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3 A (NÃO) PERENIDADE DA OBRA DE ARTE CONTEMPORÂNEA NO

3.5 A DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA COMO REGISTRO DO EFÊMERO

“Pode a obra atuar simultaneamente na atualidade e na virtualidade? Não estaria o registro, no espaço da experiência estético-poética contemporânea, conformando um problema filosófico: a possibilidade de um evento passar e, ao tempo, permanecer?”(COSTA, 2009, p. 30). Durante o capítulo, apresentamos alguns aspectos conceituais da arte contemporânea, os desafios dos museus frente às categorias efêmero e imaterial – com provocações sobre a

Presença mediada, que exige conhecimento do pesquisador para compreender a extensão e as propriedades apropriadas pelo registro” (OLIVEIRA, 2011, p. 3).

118 Leal nos apresenta, de forma crítica, a postura do museu: “Os museus, na sua lógica cumulativa e incorporadora,

operaram desde o seu aparecimento no sentido de uma dessacralização dos objectos, tendo surgido no exacto momento em que determinados objectos deixaram de ter um papel seguro num dado quadro mítico. Por isso, e desviando um pouco os argumentos de Thomas Pavel (1986), terá sido, entre outros aspectos, do enfraquecimento da crença nas construções mitológicas associadas a esses objectos que surgiu a ficção museológica. Outro modo de olhar para esta descontextualização do objecto artístico é sublinhar a perda da sua função social, o modo como este viaja de um contexto sagrado para um outro profano, desligando-se do real quotidiano e procurando progressivamente uma autonomia e auto-referencialidade. Nessa viagem, os objectos incorporados no museu terão perdido a protecção e a coerência totalizante e inviolável do espaço do sagrado e, por isso, como qualquer outra ficção, os museus viram-se obrigados a recorrer a todos os meios possíveis para se fazerem reconhecer e aceitar. É que, como recorda Pavel, se não medimos a verdade de um mito, já as ficções estão constantemente sujeitas a julgamento e cabe-lhes construir e fornecer os seus próprios instrumentos de legitimação. Assim, os museus foram revelando a construção de intrincadas narrativas capazes de explicarem e conferirem um sentido aos seus espólios”. As narrativas da ficção museológica são existentes até os dias atuais: o museu (re)significa os seus objetos e, com pesquisas, conduzem abordagens – tendenciosas ou não – sobre a atualidade e o passado com possibilidades de interpretação.

duração temporal e material das obras de arte –, a desmaterialização como processo no museu e as possibilidades de (re)significação das obras conforme as narrativas e a recepção estética. As interpretações que surgiram apresentam dois aspectos: primeiro, o museu com acervo de arte contemporânea lida com as obras que têm diferentes materiais e linguagens e segundo, o museu tem poder de decisão sobre a classificação das obras, independente do fato de ser um espaço criticado e com dificuldades em narrar as (in)definições da produção artística contemporânea.

O museu que assume as suas responsabilidades como equipamento cultural que presta um serviço à sociedade e consegue realizar as suas ações deve entender a si mesmo como um lugar de pesquisa, pois esta suscita reflexões sobre os caminhos possíveis para realização das ações nos museus, como é o caso deste trabalho sobre documentação museológica.

O museu precisa conhecer o seu acervo, ter profissionais e aceitar pesquisadores externos que realizem pesquisas em diferentes áreas e disciplinas, para que sejam criados objetivos e estratégias para comunicação, preservação e pesquisa sobre as obras e o acervo em geral.

Os objetos, as obras, os documentos musealizados possuem sentidos oriundos de suas características intrínsecas e extrínsecas. Esses sentidos são gerados a partir do que há de informação e das informações que são geradas dentro das instituições. Quando essas informações são sistematizadas, o museu inicia o processo de pesquisa. Isso é evidenciado e se reflete na operacionalização técnica nos setores dos museus e na produção de conhecimentos, seja em exposições, seja em ações culturais e educativas, catálogos, dissertações, teses, artigos etc.

