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CAPÍTULO I — REFORMULAÇÕES CURRICULARES NACIONAIS

1.2 A S DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS E O PARADIGMA PARA A FORMAÇÃO DE

PROFESSORES

Embora as orientações legais determinem mudanças curriculares, essa

algum tempo. As pressões e demandas externas (reestruturação produtiva, ajustes estruturais, reforma do Estado) e internas, nos cursos de graduação (insatisfações com os currículos extensos, fragmentados e ultrapassados) são fatores que impulsionaram e favoreceram as reformulações curriculares.

As alterações sociais, resultantes das mudanças ocorridas no mundo do trabalho8 neste início de século, trouxeram modificações significativas na forma como nos organizamos, nos relacionamos, trabalhamos e aprendemos na sociedade. Diferente do que ocorria na sociedade industrial — o predomínio do setor secundário (indústria) e um crescimento do terciário (serviços) em detrimento do setor primário (agricultura, pesca, mineração, etc.) —, na sociedade tecnológica o desenvolvimento do setor quaternário (informacional) coloca a informação como a matéria-prima do setor econômico. Na sociedade do conhecimento, habilidades como a seleção e o processamento da informação, a autonomia, a capacidade para tomar decisões, o trabalho em grupo, a polivalência, a flexibilidade, etc., são imprescindíveis tanto para a vida social e cultural como para o mundo do trabalho (FLECHA e TORTAJADA, 2000; IMBERNÓN, 2000).

Essas transformações socioculturais, ao colocarem novas demandas de educação para a sociedade, solicitam a elaboração de uma nova ação pedagógica e, portanto, outro perfil de professor é exigido. Com isso, aprender a ser professor na atualidade requer a revisão do modelo de formação baseado na

racionalidade técnica para modelos orientados pela racionalidade prática.

Os estudos realizados por vários pesquisadores, fundamentados em um paradigma reflexivo para a formação de professores (CONTRERAS, 2002; ZEICHNER, 1993; PÉREZ GÓMEZ, 1995; MARCELO, 1999; NÓVOA, 1995; PIMENTA e GHEDIN, 2002; MIZUKAMI et al, 2002), apontam que o modelo

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É a mudança da base eletromecânica para a base microeletrônica na forma de organização do trabalho, ou seja, dos procedimentos rígidos para os flexíveis, que atinge todos os setores da vida social e produtiva nas últimas décadas. Como conseqüência dessa mudança, passa a se exigir do trabalhador o desenvolvimento de habilidades cognitivas e comportamentais, tais como análise, síntese, estabelecimento de relações, rapidez de respostas, entre outras, o que implica na memorização e domínio de não só de conteúdos, mas também dos caminhos e das formas de trabalho intelectual (Kuenzer, 1999).

baseado no racionalismo técnico não responde às necessidades concretas da formação profissional capaz de dar resposta aos desafios contemporâneos.

A concepção linear e simplista de formação de professores, advinda do paradigma da racionalidade técnica, desde as três últimas décadas tem determinado e influenciado os currículos. Sua organização abrange, normalmente, um componente científico-cultural, com o objetivo de assegurar o conhecimento do conteúdo a ser ensinado e um componente psicopedagógico, que permite aprender como atuar em sala de aula. Esse tipo de paradigma remete à universidade os domínios da produção de conhecimentos — a teoria — e à escola o papel de aplicação desses conhecimentos — a prática.

Como conseqüência desse tipo de formação, a atividade do professor assume, sobretudo, um caráter instrumental, dirigida para a solução de problemas mediante a aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas. Não faz parte de seu exercício profissional o questionamento das pretensões do ensino e das políticas educacionais, isso fica por conta dos políticos ou expert da educação (CONTRERAS, 2002).

Segundo Pérez Gómez (1995), o paradigma da racionalidade técnica baseia-se em três pressupostos. O primeiro deles é a convicção, a qual difunde que a investigação acadêmica contribui para o desenvolvimento de conhecimentos profissionais úteis. Entretanto, é cada vez mais nítido o progressivo afastamento entre a investigação acadêmica e a prática cotidiana escolar. As ciências consideradas básicas para a prática profissional docente têm produzido, constantemente, conhecimentos, formulados e sofisticados, cada vez mais fracionados, o que é incapaz de regular e/ou orientar a prática e de descrever ou explicar a riqueza e a complexidade dos fenômenos educativos. Nessa direção, o mundo da investigação e o mundo da prática parecem formar círculos independentes, que rodam sobre si mesmos, sem se encontrarem. Não se pode dizer com isso que a investigação básica não é necessária e imprescindível para a melhoria das condições de ensino e aprendizagem, mas os problemas gerados e

vivenciados a partir de situações derivadas da prática precisam ser considerados já na preparação e formação dos futuros professores.

