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2 DIÁLOGOS E NARRATIVAS DA TEORIA E DOCUMENTAÇÃO

2.2 PROXIMIDADES ENTRE TEORIA E DOCUMENTAÇÃO

A proposta deste tópico é apresentar alguns referenciais teóricos da Museologia para reflexões sobre documentação em museus. A partir da abordagem da teoria museológica, é possível compreender em que medida a documentação está inserida nos estudos da Museologia, fundamentalmente na realização da pesquisa ao documentar acervos. Aqui, reforçamos a ideia de que a documentação museológica não seja compreendida apenas no âmbito prático, mas como uma ação científica e de investigação realizada no museu.

Quando abordamos a teoria museológica, é necessário revisitar alguns documentos importantes para o campo do conhecimento. São eles: Declaração do Rio de Janeiro, 1958 (Seminário Regional da Unesco Sobre a Função Educativa dos Museus, no Rio de Janeiro, 1958), que estabelece as relações do museu e da educação, frisando o caráter educativo da instituição; Declaração de Santiago do Chile, 1972, que apresenta o caráter integral do museu, o contexto de diferentes grupos sociais e evoca uma Nova Museologia preocupada com o social;

19 Em 1972, a Declaração de Santiago do Chile apresenta o que os profissionais e os teóricos pensavam sobre a

vocação do museu, dentro da perspectiva de reformulação do campo, que foi chamada de Nova Museologia: “[...]o museu é uma instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante e que possui nele mesmo os elementos que lhe permitem participar na formação da consciência das comunidades que ele serve; que ele pode contribuir para o engajamento destas comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro histórico que permita esclarecer os problemas atuais, isto é, ligando o passado ao presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e provocando outras mudanças no interior de suas respectivas realidades nacionais” (ICOM, 2012, p. 99).

Declaração de Quebec, 1984, que apresenta proposições do movimento da Nova Museologia sobre a atualidade e os museus, reafirma o museu integral e defende a interdisciplinaridade da Museologia; Declaração de Caracas, 1992, que estabelece questionamentos e possíveis soluções para os desafios do museu e aborda os outros dois últimos documentos para fomentar a discussão; Código de Ética do ICOM, que estabelece normas éticas para o trabalho nos museus.

Esses documentos que representam uma ruptura com as práticas tradicionais dos museus, em certa medida, buscam, por meio da realidade de países da América Latina, dos movimentos sociais e, fundamentalmente, das diferentes funções do museu, mostrar para o que, efetivamente, os museus servem e para quem existem, o que reflete também a relação intrínseca com a Museologia e os museus.

Os aspectos pontuados de cada documento são, ainda, evidenciados nas discussões teóricas da Museologia. Em nossas experiências com a pesquisa e as vivências com os profissionais, percebemos as influências do campo do conhecimento frente às práticas realizadas nos museus.

O seminário que ocorreu no Rio de Janeiro afirma a potencialidade do caráter educativo e do deleite nos museus e estabelece diferenciações sobre o que são a Museologia e a museografia: “A museologia é a ciência que tem por objeto estudar as funções e a organização dos museus. A museografia é o conjunto de técnicas relacionadas à museologia” (UNESCO, 2012, p. 89). Nesse primeiro momento, há uma relação entre o fazer ciência a partir do estudo das técnicas a Museologia20.

Cury faz a seguinte distinção entre museografia21 e Museologia: “o ‘lugar’ da museografia é no museu, o tradicional ou outras formas, na sua estruturação administrativa, técnica, política e metodológica”, enquanto a Museologia refere-se às relações do homem com o seu patrimônio cultural – “a posição da museologia está na construção do conhecimento para

20 Isso demonstra questões terminológicas sobre o campo do conhecimento, que estabelecem discussões próximas

e indissociáveis em níveis científico e profissional, e que apresentam a conexão entre museu e Museologia. A leitura dos demais documentos citados também nos dá essa impressão sobre a relação mútua entre museu e Museologia.

21 A museografia, segundo os conceitos-chave propostos pelo ICOM, possui três acepções: a primeira é “a figura

prática ou aplicada da museologia, isto é, o conjunto de técnicas desenvolvidas para preencher as funções museais, e particularmente aquilo que concerne à administração do museu, à conservação, à restauração, à segurança e à exposição”; a segunda faz referência a exposição, ou seja, a técnicas utilizadas para expografia, que não são apenas o caráter cenográfico da exposição, mas também a gestão do acervo, a conservação preventiva, a pesquisa realizada para o recorte expográfico etc., ou seja, tudo relativo ao acervo que será exposto; e a terceira apresenta o caráter de pesquisa científica – “a museografia foi concebida para facilitar a pesquisa das fontes documentais de objetos, com o fim de desenvolver o seu estudo sistemático” (DESVALÉES; MAIRESSE, 2013, p. 58).

compreensão do fato museológico” (CURY, 2009, p. 35)22.

