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2. O PERFIL FILOSÓFICO DE LIMA VAZ

2.2. Características do pensamento vaziano: originalidade e contribuições

2.2.3. A estrutura sistemática do pensamento vaziano

Um aspecto fundamental a ser considerado na leitura dos textos de Lima Vaz, de modo especial em suas obras Antropologia Filosófica, Ética (EF IV e V) e

Raízes da Modernidade (EF VII), por sua tessitura densa, é a compreensão da

estrutura sistemática utilizada por ele como um caminho ordenado, dinâmico e aberto de construção racional da realidade. O seu projeto de constituição de uma ontologia da pessoa humana é norteado por essa estrutura sistemática, inspirada em Hegel na sua forma, mas profundamente fiel à Tradição filosófica que vem dos gregos e passa pela Idade Média. Pode-se conferir, também, a incorporação de elementos da Filosofia moderna e contemporânea a essa estrutura, assim como o diálogo crítico com a atualidade completando um quadro de elementos conceituais que lhe permite escrever textos notáveis, de grande destaque nos estudos de Filosofia no Brasil, sobre ética, política, história, cultura, o ser humano, a transcendência. Vale ressaltar que todos esses temas se encontram integrados ao sistema antropológico-ético-metafísico do pensamento vaziano, sendo fundamentalmente orientados pela perspectiva da metafísica do existir e pela perspectiva da compreensão genética da modernidade. 37

No sistema vaziano pode-se observar, ainda, traços bem definidos de uma mesma estrutura. Tal simetria é presente de modo especial na Antropologia, na Ética e em Raízes da Modernidade, pois constam, em linhas gerais, de uma mesma

estrutura orgânico-textual: introdução, parte histórica, parte sistemática e conclusão.38

Ao introduzir um tema, Lima Vaz parte sempre do contexto paradoxal em que este se apresenta na atualidade, levantando questões ou problemas considerados fundamentais, em torno do mesmo. Na parte histórica, como o intuito de fornecer os elementos significativos à compreensão do tema abordado, Lima Vaz realiza uma rememoração do pensamento filosófico ocidental obedecendo à clássica

divisão historiográfica das Idades Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. A articulação da parte histórica com a parte sistemática – de constituição das categorias que definirão a ordem do discurso dialético – dá-se por meio de um capítulo que desenvolve um movimento intermediário de reflexões em torno do objeto e método do tema abordado, assim como de sua possibilidade e limites, indicando sempre a unidade das partes histórica e sistemática no todo do discurso.

37 Ver Rubens G. Sampaio, Metafísica e Modernidade. São Paulo: Loyola, 2006, p. 40. 38 Ver Rubens G. Sampaio, Metafísica e Modernidade. São Paulo: Loyola, 2006, pp. 281-325.

Essa organização encontra-se explicitada, por Lima Vaz, mais detalhadamente na sua obra Antropologia Filosófica, uma vez que ela inaugura formalmente a estrutura

sistemática 39 do seu pensamento, por isso a tomaremos como referencial de nossa exposição, como veremos a seguir.

Na introdução da Antropologia Filosófica ele apresenta os problemas que

envolvem a relação Antropologia, Filosofia e Ciências Humanas. No cerne desses problemas e das mais variadas expressões da cultura ele destaca a interrogação fundamental “o que é o homem?”, como tema dominante de sua investigação filosófica, nesta obra, pois considera que desta reflexão emerge a “singularidade própria do homem que é a de ser o interrogador de si mesmo, interiorizando reflexivamente a relação sujeito-objeto por meio da qual ele se abre ao mundo exterior”.40 Sobre seu intuito de organização sistemática nesta obra ele afirma:

A Antropologia Filosófica se propõe encontrar o centro conceptual que unifique as múltiplas linhas de explicação do fenômeno humano e no qual se inscrevam as categorias fundamentais que venham a constituir o discurso filosófico sobre o ser do homem ou constituam a Antropologia como ontologia.41

Para Lima Vaz, uma Antropologia filosófica situada na problemática atual dos novos saberes sobre o homem deve indicar três tarefas fundamentais:42 1. A elaboração de uma ideia do homem que considere os problemas e temas da

tradição filosófica, assim como as contribuições e perspectivas das ciências do homem; 2. Uma justificativa crítica dessa ideia, para que possa apresentar-se como

fundamento da unidade dos múltiplos aspectos do fenômeno humano, implicados na variedade das experiências com que o homem se exprime a si mesmo; 3. Uma

sistematização filosófica dessa ideia em prol da constituição de uma ontologia do ser

humano que ofereça condições de responder ao problema clássico da essência: o

que é o homem? É em função destas tarefas que Lima Vaz elabora sua obra

Antropologia Filosófica, buscando, antes de tudo, construir uma imagem consistente

da pessoa humana, uma vez que ele entende ser esta uma das tarefas fundamentais da Filosofia.

