• Nenhum resultado encontrado

5 DESENVOLVIMENTO DO SERIOUS GAME

5.1 A DIMENSÃO CONSTRUTIVISTA: ABORDAGEM PEDAGÓGICA

Apesar de amplamente produzidos nas últimas décadas, o valor educacional de muitos jogos com propósitos ainda precisa ser provado (WOUTERS; OOSTENDORP, 2013). Assim, a criação de jogos com fundamentação em uma corrente pedagógica apresenta-se como um desafio para criar jogos com maior potencialidade e alcance pedagógico. No tocante aos jogos voltados para a formação profissional, busca-se ainda utilizar abordagens que fujam das tradicionais, aquelas que apenas repassam conteúdo e são de qualidade tecnicistas.

Considerando as potencialidades dos serious games para atuar nos diferentes domínios de aprendizagem (cognição, afetividade e psicomotor), este estudo utiliza a

perspectiva Construtivista com base na metodologia Freiriana de problematização da realidade.

O Construtivismo é uma abordagem que, segundo a classificação de Misukami (1986), está inscrita nas teorias do Cognitivismo, tendo Jean Piaget um dos seus principais teóricos, especialmente pela grande difusão de suas obras na pedagogia em geral. Essa abordagem pedagógica é caracterizada pela forte interação entre sujeito e objeto e o aprendizado é decorrente da assimilação do conhecimento, que vezes é produzido por uma construção dinâmica a partir de uma interação entre indivíduo e ambiente (SANTOS, 2005). Neste aspecto, o Cognitivismo considera que a aprendizagem só ocorre a partir do exercício operacional da inteligência e só se realiza quando o aluno elabora o seu conhecimento (MISUKAMI, 1986).

O Construtivismo com o enfoque no sujeito como elaborador e criador do conhecimento também é uma das características da teoria de Paulo Freire ao defender que a prática educativa tradicional reprime a criatividade e o diálogo comunicativo, caracterizando- se como um assistencialismo educativo (FREIRE, 1992). Suas ideias ancoram-se no pensamento “Foucalteano” que defende a Educação como prática de liberdade por permitir um processo de construção efetiva dos sujeitos em que o objetivo do processo educativo é fazer o indivíduo criar-se, construir-se. Para Foucault, o sujeito é produtor de saberes, sendo o saber mais valorizado que o conhecimento, para enfatizar a multiplicidade de coisas envolvidas no processo de produção e não a relação de coisas que já estão prontas, assim para Foucault é mais interessante o saber que é construído, cotidianamente pelo sujeito, do que o conhecimento que é descoberto (NITTAS DIGITAL VÍDEO, 2009).

Com esses argumentos, Paulo Freire (1980) deixou seu legado para a Pedagogia atual, especialmente por defender que os seres humanos não existem fora do mundo, fora da realidade cultural. Essa teoria ficou conhecida como metodologia Problematizadora que tem os seguintes princípios segundo Bordenave e Pereira (1986):

1) conhecer algo requer a transformação daquilo. Nesse processo, o sujeito também se transforma; 2) a aprendizagem é uma resposta natural ao desafio de uma situação-problema; 3) a aprendizagem significa que o aluno passa de uma visão global de um problema para uma visão analítica, desenvolvendo uma síntese com hipóteses para solucionar esse problema, aplicando essas hipóteses na realidade, por meio da práxis, uma atividade transformadora de realidade (BORDENAVA; PEREIRA, 1986, p. 24).

Para Chaui (2004, p. 08), a práxis é um conceito que considera o modo de agir, no qual o sujeito, sua ação e “o produto de sua ação são termos intrinsecamente ligados e dependentes uns dos outros, não sendo possível separá-los”. Desse modo, a metodologia problematizadora, com bases no pensamento Freiriano obedece a um ciclo de ação, em que a realidade do ser humano é o ponto de partida e o de chegada de todo processo de aprendizado. No primeiro momento a realidade é observada para a formulação do problema, enquanto que no momento final, a realidade recebe a aplicação das hipóteses e soluções formuladas ao longo do processo (BERBEL, 1995).

De acordo com essas características, a dimensão teórica pensada para o jogo, apresentado nessa pesquisa, fundamenta-se na perspectiva Construtivista, por representar uma metodologia de aprendizagem ativa, em que o jogador detém autonomia no processo de construção dos seus conhecimentos. Esse processo ocorre a partir da interação com o jogo, com o seu enredo e com a sua inteligência, que se expressa na avaliação do jogador.

Dentro do Construtivismo, Bordenave e Pereira (1986) defendem que aprender é um processo integrado de cognição, afetividade e psicomotor que se mobilizam de forma orgânica. Nesse enfoque, por considerar a aplicação computacional como um método que trabalha com aspectos da aprendizagem variados, considerando a classificação de Benjamin Bloom para os objetivos educacionais (BLOOM, et al., 1956), pode-se afirmar que o jogo apresenta elementos que atingem a perspectiva cognitiva e a afetiva do processo de aprendizagem.

