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CAPÍTULO III: A SIGNIFICATIVIDADE COMO FUNDAMENTO DA

3.2 A abertura do ser-no-mundo

3.2.1 A disposição existencial

Anteriormente, apresentou-se o ser do ser-aí como ser-em um mundo, isto é, enquanto abertura a partir da qual entes se fazem acessíveis. Para dar prosseguimento à analítica da existência, Heidegger visa esclarecer a constituição fundamental de tal abertura. Para o filósofo, o “aí” do ser-no-mundo é constituído originariamente pelos existenciais “disposição” (Befindlichkeit) e “compreensão” (Verstehen), os quais são determinados por um terceiro existencial chamado “discurso” (Rede) (Cf: ST, §28, p.192; SZ, §28, p.133). Porém, o que quer dizer cada um desses existenciais? Que características eles possuem para que sejam necessariamente tomados como constitutivos da abertura? Esta subseção do presente trabalho tem como objetivo expor a noção de “disposição”, que, em Ser e Tempo, será interpretada como condição primária da descoberta do mundo nas ocupações cotidianas. Sendo assim, na cotidianidade mediana, a significatividade mostrar-se-á sempre já descoberta no existencial disposição.

Inicialmente, em uma visualização ôntica, segundo o autor, a disposição se refere àquilo que é conhecido e interpretado na história da filosofia em termos de afetos e sentimentos (Cf: ST, §29, p.198; SZ, §29, p.138). Não obstante, a interpretação ontológica da disposição deve determiná-la, diz Heidegger, como um “existencial fundamental e delimitar sua estrutura” (ST, §29, p.193; SZ, §29, p.134). Entretanto, como trazer à luz a disposição? Do ponto de vista existencial, nas atividades cotidianas em que nos detemos, encontramos-nos já em uma disposição de humor. O caso de estarmos sempre em uma disposição pode ser verificado na medida em que ocorrem passagens de um estado de ânimo para outro, as quais nos acometem na lida cotidiana (Cf: ST, §29, p.193; SZ, §29, p.134).

Dessa forma, o ser-aí é seu aí em uma disposição de humor. Ele é em cada situação afinado com um estado de humor específico, que abre tal situação, abre o “[fato que ele é]” (Dass es ist) na atividade em questão (Cf: ST, §29, p.193-194; SZ, §29, p.134). O “fato que ele é” diz respeito, assim, à “determinação existencial” (ST, §29, p.194; SZ, §29, p.135), que cada ser-aí é sempre e a cada vez enquanto ser-no-mundo.

Na facticidade da existência, o ser-aí se situa em uma disposição de ânimo, isto é, dispõe-se nas possibilidades singulares nas quais se encontra. Isso não pode ser entendido como uma percepção do ser-aí, mas sim como um dar-se deste ente em uma disposição de humor (Cf: ST, §29, p.194; SZ, §29, p.135). Ainda que o existente humano possua a característica de perceber, ou mesmo sentir (ter sensações), sua determinação existencial, a partir da qual algo pode ser percebido ou sentido, doa-se originariamente aberta em uma

disposição, tal como, por exemplo, o medo, que permite que algo apareça como algo ameaçador e só então possa ser “objeto” de uma percepção (Cf: ST, §29, p.196; SZ, §29, p.137)32. Em diferentes disposições de humor, o existente humano se mantém na mesma compreensão do mundo no qual está inserido, mas o como da ocupação em que ele se encontra se modifica (Cf: CFM, §17, p.79). O humor constitui a abertura do ser do ser-no- mundo, pois, enquanto “aí”, é necessário que o ser-aí esteja de algum modo disposto.

