficariam eles mais ou menos na situação de generais em uma sociedade em que a paz estivesse definitivamente garantida. Os lucros e, com eles, a taxa dos juros, convergiriam para o nada. A camada burguesa, que vive de lucros e juros, tenderia a desaparecer. A administração da indústria e comércio se transformaria em rotina e o pessoal adquiriria (166) inevitavelmente as características de uma burocracia. O socialismo de um tipo extremamente moderado surgiria automaticamente. A energia humana se desviaria do campo dos negócios, e outras empresas, mas não-econômicas, atrairiam a inteligência e dariam o sal da aventura.

No que tange ao futuro previsível, essa perspectiva é sem importância. Muito mais importante, no entanto, será o fato de que muitos dos efeitos sobre a estrutura da sociedade e organização do processo produtivo, que poderíamos esperar de satisfação aproximadamente

completa das necessidades, ou de uma perfeição tecnológica absoluta, já podem ser esperados de um fenômeno claramente observável nos dias atuais. O próprio progresso pode ser mecanizado, como a administração de uma economia estacionaria, e essa situação pode afetar a sociedade capitalista e o empresário independente quase tanto como a cessação do progresso econômico. Para tornar tal possibilidade mais clara, basta redefinir em que consiste, em primeiro lugar, a função do empresário e, em segundo, o que ela significa para a sociedade burguesa e sobrevivência da ordem capitalista.

Vimos acima que a função do empresário é reformar ou revolucionar o sistema de produção através do uso de uma invenção ou, de maneira mais geral, de uma nova possibilidade tecnológica para a produção de uma nova mercadoria ou fabricação de uma antiga em forma moderna, através da abertura de novas fontes de suprimento de materiais, novos canais de distribuição, reorganização da indústria, e assim por diante. A construção das estradas-de-ferro na sua primeira fase, a produção de energia elétrica antes da I Guerra Mundial, o vapor e o aço, o automóvel e as aventuras dos tempos coloniais, fornecem exemplos espetaculares de gêneros de negócios que abarcam inúmeros outros menores, inclusive o de transformar em êxito uma determinada marca de salsicha ou escova de dentes. Esse tipo de atividade é primariamente responsável pelas altas intermitentes que revolucionam o organismo econômico e as periódicas

recessões devidas ao efeito desorganizador de novos métodos e produtos. O lançamento de

empreendimentos novos desse tipo é problema difícil e constituí uma função econômica distinta. Em primeiro lugar, porque se situam fora das tarefas rotineiras que todos entendem e, em segundo, porque o meio resiste de diversas maneiras, de acordo com as condições sociais. Varia a resistência, desde a simples recusa a financiar ou comprar uni novo produto, ao ataque físico contra o homem que o experimenta. A ação confiante, além do campo das reações habituais, e a eliminação da resistência exigem qualidades que estão presentes em apenas uma pequena parte da população e que definem tanto o tipo do empresário (167) como sua função. Essa função, aliás, não consiste essencialmente em inventar coisa alguma ou criar condições que a empresa explore, mas em conseguir resultados.

Essa função social já perde hoje importância e provavelmente perderá cada vez mais rapidamente no futuro, mesmo se o processo econômico, do qual o empresário foi a mola- mestra, continuar sem desfalecimento. Pois, de um lado, é muito mais fácil agora do que no

passado realizar coisas estranhas ao nosso rotineiro campo de atividades. A própria inovação está hoje reduzida à rotina. O progresso tecnológico se transforma cada vez mais em atividade de grupos de especialistas, que fornecem o que se lhes encomenda e fazem o produto operar de uma maneira previsível. A auréola de romance da antiga aventura comercial começa a minguar rapidamente, pois um número cada vez maior de coisas pode ser rigorosamente calculado, quando outrora podia ser apenas visualizado num relâmpago de gênio.

A personalidade e a força de vontade, por outro lado, devem contar necessariamente menos em meios que se acostumaram à mutação econômica, bem exemplificada pela torrente incessante de novos bens de consumo e capital, e que, em ve2 de a ela resistir, aceita-a como fato natural. A resistência que se fundamenta em interesses ameaçados por uma inovação no processo produtivo provavelmente não desaparecerá enquanto persistir a ordem capitalista. Constitui ainda, por exemplo, o grande obstáculo na estrada da produção em massa de residências baratas, o que pressupõe a mecanização radical e a eliminação total de métodos ineficientes de construção civil. Mas todos os outros tipos de resistência — e, em particular, dos consumidores e produtores — a uma inovação, simplesmente porque é algo novo, desapareceram inteiramente.

Verifica-se, pois, o que o progresso econômico tende a se tornar despersonalizado e automatizado. As juntas e comissões tendem a substituir a ação individual. Mais uma vez, para esclarecer este ponto, vamos socorrer-nos de uma comparação com assuntos militares.