No domínio cognitivo, a classificação dos objetivos de aprendizagem foi nomeada como Taxonomia de Bloom, considerando que o processo de aprendizagem segue uma estrutura hierárquica e progressiva perpassando por diferentes dimensões. Após sucessivas revisões da taxonomia original Anderson et al., adaptaram em 2001 a classificação de Bloom para os seguintes níveis: lembrar (reconhecimento de conteúdos), entender (associação entre conteúdos novos com os previamente adquiridos), aplicar (aplicação do conhecimento em uma nova situação), analisar (separação em partes da informação), avaliar (realização de julgamentos baseados em critérios) e criar (criação de uma nova visão ou solução com base nos conhecimentos adquiridos) (FERRAZ; BELHOT, 2010).

Do ponto de vista do jogo, de acordo com os saberes trabalhados, o processo de aprendizagem na dimensão cognitivista perpassa os níveis da lembrança, do entendimento e da aplicação que correspondem aos processos de construção de conhecimento e desenvolvimento de competências, no que se refere aos saberes fazeres, visto que no último

nível do jogo ocorre o processo de tomada de decisão do jogador de acordo com os conhecimentos elaborados no processo. A atuação do jogo em relação às dimensões do processo cognitivo, de acordo com a Taxonomia de Bloom revisada, encontra-se ilustrada na figura 7.

Figura 7 – Atuação do Jogo de acordo com o nível da cognição, da Taxonomia de Bloom revisada (ANDERSON, et al., 2001)

Fonte: Elaborado pela autora

Em relação aos aspectos afetivos, para Ferraz e Belhot (2010, p. 423), de acordo com a classificação de Bloom, os níveis desse domínio são: “receptividade; resposta; valorização; organização; e caracterização”. Tais categorias estão ligadas ao desenvolvimento da área emocional e afetiva e “incluem comportamento, atitude, responsabilidade, respeito, emoção e valores”. Para Bloom (1983) a Receptividade envolve a percepção de valores, enquanto que a Resposta é a participação ativa; a Valorização envolve o compromisso e a aceitação; a Organização, a conceituação de valor; e a Caracterização corresponde ao comportamento por meio da internalização de valores.

Considerando essas definições, o jogo apresentado neste trabalho mobiliza diversas estratégias (uso de imagens, cores, expressões faciais dos personagens, mensagens, músicas) para que o jogador desperte suas motivações no que se refere à percepção e às respostas aos valores abordados no jogo; à reflexão, à emoção, à sensibilização, ao compromisso e à mudança de comportamentos. Dessa maneira, a abordagem utilizada no jogo, permite atingir

Atuação do Jogo

os níveis da resposta e receptividade. A obtenção do nível valorização, no que se refere ao compromisso e à aceitação, depende do nível do envolvimento e da aceitação de cada jogador. A figura 8 traz os níveis da dimensão afetiva e o alcance da abordagem do jogo.

Figura 8 – Atuação do jogo de acordo como nível da afetividade, da Taxonomia de Bloom

Fonte: Elaborado pela autora

O desafio de definir uma abordagem pedagógica construtivista que contemple também os aspectos afetivos é criar um jogo que fuja à abordagem tecnicista, “bancária” de repasse (depósito) de conteúdos. Nesse sentido, além de apresentar situações que favoreçam a reflexão, pelas possibilidades de relacionamento das informações sobre o problema, esse serious game não apresenta um conteúdo “certo” ou “errado”, mas as condições para a construção de um conhecimento adequado como resposta a um problema sobre a violência doméstica contra a mulher.

Esses problemas são contextualizados no espaço geopolítico dos serviços de saúde, em um cenário do cotidiano dos profissionais. Tais situações-problema foram elaboradas de acordo com a realidade cultural vivenciada e relatada pelos profissionais que participaram das atividades da oficina para validação dos temas do jogo. O objetivo do uso da metodologia problematizadora para construção da abordagem do jogo é valorizar os conhecimentos prévios dos jogadores, considerando a sua realidade e as suas experiências pré-concebidas, para que o jogador mobilize saberes e reconstrua o seu aprendizado, reorientando o seu “saber agir”, pois

se considera que os profissionais já detêm saberes e conhecimentos em relação ao problema abordado no jogo.

Nesse aspecto, concorda-se com Feuerwerker (2005, p. 499) ao defender que os profissionais de saúde não podem ser vistos como “caixas vazias” que recebem capacitações e orientações de normas e políticas que estabelecem e padronizam ações. Cada trabalhador tem ideias, valores e concepções em saúde e as suas ações são carregadas dessa intencionalidade. Portanto, o desafio é criar metodologias para qualificar profissionais de saúde na perspectiva da EPS, da problematização e do construtivismo. Por esse motivo, a primeira etapa para implementação do jogo foi procurar o seu público-alvo e escutar a realidade desses sujeitos na atenção à violência doméstica contra a mulher, a fim de que, a partir da problematização e discussão dos próprios profissionais, os desafios e contexto do jogo pudessem começar a manifestar seu sentido.