Assim que as obras são adquiridas, a documentação museológica inicia o processamento técnico e a pesquisa para classificação e catalogação das obras. A documentação é fundamental para o efetivo funcionamento do museu. Mas e quando não existem obras ou objetos para documentar? Ou, ainda, quando temos objetos e obras em processo de desaparecimento? O que fica? O registro e o vestígio.

A documentação de obras de arte contemporânea classificadas nas categorias efêmero e imaterial ocorrem por meio do registro119: livros de artistas, dossiês, fotografias, vídeos, cópias e outros documentos que comprovem a existência temporal e espacial das obras. Ou seja, as

119 Substantivo Masculino, 1. Ação ou efeito de registrar; 2. Transcrição, em livro próprio, de documentos, nomes,

títulos etc., públicos ou privados, como prova de autenticidade. (Utilizei o comando define: registro no google). O registro também é realizado em obras que tenham materiais de maior duração para a produção de catálogos, pesquisas, retrospectiva dos artistas etc. No caso de obras efêmeras e imateriais, o que fica é apenas os documentos oriundos das praticas artísticas e produzidos pelos museus.

obras, os vestígios materiais das obras e os registros serão considerados documentos pelo museu.

A noção de documento é subtendida pela ideia de autenticidade (o documento é uma prova), de vestígio (ele tem um valor testemunhal), mas também por um valor didático (ele informa; instrui), como indica sua etimologia latina (documentum, do verbo docere, que signifca “ensinar”). Ao reconduzirmos essas três acepções do termo, podemos considerar, a priori, que a documentação que os artistas estabelecem sobre suas obras constitui um vestígio delas, que esse vestígio atesta sua existência e as instrui (BÉNICHOU, 2013, p. 172).

Essa noção de documento é uma característica em comum dos objetos e das obras dos museus120, mas a sua configuração na arte contemporânea provoca distúrbios da lógica material das instituições, abrindo um repertório de possibilidades de suportes e materiais, como também a problematização do que é a obra, o que deixa de ser a obra e/ou o que se torna uma nova obra a partir dos vestígios considerados documentos. Segundo Costa (2009), a partir da década de 60, a técnica deixou de ser o essencial para a produção artística.

O contexto da crise das especificidades dos suportes e, principalmente, do plano pictórico foi incentivado por práticas artísticas temporais e processuais. Os artistas plásticos descobriram o corpo e o ambiente, mas também o filme, e logo, o vídeo – portapack da Sony chegou ao Brasil em meados da década de 1970. Não apenas numerosos dispositivos eletroeletrônicos de produção e reprodução de imagens passaram a ocupar a cena artística e os ambientes de diversas práticas em arte, como os artistas plásticos não tardaram a explorar as então recentes imagens digitais dispostas no próprio ambiente da galeria, o que se tornaria conhecido, nos anos 1990, como “instalações” (COSTA, 2009, p. 18).

A arte contemporânea, a partir do registro, é compreendida como uma arte processual, construída sobre os alicerces da impermanência no presente e para o futuro. Essa impermanência está no sentido material das obras, do acontecimento momentâneo, mas que pode ser captada por meio do registro. Costa (2009, p. 21) chama essas obras de obras-eventos. Com a obra-evento, portanto, apareceu um elemento inesperado na prática artística: o acúmulo de fragmentos e restos das intervenções, a sobra de elementos materiais de ações, performances e instalações. Restariam também fotografias, filmes e, mais tarde, vídeos que documentam eventos e ações dos artistas. Uma fotografia, um objeto, um desenho, um esquete, uma frase sobre algum papel, uma ideia: fragmentos que podem se desdobrar em novos trabalhos, dando continuidade ao processamento inicial. Em outras palavras, os desdobramentos se tornam possíveis ao tomar como ponto de partida os fragmentos remanescentes, uma vez que estes pertencem à ideia e ao processo de trabalho (COSTA, 2009, p. 21).

