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A Diferença entre as Classes Sociais

No documento A BORDAGEMG RUPAL ÀV (páginas 185-189)

5.1 Análise das Categorias

5.1.4 A Diferença entre as Classes Sociais

Inicialmente, no que se refere à abordagem dos aspectos psicossociais, os membros do grupo foram mobilizados em suas verticalidades uma vez que apareciam com clareza as diferenças de classe. Grande parte dos “gestores e pesquisadores”, mesmo trabalhando bem com o tema, nunca haviam tratado da morte e do assassinato tão de perto. Muitos relatavam, no grupo, o enorme impacto causado por sentimentos muito contraditórios tais como repulsa, culpa por uma cumplicidade construída no grupo com os assassinos, etc. À medida que o diálogo se aprofundava, os

jovens abriam, cada vez mais, suas experiências, os outros membros do grupo se deparavam com toda a intensidade das cenas vividas nas periferias. Nesse momento, começa um diálogo com o outro e consigo mesmo sobre as implicações da diferença de classes, do trabalho em campo e do horror diante da violência.

A partir desse aprofundamento, aqueles ligados ao Centro Vida podem expressar toda a sua contratransferência. Surge então como, inúmeras vezes, não sabiam o que fazer em campo, como determinadas situações os incomodavam, como, muitas vezes, se sentiam usados pelos jovens da periferia e temiam reclamar ou não aceitar determinadas situações por não considerarem corretas. Puderam expressar, também, como não gostavam de algumas pessoas ou instituições que atendiam e com quem tinham de se relacionar.

Foram percebendo que realizavam uma negação da diferença de classes e como se posicionar dessa maneira não permitia que estabelecessem um vínculo mais profundo com a população e o território em que trabalhavam. Puderam perceber, também, um grave sintoma que provinha da negação da diferença entre quem atende e quem é atendido, que é uma certa mimetização com o atendido. Essa mimetização é muito comum já que, ao encobrir a diferença, obtura o desconhecido e desapropria o trabalhador de seu conhecimento específico, fazendo com que esse deixe de ser um psicólogo, sociólogo, advogado. Passa a ser um falso amigo, ou alguém que está indevidamente no espaço do outro e por isso é roubado ou usado.

Na dimensão sociodinâmica, o grupo inicialmente é formado por dois subgrupos divididos pelas diferentes classes sociais. A divisão existente na cidade configura-se tanto no esforço de os jovens chegarem até o local do grupo, um bairro da Zona Oeste, quanto em todas as dificuldades que foram

emergindo em relação à comunicação entre os subgrupos. Os jovens tinham uma clara noção da importância do espaço grupal e que, ali, à medida que iam se constituindo os vínculos, estavam, verdadeiramente, conhecendo o mundo do centro. O mesmo ocorria com os técnicos e diretores da instituição em relação à periferia.

Com o aprofundamento da comunicação grupal, inicia-se um processo de mútuo reconhecimento. Passa a emergir o desamparo daqueles que haviam cometido crimes e que passaram por situações de violência extrema. Esse desamparo mobiliza intensamente os gestores e pesquisadores da instituição que percebem, claramente, o significado da diferença de classes, a ética e o senso de justiça que se constituem de maneira diferente nos dois subgrupos. A compreensão, o entendimento do crime ou da violência leva a um profundo questionamento: o que fazer com o desamparo dos ‘meninos’, como ajudá-los para não serem mortos ou presos? No entanto, ao adotar essa atitude intelectual, afetiva e concreta, imediatamente, surgia outra questão: como ficava a família do morto? Assim, vendo a situação de perto, a ética e a lei estabelecida eram questionadas. Com isso, instala-se um importante conflito que os leva a uma profunda reflexão sobre os gravíssimos efeitos das condições de vida nas periferias e na sua própria vida.

No que se refere à instituição, o grupo dramatizou e elaborou um dos maiores obstáculos ao trabalho nas situações sociais limites: o pacto inconsciente entre os que atendem e os que são atendidos. Ele se dá, por um lado, por parte dos atendidos, em impactar ao exibir-se de forma narcísica ao outro ⎯ os que atendem ⎯ com as situações de extrema violência ou desamparo. No caso dos que atendem, eles ficam fascinados, também narcisicamente, pelas situações em que são expostos o sinistro e o bizarro. Assim, nenhuma das partes envolve-se, verdadeiramente, na relação transformadora. O importante é que esse mecanismo paralisa o trabalho e

promove um falso vínculo em que se evitam situações de dor e de extrema complexidade que devem ser enfrentadas pelas equipes técnicas.

Quanto aos aspectos comunitários, foi sendo possível, cada vez mais, aprofundar o que havia em relação à diferença de classes. Um bom exemplo é o relato do membro do grupo que sobreviveu a uma grave chacina, e escreveu um livro sobre sua vida em parceria com um dos intelectuais também presentes. Ele relatou várias vezes, de forma desesperada, como vinha sendo perseguido pela polícia que rasgava seus livros e espancava-o, além de roubar o dinheiro da venda. O livro havia sido escrito em inúmeros encontros entre o escritor e o entrevistado. A autoria é dos dois.

O jovem escritor, ao escutar os relatos dramáticos de seu amigo, mostra como a palavra tem diferente valor nas distintas classes sociais. Seu amigo e co-autor é roubado e espancado pela polícia em função do produto comum aos dois. Por meio desse produto, esperava-se a possibilidade de uma verdadeira mudança na vida do sobrevivente. Sobre o mesmo texto, ele era considerado escritor em seu meio e o amigo era roubado e desqualificado. Outro aspecto ainda sobre esse caso é que muitas pessoas perguntavam a ele por que havia colocado também seu parceiro como autor do livro. Assim, a palavra era roubada pela polícia e quase roubada pelos intelectuais que achavam que seu amigo e co-criador deveria ser excluído.

Foi possível observar no trabalho grupal a radicalidade da diferença de experiências e de linguagem entre as classes sociais. Os vínculos que iam se constituindo no grupo eram perpassados por obstáculos, fantasias, repugnâncias, inveja, admiração e, principalmente, pelo desejo que foi emergindo do encontro e constituindo um processo de comunicação em uma tarefa comum: entender algo de nossa sociedade, de nós mesmos e da

violência. É interessante como esses mundos aproximaram-se pela experiência psicanalítica em uma reflexão profunda sobre a realidade.

No documento A BORDAGEMG RUPAL ÀV (páginas 185-189)