3. A UNIDADE ESTRUTURAL DO SER HUMANO EM SUAS DIMENSÕES
3.1. A dimensão da corporalidade: categoria do corpo próprio
O problema aqui apresentado por Lima Vaz é o do homem presente ao mundo por seu corpo, ou seja, por sua corporalidade como dimensão constitutiva e expressiva do seu ser. É importante ressaltar que a categoria do corpo em Lima Vaz
não se refere apenas ao sentido físico-biológico, mas, especificamente, à dimensão
74 Ver AF I, pp. 167 – 168.
75 O conceito de Estrutura em L. Vaz configura a realidade que circunscreve a situação primeira do ser humano como sendo: “a realidade do seu próprio ser situado – a realidade que se apresenta a ele ou que ele experimenta como questão sobre si mesmo”. (AF II, 10) Neste sentido, a categoria de estrutura se apresenta na articulação dialética de Lima Vaz como expressão conceitual que dá razão da situação fundamental do ser humano, ou seja, dos níveis ontológicos constitutivos do seu ser, na sua tríplice forma de presença à realidade: corporal, psíquica e espiritual. A dialética das estruturas fundamentais do ser humano, no discurso vaziano, tem, portanto, como objetivo de alcance as estruturas formais da expressividade do ser humano como sujeito. (Ver AF II, p. 11)
filosófica de expressividade do ser humano. Daí porquê ele usa a terminologia “corpo próprio”, adotada pela filosofia contemporânea.76 Este é, portanto, o ponto de partida de sua construção sistêmica da ideia de pessoa humana, uma vez que, como ele afirma, “a autocompreensão do homem encontra seu núcleo germinal na compreensão de sua condição corporal”.77
Tomando a categoria do corpo próprio como o ponto inicial da dialética das estruturas fundamentais do ser humano, Lima Vaz inicia sua apresentação pelo nível da pré-compreensão, realçando a distinção do corpo como organismo ou totalidade físico-biológico, do corpo humano como corpo próprio ou totalidade
intencional. Com essa distinção Lima Vaz quer chamar a atenção para o fato de que o corpo não é apenas uma massa corpórea, mas um corpo vivente próprio dotado de sentido. Ao usar a terminologia corpo próprio Lima Vaz volta-se à compreensão do
corpo como meio pelo qual o homem não somente está no mundo, mas também é no mundo e dá significado ao mundo, transcendendo, assim, ao nível do físico e do biológico. Neste sentido, como destaca Lima Vaz, pode-se dizer que somente enquanto totalidade intencional o corpo humano pode ser assumido como auto-expressão do sujeito, ou mais especificamente como Eu-corporal, uma vez que no
nível do corpo físico-biológico o homem é simplesmente seu corpo físico-biológico, como os animais. Ao circunscrever a corporalidade humana numa dimensão de Eu-corporal, Lima Vaz quer destacar que o ser humano não é apenas seu corpo, mas
tem seu corpo, pois é capaz de atribuir-lhe intencionalidade.
Neste horizonte de pré-compreensão da categoria do corpo próprio, Lima Vaz chama a atenção para o fato de que pelo corpo o ser humano está presente no mundo por uma dupla presença: a natural e a intencional. Como presença natural (um estar-aí) o seu estar-no-mundo caracteriza-se por sua situação passiva na
Natureza, ao passo que como presença intencional (um ser-aí) – próprio de sua
humanidade – o seu ser-no-mundo caracteriza-se por sua situação ativa na
História.78 No entanto, pela mediação empírica do Eu-corporal o corpo dado como Natureza é suprassumido na Forma do corpo próprio (dotado de intencionalidade),
76 Ver AF I, pp. 176 e 184 notas 1, 2, 3, 4. 77 AF I, p. 175.
onde o ser humano começa a estruturar-se no seu espaço-tempo propriamente humano. Assim sendo, é, pois, pelo reconhecimento do corpo próprio como esfera do seu espaço-tempo propriamente humano que o homem torna-se capaz de organizar seu estar no mundo, retomando e significando a objetividade do seu corpo físico-biológico em níveis especificamente humano. Esses níveis são apresentados por Lima Vaz obedecendo à seguinte distinção:
a) “Nível da reestruturação do espaço-tempo físico-biológico pelo corpo
próprio”.79 Neste nível a estrutura e a significação da imagem do corpo próprio, como postura (no espaço) e como ritmo (no tempo), são marcados pela sexualidade;
b) “Nível da reestruturação do espaço-tempo psíquico de nosso
estar-no-mundo pelo corpo próprio”.80 Aqui, a presença do corpo dá-se na ordem da
afetividade, por meio do sentimento, da emoção e da imagem;
c) “Nível da reestruturação do espaço-tempo social de nosso
estar-no-mundo por meio do corpo próprio”.81 Neste nível o corpo atinge o domínio da
expressividade, pela comunicação (sinal, gesto, linguagem), suprassumindo os
níveis anteriores e apresentando-se na forma social de símbolos e comportamentos; d) “Nível da reestruturação do espaço tempo cultural de nosso
estar-no-mundo por meio do corpo próprio”.82 Este é o nível regulador da figura corporal, onde se faz uso das técnicas de modelagem do corpo (ginástica, jogo) e das regras de condutas interpessoais expressas pelo corpo (refeição, etiqueta social, moda).