Outrora, até as Guerras Napoleônicas, o generalato implicava liderança, e o êxito era também do comandante, que recebia lucros correspondentes, em termos de prestígio social. Sendo o que era a técnica da guerra e a estrutura dos exércitos, a decisão individual e os dotes de comando do general — e até mesmo a sua presença física, cavalgando um animal imponente — eram elementos essenciais nas situações estratégicas e táticas. A presença de NAPOLEÃO era, e teria de ser, sentida nos campos de batalha. Mas isso não mais acontece. O serviço burocrático especializado e oficializado apagará eventualmente a personalidade, o resultado calculável, a

visão. O comandante (168) não tem mais hoje a oportunidade de atirar-se ao aceso da batalha.

Transformou-se em burocrata igual aos outros e, por falar nisso, funcionário que, às vezes, não será tão difícil de substituir.

Tomemos outra analogia da mesma natureza. A guerra na Idade Média era assunto extremamente pessoal. Os cavaleiros encouraçados praticavam uma arte que necessitava de treinamento durante toda a existência. Cada um deles contava individualmente, em virtude de sua habilidade e coragem pessoal. É fácil perceber por que sua arte se transformou na base de uma classe social, no sentido mais rico e completo da palavra. Mas a mutação tecnológica e social solapou e finalmente destruiu tanto a função como a posição dessa classe. A própria guerra continuou a ser travada, se mais e mais mecanizada, chegando a tal ponto que o êxito no que é hoje mera profissão não mais traz a conotação do mérito individual que elevaria não apenas o homem, mas também o seu grupo, a uma posição duradoura de liderança social.

Um processo semelhante (em ultima análise, o mesmo processo social) solapa o papel e, com este, a posição social do empresário capitalista. O seu papel, embora menos aureolado do que o dos guerreiros feudais, fosse ele grande ou pequeno, é, ou era, uma outra forma de liderança individual, atuando, em virtude do poder e responsabilidade pessoal, por intermédio do sucesso. A posição que hoje ocupa, como a das classes guerreiras, fica ameaçada logo que essa função perde importância no processo social. E nada importa que isto seja devido menos à extinção da necessidade social a que servia do que ao fato de que essas necessidades estão sendo servidas por outros métodos, mais impessoais.

Mas essa tendência afeta a posição de toda a camada burguesa. Embora o empresário não seja, a princípio, necessária ou tipicamente, elemento dessa classe, ele passa a dela fazer parte quando obtém êxito na vida. Assim, embora os empresários não formem de per se uma classe social, a camada burguesa os absorve, a suas famílias e relações, recrutando-os e se revitalizando no processo, ao mesmo tempo que as famílias que romperam seus laços ativos com o mundo dos negócios, dela são excluídos em. uma ou duas gerações. Entre elas estende-se o grosso do que chamamos industriais, comerciantes, financistas e banqueiros, que se encontram em fase intermediária entre a aventura do empresário e a administração rotineira da fortuna herdada. A renda de que vive e:;sa classe é produzida, e a sua posição social repousa, no êxito desse setor mais ou menos produtivo (que pode, naturalmente, como nos Estados Unidos, entrar com mais de 90% da camada burguesa) e nos indivíduos que estão prestes a serem (169) elevados a essa classe. Econômica e socialmente, direta e indiretamente, por conseguinte, a burguesia depende do empresário e, como classe, viverá e morrerá com ele. Uma fase de transição mais ou menos

prolongada e, finalmente, uma fase em que ele se sentirá simultaneamente incapaz de morrer e viver ocorrerá, provavelmente, como ocorreu no caso da civilização feudal.

Resumindo esta parte da nossa argumentação: se a evolução capitalista, o progresso, cessar ou se tornar inteiramente automático, a base econômica da burguesia industrial será reduzida finalmente a salários, semelhantes aos que são pagos por serviços administrativos comuns, excetuando-se os remanescentes das rendas de terra e lucros monopolóides que, tudo indica, continuarão ainda no palco por algum tempo. Uma vez que a empresa capitalista, devido ao seu próprio êxito, tende a automatizar o progresso, impõe-se a conclusão de que tende a se tornar supérflua e fragmentar-se sob a pressão do seu próprio sucesso. A unidade industrial gigantesca perfeitamente burocratizada não somente expulsará a firma pequena ou de tamanho médio e

expropriará seus possuidores, mas, finalmente, expulsará o empresário e expropriará o burguês,

como classe, a qual, nesse processo, arrisca-se a perder não apenas a renda, mas também, o que é infinitamente mais importante, a sua função. Os verdadeiros líderes do socialismo não foram os industriais e agitadores que o pregaram, mas os VANDERBILTS, OS CARNEGIBS e os ROCKEFELLERS. O resultado não pode agradar, em todos os seus aspectos, aos socialistas- marxistas, e ainda menos aos socialistas de (como MARX teria dito) descrição mais popular. Mas, na medida em que é apenas prognóstico, não difere tanto do deles.

No documento Schumpeter Capitalismo Socialismo Democracia (páginas 165-169)

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