O segundo pressuposto ancorado na racionalidade técnica, que está presente nos currículos de formação, está relacionado ao pensamento de que o conhecimento profissional ensinado nas instituições formadoras prepara o futuro professor para os problemas e exigências que ele encontrará no mundo real de sua sala de aula. Nessa afirmação, é preciso reconhecer que o conhecimento teórico profissional tem a função de orientar, ainda de forma muito limitada, os espaços singulares e divergentes da prática, na medida em que há uma distância grande entre a investigação e a aplicação da teoria, e também porque o conhecimento científico básico e aplicado deve ser um orientador de atuação em diferentes contextos escolares. Não se pode ter receitas para o futuro professor, imaginando e prevendo, durante o período de sua formação profissional, a realidade socioeconômica em que atuará e os tipos de problemas que enfrentará em seu cotidiano profissional.

O último aspecto do paradigma da racionalidade técnica é a ligação hierárquica e linear estabelecida entre o conhecimento científico e suas aplicações técnicas, criando o convencimento de que há, também, uma relação linear entre as tarefas de ensino e os processos de aprendizagem. Nas palavras do próprio autor,

[...] a realidade concreta põe em causa este pressuposto, pois a compreensão dos princípios das ciências básicas da educação requer uma referência às situações complexas e holísticas em que se produzem os comportamentos individuais ou colectivos. Por isso, o conhecimento científico que se transmite nas instituições de formação converte-se num conhecimento académico, que se alija não na memória semântica, significativa e produtiva do aluno-mestre, mas apenas nos satélites da memória episódica, isolada e residual (PÉREZ GÓMEZ, 1995, p. 108).

A característica do currículo organizado sob a lógica da racionalidade técnica é a hierarquização das disciplinas em fundamentantes (da ciência básica) sobre os quais a prática se apóia ou a partir dos quais ela é desenvolvida; em

instrumentalizantes (da ciência aplicada) dos quais derivam muitos procedimentos

às habilidades e atitudes), que concerne à execução real do que foi aprendido (MIZUKAMI et al, 2002; CONTRERAS, 2002; PIMENTA e GHEDIN, 2002).

É nesse sentido que o conhecimento profissional é concebido como conjunto de fatos, princípios, regras e procedimentos que se aplicam diretamente a problemas instrumentais. Como conseqüência disso, o entendimento de prática é o de aplicação dos conhecimentos advindos das normas e técnicas, provenientes do conhecimento científico, ao contexto escolar. Em decorrência, a prática de ensino, por sua vez, deve se situar no final do curso, como acontece na maioria dos currículos nacionais vigentes até as orientações propostas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais9 — CNE/ Resoluções CP01 e CP02 de 2002.

É consenso entre vários autores que a concepção de prática, subordinada à teoria, e de universidade como o locus de produção de saberes que, posteriormente, serão aplicados na realidade escolar, não tem fornecido elementos necessários à formação do professor na atualidade (CONTRERAS, 2002, MIZUKAMI et al, 2002; PIMENTA e GHEDIN, 2002; PACHECO & FLORES, 1999; PÉREZ GÓMEZ, 1995; ZEICHNER, 1993, 1995; SCHÖN, 1995, MARCELO, 1999, entre outros). Para esses autores, o papel das instituições formadoras nas sociedades contemporâneas é de indicar com clareza para o futuro professor que conhecimentos são necessários para poder aprender a ensinar em diferentes contextos sociais e qual a relação entre o que ele aprende na licenciatura e o currículo que trabalhará nas escolas.

Para Kuenzer (1999, p. 172),

[...] ao professor não basta conhecer o conteúdo específico de sua área; ele deverá ser capaz de transpô-lo para situações educativas, para o qual deverá conhecer os modos como se dá a aprendizagem em cada etapa de desenvolvimento humano, as formas de organizar o processo de aprendizagem e os procedimentos metodológicos a cada conteúdo.