Além da possibilidade de os fragmentos tornarem-se outras obras, podemos entender o caráter documental dos trabalhos de alguns artistas121, que contribuem para a documentação a ser realizada sobre as obras adquiridas pelos museus. Quando documentamos obras, estamos

120 O fato é que todos os objetos e as obras de arte podem ser considerados vestígios da cultura material. Como

algumas obras de arte contemporânea possuem apenas resquícios materiais e registros documentais, isso pode afetar a lógica material do museu, principalmente quando há que se preservar e comunicar esses fragmentos.

criando uma rede de narrativas possíveis. O artista, quando produz registros sobre o seu trabalho, tem outras perspectivas – como afirma Costa (2009, p. 22), que o que o artista produz não é uma mera documentação, mas sim o desdobramento processual do trabalho artístico. Assim que o museu se apropria dos registros dos artistas, constrói outros discursos sobre as obras.

O registro em contexto de arte é um ato heterogêneo. Pode atuar entre imagens ou entre imagens e materialidades, e entre o documentário e a ficção, mediando suportes e relacionando subjetividades, entre outras ações possíveis. É certo que nada tem a ver com sentidos que implicam o verdadeiro, entendido como sistema lógico a exigir comprovações da ordenação do visível. O registro, em vez disso, mostra justamente uma potência que problematiza os sistemas arquivísticos da nossa cultura atual (COSTA, 2009, p. 32).

As práticas artísticas contemporâneas questionam o registro como uma ferramenta da autenticidade, mas, quando as obras entram no museu, os registros são a comprovação de que existiram, mesmo que representem documentos122 fragmentados. As dificuldades estão nos enquadramentos que serão utilizados pelos museus, se a obra que ocorreu pode ser considerada uma nova obra e onde serão guardados os fragmentos, os documentos e os vestígios: na reserva técnica? No arquivo? No centro de documentação? Na biblioteca?

As convenções institucionais podem aprisionar a obra de arte, que pode ser criada sob a iminência da impermanência. Mas, quando a mesma entra no espaço museológico, o papel do museu é preservar o que for possível e/ou declarar que possui em seu acervo uma obra efêmera, cuja existência será comunicada por meio dos catálogos.

O museu entra em contradição no momento em que preserva as obras e os documentos e considera o caráter efêmero das obras. A sua base de materialidade está suspensa no tempo, pois é colocada em questão a duração.

Esse movimento se explica pela distinção de estatuto artístico e documental que subjaz a todo o campo da arte, suas instituições, suas práticas e os discursos nele elaborados. A separação entre obra e documento é fundamental nas instituições museológicas, onde a documentação é conservada na biblioteca, no centro de documentação ou nas coleções de estudo, enquanto as obras tomam seu lugar na coleção do museu propriamente dito. De mais, as convenções de apresentação de documentos e de obras são diferentes; os profissionais dos museus procuram, em geral, distinguir o estatuto respectivo de cada um. Do ponto de vista da exegese, a obra é o objeto de interpretação, enquanto que o documento procede de uma fonte que informa sobre a obra e que permite apoiar a sua leitura (BÉNICHOU, 2013, p. 172- 173).

Os museus foram encontrando – e encontram – formas de lidar com os fragmentos das

122 Segundo Hélio Fervenza (2009, p. 47), os “documentos podem ser usados tanto para atestar a autenticidade de

uma obra quanto para auxiliar na compreensão de como ela foi construída ou apresentada, de quais processos participaram de sua concepção e de sua realização, de como foi pensada por seu autor e também do modo como foi recebida”.

obras: compreendem que a documentação dos artistas é uma documentação como processo criativo, que os fragmentos guardados podem representar a natureza híbrida das obras e dos documentos – pois podem representar o resquício – bem como a possibilidade de uma nova obra123. Os documentos têm um vínculo com a obra que aconteceu: são inseparáveis, mas podem estar em setores diferentes, como em arquivos, bibliotecas, centros de documentação etc.