39 Sobre a origem e significado do termo “sistema” ver Lima Vaz. EF V, pp. 12 – 15. 40 AF I, p. 9.

41 Idem, pp. 11-12. 42 Ver Idem, pp. 10-11.

Como destacamos, anteriormente, a estrutura sistemática da arquitetônica vaziana, inaugurada nesta obra, é fundada, por um lado, na metafísica do existir de Tomás de Aquino e, por outro, no ato de existir do ser humano em seu desdobramento nas categorias do espírito e da transcendência. Em entrevista

publicada no livro Conversas com filósofos brasileiros, Lima Vaz enfatiza o eixo

central de sua reflexão sobre o ser humano na Antropologia Filosófica:

Na Antropologia filosófica a noção de consciência cede lugar à noção mais abrangente do Eu (em sentido fenomenológico-dialético, não psicológico) enquanto momento mediador entre o que nos é dado

como natureza e o que é por nós significado como forma. Em outras

palavras, o Eu opera no ser humano a passagem dialética entre o que ele simplesmente é e a sua auto-expressão, ou seja, a

significação com que ele se anuncia na sua identidade propriamente

humana, na sua ipseidade, para falar como Ricoeur. O conceito de

expressividade, cuja origem se deve a J. G. Herder e foi retomado

por Hegel e recentemente posto em circulação por Charles Taylor, é o conceito propriamente fundacional da Antropologia Filosófica. 43 Na primeira parte da Antropologia, a parte histórica, Lima Vaz expõe uma

rememoração histórica das concepções sobre o homem que se sucederam na filosofia ocidental. Ao longo da história da Filosofia, como ele afirma,44 essas concepções se interpenetraram e se complementaram, resultando, assim, numa ideia do homem que passou a ser um dos elementos constitutivos da nossa cultura. Ao integrar, portanto, traços da tradição da Antiguidade clássica (greco-romana) e da tradição bíblico cristã, tal ideia exprime o homem por meio de duas prerrogativas essenciais: “como portador de uma razão universal (animal rationale) e como dotado

de liberdade de escolha (liberum arbitrium)”.45 Para Lima Vaz são essas duas prerrogativas que dão origem às duas formas mais elevadas do saber humano: a Metafísica e a Ética. É justamente na interseção desses dois saberes que a Antropologia filosófica deve situar-se para que possa, então, encontrar sua unidade e coroar sua explicação do homem com as duas prerrogativas: a da “razão teórica” e a da “razão prática”. Os outros aspectos da realidade humana, como sustenta Lima Vaz, ficam sob a judicatura dessas duas instâncias.

43 Rego Nobre, Conversas com filósofos brasileiros. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 34. 44 Ver AF I, p. 157.

Na segunda parte, Lima Vaz desenvolve a apresentação da parte

sistemática em duas seções, onde inicialmente ele empreende uma análise crítica das metodologias apresentadas pela filosofia contemporânea como tentativa de traçar um roteiro metodológico que permita à Antropologia filosófica atingir a ideia unitária do homem. Na primeira seção, ainda no volume 1, ele desenvolve uma apresentação dialética das estruturas fundamentais do ser humano por meio das categorias do corpo próprio, do psiquismo, e do espírito. Na segunda seção, ele

desenvolve, de forma brilhante, uma exposição das relações fundamentais do ser humano, por meio das categorias de: objetividade, intersubjetividade e transcendência; desembocando, finalmente, na terceira seção, a da unidade

fundamental do ser humano, na qual ele dá destaque à categoria da pessoa.

Como afirma Rubens G. Sampaio (2006, p.29), no empreendimento filosófico de Lima Vaz a Antropologia Filosófica destaca-se como um ponto de

chegada e um novo ponto de partida, uma vez que nela é possível encontrar, de forma articulada e sistemática, todas as noções fundantes do pensamento antropológico-ético-metafísico vaziano: o conceito de expressividade, o conceito de Bem e o conceito do ato de existir. Isto nos leva a identificar nesta obra a alavanca

do sistema vaziano, assim como os pressupostos metodológicos de leitura de tudo o que virá depois, seja a Filosofia e cultura, seja a Ética, seja a Metafísica (Raízes da Modernidade), ou outros tantos artigos nos quais Lima Vaz sempre citava sua Antropologia. 46