Heidegger expõe, a partir disso, a primeira característica ontológica da disposição: abrir “[o ser-aí] em seu estar-lançado” (ST, §29, p.195; SZ, §29, p.136), em geral, no modo de ser cotidiano33. Visto que a abertura do ser do ser-no-mundo se dá conjuntamente com o mundo e com os outros existentes, e que disposição abre o aí do ser-aí, então disposição abre ser-no-mundo em sua totalidade estrutural. Por conseguinte, vem à tona a segunda característica ontológica da disposição. Ela diz respeito, enquanto constitutiva da abertura do ser-no-mundo, a um modo existencial originário da abertura do mundo, dos outros existentes e da existência (Cf: ST, §29, p.196; SZ, §29, p.137). O modo como o existente abre-se em cada caso é em uma disposição (Cf: BLATTNER, 2006, p.77). Lembra-se que os entes intramundanos vêm ao encontro do ser-aí na medida em que podem ser determinados enquanto disponíveis, na lida cotidiana, com base na rede de remissões de finalidades, ou seja, a partir do mundo previamente aberto. Tendo isso em vista, destaca-se uma terceira determinação essencial da disposição, a saber, que, enquanto atinente ao ser-em, a abertura prévia do mundo é constituída igualmente pelo humor. Na circunvisão da ocupação, o ente intramundano não vem, primeiramente, ao encontro em uma sensação ou em uma observação, mas na disposição do humor. De início, a disposição apresenta o caráter do ser-no-mundo ser atingido, o caráter de ser “tocado” (ST, §29, p.196; SZ, §29, p.137), na lida com o utensílio.

Como dissemos anteriormente, o mundo que já se abriu deixa e faz com que o ente intramundano venha ao encontro. Essa abertura prévia de mundo, que pertence ao ser-em, também se constitui de disposição. Deixar e fazer vir ao encontro é, primeiramente, uma circunvisão e não simplesmente sensação ou observação. Numa ocupação dotada de circunvisão, deixar e fazer vir ao encontro tem o caráter de ser atingido, como agora se pode ver mais agudamente a partir da disposição (ST, §29, p.196; SZ, §29, p.137 ).

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Para uma análise mais detalhada desse ponto, ver também: ST, §30.

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O filósofo afirma (ST, §29, p.195) que na cotidianidade mediana a disposição abre o ser-aí fáctico no “modo de um desvio que se esquiva” e ele pondera, em seguida (p.199), que tal modo pode ser evidenciado “no fenômeno da decadência”. Esse desvio pode ser considerado em termos de uma “fuga” que busca ignorar ou aliviar o ser-aí do “caráter pesado” da existência (Cf: p.194-195). Se esse desvio evidencia-se na decadência, e se se recorda que Heidegger explicita, a partir da análise da disposição originária da angústia, um outro modo de ser, dito próprio, não decadente, então é possível atribuir o peso da existência, do qual o ser-aí se desvia na cotidianidade, ao modo de ser autêntico.

A abertura de mundo do ser-aí é, assim, existencialmente constituída pela disposição. Esta, então, abre o mundo em uma dada ocupação na qual a existência se dispõe. Posto que mundo constitui-se de significações, no ocupar-se com um utensílio, o ser-aí é sempre já em uma significação aberta. Destarte, a disposição de ânimo é o existencial que primeiramente abre uma significação. Se a abertura foi descrita enquanto uma atividade, na qual o ser-aí encontra-se em uma ocupação para com entes – que não possuem o modo de ser do ser-aí –, e se mundo é condição para que entes possam ser determinados em uma ocupação, o ser-aí que se ocupa com o ente, de algum modo, deve poder lidar com o utensílio na disposição de humor que abre o mundo. Assim, não é suficiente dizer que mundo se encontra aberto em uma dada disposição, pois isso revela apenas que a disposição denota certo aspecto receptivo do modo de ser do ser-no-mundo (Cf: DREYFUS, 1990, p.168). É preciso esclarecer de que forma o ser em si dos entes (sua disponibilidade) está mundanamente qualificado, ou seja, é preciso expor um segundo existencial constitutivo da abertura do ser-no-mundo, a saber, o existencial compreensão, que em sua estrutura originária possibilita a “visão” do ser, na qual o ser dos entes vem à luz nesta ou naquela qualificação. Destarte, a próxima etapa deste trabalho será caracterizar o existencial compreensão.