Segundo Stránsky, “o termo Museologia ou teoria de museu abrange uma área de campo específico de estudo focalizado no fenômeno do museu. Aqui lidamos com a relação teoria e prática” (1990, p. 83). Para o autor, não há dissociação entre museu e Museologia, Stránsky compreende a Museologia a partir do fenômeno museu, que, por sua vez, está relacionado ao processo da formação da cultura e do desenvolvimento da sociedade.

O homem é capaz de realizar e de apreciar o valor da realidade (o cultural e o natural) e assumir uma atitude museológica, resultando na coleta e preservação desses valores somente em certo nível de desenvolvimento. Portanto a relação do museu para realidade tem um certo contorno institucional, refletindo verdadeira noção de museu (GREGOROVÁ, 1990, p. 46).

Gregorová entende o museu como o reflexo da sociedade em que foi criado e que estabelece diálogos conforme a realidade em que está inserido. Nesse sentido, a autora apresenta quatro funções realizadas pelo museu: “nº. 1 é a coleta sistemática de objetos de museu e a criação de coleções, nº. 2 é a conservação e a proteção das coleções e a nº. 3 é tudo que é usado nas coleções. A última função pode ser dividida em pesquisa-científica e funções culturais educacionais” (GREGOROVÁ, 1990, p. 48). A autora apresenta um conceito de Museologia similar ao de Stránsky:

Museologia é a ciência que estuda a específica relação do homem com a realidade, consistindo no propósito e na coleta sistemática e na conservação do selecionado inanimado, material, móvel e muitos objetos tridimensionais documentando o desenvolvimento da natureza e da sociedade e fazendo uso deles através da educação científica e cultural (GREGOROVÁ, 1990, p. 47).

O aspecto de seleção pode ser caracterizado, segundo Gregorová, como atitude museológica, que é a realidade selecionada do particular, o objeto de museu, cabendo ao profissional de museus desenvolver o conhecimento a partir do objeto dado por determinada realidade. Para que o processo do conhecimento seja realizado, existem duas formas: “na ação – pesquisando e encontrando novas verdades sobre a realidade (pesquisa científica pura) e na ação transferência de conhecimento adquirido na forma (pesquisa aplicada), realizado nas exposições e nas atividades educativas-culturais” (GREGOROVÁ, 1990, p. 46).

Os objetos originais (fontes primárias de conhecimento) que tem chegado ao museu e que são retirados da natureza e da sociedade são chamados de objetos de museu. Nos museus esses objetos são conservados, restaurados, preparados, decodificados e examinados de várias formas, de acordo com certos princípios e características e estado do objeto de museu. Como outras ciências, a museologia nasceu para atender às necessidades práticas de uma sociedade em desenvolvimento (SCHREINER, 1990, p. 69).

22 A autora tem como referencial Waldisa Russio Guarnieri, que conceitua o objeto da Museologia como fato

museal: “a relação profunda entre o homem, sujeito que conhece, e o objeto, parte de uma realidade da qual o homem participa, e sobre a qual tem poder de agir” (GUARNIERI, 2010, p. 180).

Na primeira parte do capítulo, abordamos um dos elementos da especificidade da Museologia: a cultura material, que é pensada a partir das relações entre as dimensões tangíveis e intangíveis com o homem e a sociedade em que está inserido. Portanto, a narrativa dos autores Gregorová e Schreiner fundamentam, em parte, a nossa óptica sobre as perspectivas do nosso campo do conhecimento, pois a materialidade e a imaterialidade do objeto possibilitam a (re)significação do patrimônio e das memórias geradas pelos indivíduos e instituem o museu como lugar de pesquisa.

Nesse sentido, reforçamos a importância do nosso objeto de estudo, que está circunscrito na realidade de um museu – MAM-BA – e que nos faz pensar sobre como realizar a documentação das diferentes linguagens e categorias de arte contemporânea. A documentação – em caráter técnico – realizada no MAM-BA está em consonância com a documentação de outras instituições que têm a mesma tipologia de acervo, ou seja, os processos e as etapas são similares entre as instituições.

Na delimitação do objeto de estudo – as categorias efêmero e imaterial na documentação museológica de obras de arte contemporânea do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM- BA), a partir de catálogos institucional e dos salões de arte, projetos de artistas, documento sobre as obras efêmeras23 – estamos lidando com categorias, com termos e conceitos – respectivamente a História da Arte e as Artes Visuais –, o que, novamente, permite evidenciar possíveis abordagens interdisciplinares com a Museologia. A proximidade entre as disciplinas é importante para problematizarmos a materialidade, pois as reflexões da Museologia e dos museus ainda apontam para a musealização do tangível, enquanto o intangível é entendido apenas como um mero complemento.