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De acordo com documento do CNE (2001, p. 36) “O estágio deve ser vivenciado ao longo de todo o curso de formação e com tempo suficiente para abordar as diferentes dimensões da atuação profissional. Deve acontecer desde o primeiro ano, reservando um período final para a

Os futuros professores devem ser preparados para ensinar algo em determinado contexto, que se define como singular, instável, incerto, complexo e contraditório — a escola. E, ao mesmo tempo, conduzir seus alunos a aprendizagens significativas a partir do diálogo com o saber dos educandos e com a realidade objetiva em que as práticas sociais se produzem, reconhecendo que sua ação pode contribuir para a igualdade ou desigualdade social.

Esse aspecto aponta para a elaboração do currículo a partir de princípios que vão além do paradigma da racionalidade técnica10, indicando pressupostos orientados com base na racionalidade prática, uma vez que, hoje,

[...] exige-se do professor que lide com um conhecimento em construção — e não mais imutável — e que analise a educação como compromisso político, carregado de valores éticos e morais, que considere o desenvolvimento da pessoa e a colaboração entre iguais e que seja capaz de conviver com a mudança e a incerteza11 (MIZUKAMI et al, 2002, p. 12).

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Queremos destacar as experiências inovadoras realizadas em algumas universidades públicas do país com o objetivo de superar a concepção de formação regida pela racionalidade técnica, ampliando e favorecendo diálogos entre a formação inicial e os espaços escolares. Dentre elas destacamos: o projeto de pesquisa “A reflexão da ação pedagógica como estratégia de modificação da escola pública elementar numa perspectiva de formação continuada no local de trabalho”, vinculado ao Programa Ensino Público — Fapesp, desenvolvido no período de 1996 a 2000 na Universidade Federal de São Carlos; o projeto de pesquisa “Formação continuada de professores de Educação Física que atuam na educação infantil e primeiras séries do ensino fundamental: superando práticas convencionais”, vinculado ao Laboratório de Pesquisa em Educação Física — LaPEF, em desenvolvimento desde 2001 na Universidade Estadual de Londrina e em 2006 transformado em projeto integrado; a experiência articulada entre ensino, pesquisa e extensão, realizada através da Prática de Ensino do Curso de Educação Física, vinculada ao Laboratório de Observação e Estudos Descritivos em Educação Física & Esportes — Loedefe, desenvolvido no período de 1996 a 2000 na Universidade Federal de Pernambuco. Essa última está registrada no livro: Prática de Ensino: formação profissional e emancipação. Chaves et al (2003).

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Segundo Esteve (1999), conviver com a mudança e a incerteza na atualidade tem gerado na prática profissional do professor o mal-estar docente, caracterizado como o conjunto de conseqüências negativas que afetariam o professor a partir da ação combinada das condições psicológicas e sociais em que se exerce a docência. O autor classifica o mal-estar docente como conseqüência de dois fatores: fatores primários e fatores secundários. Os fatores primários são considerados como principais do mal-estar docente, sendo aqueles que incidem diretamente sobre a ação do professor em sala de aula gerando tensões a sentimentos e emoções negativas. Como exemplos, são considerados: a) falta de recursos materiais e condições de trabalho; b) violência nas instituições escolares; c) esgotamento docente e a acumulação de exigências sobre o professor. Os

fatores secundários referem-se às condições ambientais, ao contexto em que se exerce a docência,

tendo ação indireta, o que acaba afetando a eficácia docente e promovendo uma diminuição da motivação na realização de seu trabalho. A modificação no papel do professor e dos agentes tradicionais de socialização, as contestações e contradições da função docente, a modificação do apoio do contexto social são exemplos de situações geradas que contribuem para o mal-estar docente.

É a partir desses pressupostos orientadores do paradigma da racionalidade prática, que a relação teoria e prática se estreita nos diferentes momentos da formação e ao longo da carreira docente, entendendo que tanto as instituições formadoras quanto as escolas devem estar envolvidas nos domínios da teoria e da prática. Nessa perspectiva, a formação docente é construída a partir das problemáticas com que o professor se defronta no espaço escolar e que, com base nelas, constrói seu conhecimento profissional de forma pessoal e processual, de maneira a incorporar e transcender o conhecimento proveniente da racionalidade técnica.