Mas, como diferenciar um documento sobre a obra e a obra como documento? A dificuldade de enquadramento da arte contemporânea gera também dificuldades em compreender esse universo amplo, ou seja, a questão é: como separar que isso é uma obra e esses são os registros sobre a obra. As fronteiras estão entre os registros produzidos pelos artistas que são parte do processo criativo e poético, que podem fazer parte da obra e os registros como anedotas, anotações, insights sobre um determinado trabalho, que serão utilizados como citações da produção da obra. Somos forçados a constatar que na arte contemporânea o caráter segundo do documento em relação à obra não é mais o modelo dominante. Seria preciso para tanto apreender os corpus documentais de artistas como objetos autônomos ou continuar a pensá-los em relação às obras às quais eles são ligados? A atualidade artística testemunha uma forte tendência a privilegiar a primeira opção e a cortar a ligação que o documento estabelece com a obra. As exposições e os textos teóricos que recentemente são consagrados aos documentos provenientes de performances são veementes a respeito disso. A análise sucinta de alguns dentre eles mostra os problemas que uma estetização tão radical do documento pode acarretar tanto de um ponto de vista historiográfico quanto estético (BÉNICHOU, 2013, p. 182-183).

Cada caso tem suas peculiaridades. O museu precisa verificar – juntamente com a comissão de aquisição e, quando possível, com o artista – o caráter híbrido da obra e dos registros, que por sua vez podem estar relacionados às obras, mas podem ser, como afirma Bénichou, autônomos124. A produção artística ocorre por meio da sistematização específica de

cada artista: alguns dos artistas farão anotações, desenhos, vídeos, fotografias para a realização da obra.

Ainda que a documentação faça obra, devemos considerá-la como uma documentação que “instrui” a obra à qual ela se refere. É certo que os artistas questionam e desvirtuam a função testemunhal tradicional do documento, seu estatuto de vestígio e de prova; mas através de sua documentação eles dizem algo sobre suas obras e sobre o sentido de seu modo de proceder. Ignorar esse aspecto dos documentos de artistas equivale a suprimir deles uma parte de sua significação e de seu interesse estético (BÉNICHOU, 2013, p. 186).

Os registros, os documentos, os fragmentos materiais são fontes para a realização de

123 Podemos pensar em obras efêmeras como as performances que ocorreram em um determinado momento e

foram gravadas, deixando com o museu o vídeo, que pode tornar-se uma nova obra. Segundo Bénichou (2013, p. 180), “Inúmeras obras efêmeras ou cuja materialidade é intermitente geraram uma documentação que, segundo um modo mais tradicional, é segunda em relação à obra que permanece primeira. Esses documentos são, entretanto, dotados de uma tal coerência estética que podemos considerá-los como obras propriamente ditas”.

124“Como poderíamos abordar os documentos de artistas sem lhes amputar seu valor documental? Como articular

esse valor com a experiência estética que eles propõem como obra de arte? Poderíamos adiantar que o seu valor documental participa plenamente de seu bom funcionamento estético” (BÉNICHOU, 2013, p. 185). O caráter documental sobre a obra apresenta a constituição da produção do artista, ou seja, mostra os caminhos percorridos para a criação.

todas as ações dos museus. Consideramos, fundamentalmente, que a sistematização dessas informações ocorre na documentação museológica e no registro, importantes para a existência e a divulgação da obra de arte contemporânea.

Essa documentação como registro apresenta as possibilidades do museu, ao dar autenticidade, preservar e comunicar a produção artística contemporânea. As obras de arte contemporânea imateriais e efêmeras traçam outros métodos e análises sobre a cultura material preservada nos museus.

A arte contemporânea não se opõe ao museu, muito menos o museu se opõe à arte contemporânea. A criticidade nessa relação demonstra as inovações mútuas, o compartilhamento no processamento técnico e nas pesquisas e os diálogos possíveis para a recepção estética. A contribuição da arte contemporânea para os museus é os questionamentos sobre autenticidade, objeto único, tempo, materialidade, obra efêmera, aspectos imateriais das obras e desmaterialização processual. Para a Museologia, são questões sobre o objeto de estudo tendo como elemento a cultura material, em que os registros da produção artística contemporânea configuram o tangível, mas o que permanece nas narrativas de algumas obras de arte contemporânea é o intangível.

4 A DOCUMENTAÇÃO DO MAM-BA: AQUISIÇÃO DE OBRAS NOS SALÕES DE