A necessidade de problematizarmos essa relação material justifica-se por trazer a perspectiva da desmaterialização da obra de arte contemporânea, da sua não tangibilidade após acontecimento no espaço do museu. Portanto, o que fica é os vestígios materiais e os registros – o registro como a documentação da obra ou como uma nova obra, em outra linguagem e/ou suporte (vídeo, fotografia, livro), que poderá ser (re)montada. O ciclo de vida da obra de arte contemporânea está em questão, pois, em algum momento, é finalizado.

Nesse sentido, colocamos em evidência a ideia da perda, pois todo material é passível

23 O MAM-BA adquiriu obras pelos prêmios aquisições dos salões de arte ocorridos no espaço, como veremos no último capítulo. Algumas das obras têm relação com o efêmero e o imaterial, alguns artistas rompem com essa ideia do permanente tão afirmada pelo espaço museológico, no entanto ter uma obra em um museu é ter uma visibilidade frente ao sistema, ou seja, ser premiado e ter uma obra adquirida por uma instituição é sinônimo do alcance da poética a ser comunicada e preservada, ainda que esta obra não permaneça materialmente no espaço expositivo, mas, sim, a sua referência e memória.

da não-existência, da morte, na fragilidade dos nossos espaços museológicos. E mesmo o museu que tenta suspender o tempo, com suas práticas de preservação, não consegue perpetuar a eternidade de obras efêmeras, mas, sim, salvaguardar os seus vestígios.

As obras de artes e os seus vestígios serão objetos de investigação constante dos profissionais de museus. Os catálogos são indícios das possibilidades de pesquisa da instituição, bem como pesquisas realizadas por pesquisadores externos, que criam produtos, como é o caso desta dissertação. A produção resultante das pesquisas tem de dar conta do contexto dos museus e não perder de vista o que poderia ser adequado e o que está dentro das possibilidades da instituição e do seu acervo.

A museologia contextual24 não atribui apenas ao objeto uma carga de importância, mas também ao seu contexto, em que o visitante torna-se protagonista do processo, e o objeto deixa de ser central para essa abordagem25. A partir desse pressuposto, Gutiérrez Usillos (2010) reforça a priorização das funções de conservação e investigação do museu, tendo a documentação como meio para realizar essas funções. O autor cita Luis Alonso (2010, p. 90) para afirmar que o museu é “um centro de documentação, uma instituição em que se investiga e se ordena a informação”26 (tradução nossa).

En un museo de arte contemporáneo también se hay de procurar documental el máximo posible sobre la obra y sus circunstancias, produción, montaje, etcétera, y especialmente la perspectiva del propio artista, sobre todo porque se tiene la posibilidad de harcelo, obviamente, siempre y cuando el artista esté vivo y se trate de obras de encargo como performances o instalaciones, etcétera (GUTIÉRREZ USILLOS, 2010, p. 91)27.

Nesse sentido, o nosso trabalho dialoga com essa perspectiva da arte contemporânea e suas relações com o museu, sobre as possibilidades de documentar diferentes linguagens com características e categorias complexas, pois, além de documentar a obra física, o autor Gutíerrez Usillos (2010, p. 91) sugere que o museu adquira o projeto do artista e que documente o contexto, pensando na recriação da obra no futuro (GUTÍERREZ USILLOS, 2010, p. 91).

24 “El planteaminento de esta museologia contextual se caracteriza por la consideración de la subjetividad del

objetivo, la contextualización del objeto, el análisis o la focalización en su contenido simbólico y su implicación en el desarrollo del conocimiento dinâmico, una vía real de participación de la sociedade en la construcción del museo”. [A abordagem dessa museologia contextual se caracteriza pela consideração da subjetividade do objeto, a contextualização do objeto, as análises do foco do seu conteúdo simbólico e sua implicação no desenvolvimento do conhecimento dinâmico, uma via real da participação da sociedade na construção do museu] (GUTIÉRREZ USILLOS, 2010, p. 17, tradução nossa).

25 Utilizamos essa abordagem, pois é a que mais se aproxima da proposta de um público que vivencia com

criticidade a arte contemporânea e gera outras interpretações.

26 Um centro de documentação, uma instituição em que se investiga e organiza a informação (tradução nossa). 27 No museu de arte contemporânea, também é preciso documentar o máximo possível sobre a obra e as suas

circunstâncias, produção, montagem etc. e especialmente a perspectiva do próprio artista, sobretudo porque se tem a possibilidade de fazer, obviamente, sempre e quando o artista está vivo e quando trata-se de obra encomendada, como performances ou instalações etc. (tradução nossa).

As abordagens teóricas da Museologia vislumbram as continuidades e as rupturas sobre o museu e as práticas realizadas no espaço, como é o caso da documentação. As formas de documentar, certamente, eram outras no passado e, possivelmente, a todo momento ocorre um aprimoramento sobre o ato de documentar, a exemplo da utilização da tecnologia com a criação de bases de dados para uma realidade específica28. Essas novas formas de concepção para documentação nas instituições estão relacionadas aos recursos disponibilizados e ao conhecimento sobre o acervo29.