No nível da compreensão científica do corpo humano, o conhecimento é objetivado pelas ciências da vida, constituindo-se segundo as normas metodológicas do conhecimento científico, assumindo, assim, características peculiares. Lima Vaz destaca, no entanto, que tal processo de objetivação do corpo (dado na Natureza) “não suprime a referência humana do corpo e sua integração na totalidade do
fenômeno vida enquanto vivido pelo indivíduo”,83 e isto se dá principalmente porque 79 Idem, p. 177. 80 Idem, ibidem. 81 Idem, p. 177 - 178. 82 Idem, p. 178. 83 AF I, p. 178.
a mediação desse processo é exercida por um sujeito abstrato, ou seja, um sujeito que obedece regras e leis de um saber empírico-formal. Com esta observação Lima Vaz quer chamar a atenção para o fato de que mesmo do ponto de vista científico há a impossibilidade de uma descrição estritamente objetiva do corpo humano como tal.
Daí porquê, em seu discurso antropológico, o nível de conhecimento científico do corpo objetivado tem como principal objetivo situar o ser humano no tempo e no
espaço do mundo.
A referência humana do corpo dá-se, no entanto, segundo Lima Vaz, no nível da compreensão filosófica do corpo, pois é onde se reúnem as condições de possibilidades de uma concepção transcendental do corpo humano. No itinerário vaziano, o primeiro passo para a exploração e apresentação desse nível é o da
problematização do objeto no campo da aporética histórica e crítica. No campo
histórico o problema do corpo constitui um dos fios condutores de orientação da história das concepções do homem, se apresentando como um dos primeiros enigmas do homem em busca do conhecimento de si mesmo, tendo como característica comum o esquema dual alma-corpo, mesmo que em suas diferentes versões interpretativas: versão religiosa (dualismo órfico-pitagórico e dualismo
gnóstico-maniqueísta); versão filosófica (dualismo platônico e dualismo cartesiano);
versão bíblico-cristã (moralista e soteriológica) e a versão científica moderna
(esquemas reducionistas).84 No plano da aporética crítica ou da interrogação
filosófica, radicada no eixo de oposição ou tensão estabelecida entre o sujeito
interrogante e o corpo-objeto, se estabelece a questão do estar-no-mundo pelo
corpo, tanto na direção do mundo dos objetos ou das coisas, “onde o corpo situa o homem e o submete às leis gerais da natureza”, como na direção da interioridade do sujeito, onde ”o corpo é assumido no âmbito propriamente humano da intencionalidade e se torna corpo próprio”.85 Para Lima Vaz, é justamente do movimento entre esses dois extremos que provém a necessidade de configuração da imagem do corpo próprio como pólo imediato da presença do homem no mundo,
84 Ver idem, pp. 179 – 180. 85 Idem, p. 180.
ou do homem como ser-no-mundo, de um lado aberto à objetividade da natureza e de outro suprassumido na objetividade do seu Eu. 86
Situada no ponto inicial do movimento dialético de autocompreensão e constituição do sujeito, a categoria da corporalidade, em Lima Vaz,
define-se como termo do movimento dialético no qual o corpo (entende-se aqui o corpo próprio da pré-compreensaõ e o corpo abstrato da compreensão explicativa) é suprassumido pelo sujeito no movimento dialético de constituição da essência do sujeito ou da resposta à questão sobre o seu ser. Aí o corpo se mostra como um
eidos categorial, ou seja, irredutível aos outros conceitos
fundamentais que exprimirão a essência do sujeito.87
Como termo do primeiro momento do discurso dialético, Lima Vaz atribui ao corpo o estatuto de estrutura fundamental do ser humano, e à corporalidade o
estatuto de categoria constitutiva do discurso da Antropologia filosófica. Com relação ao processo de constituição dessa categoria Lima Vaz enuncia as seguintes proposições: 88
“O homem é o (seu) corpo”: conforme o princípio da limitação eidética
(que delimita uma região de objetividade) é lícito afirmar que a expressão categorial do ser do homem inclui necessariamente o corpo como constitutivo de sua essência.
O corpo próprio define-se, aqui, como pólo imediato da presença do homem no
mundo;
“O homem não é o (seu) corpo” (corpo-objeto): segundo o princípio da ilimitação tética (que aponta para a infinidade do ser), ao suprassumir o corpo-objeto
no corpo próprio o sujeito afirma o seu ser, transcendendo, assim, os limites da
corporalidade, ou seja, os limites da presença imediata do homem no mundo;
O homem não é somente (seu) corpo: aqui se dá a afirmação da categoria da corporalidade, como termo desse momento inicial do discurso dialético e sistemático da Antropologia filosófica, por meio do qual o ser do homem é
conceptualizado filosoficamente. No entanto, em virtude do princípio da totalização
86 Idem, p. 180. 87 Idem, p. 181.
do sujeito, que impele o discurso dialético de Lima Vaz para além dos limites da presença imediata do homem no mundo, a conceptualização dessa presença
imediata pelo corpo não comporta a presença total do homem a si mesmo, forçando, pois, o movimento de suprassunção desta categoria em níveis mais profundos de integração da unidade do sujeito, buscando, portanto, a identidade do homem consigo mesmo para além das fronteiras do corpo como forma de expressividade do seu ser.