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3 A (NÃO) PERENIDADE DA OBRA DE ARTE CONTEMPORÂNEA NO

3.4 A (RE)SIGNIFICAÇÃO DA OBRA E DO MUSEU

“[...] O espaço do museu deixa de ser o espaço final de consagração da obra, mas se torna ponto de partida pela densidade de seus sentidos simbólicos. O museu se torna moldura e contexto [...]” (FREIRE, 1999, p. 51).

A partir das leituras realizadas para este capítulo, apresentamos a década de 60 como marco inicial sobre as mudanças de paradigma da produção artística, cujos artistas fizeram críticas às instituições e produziram obras transitórias, efêmeras, imateriais que problematizavam noções sobre a perenidade e a temporalidade. Essas obras fazem parte do sistema da arte, que tem o museu como um dos lugares de legitimação da produção artística.

As mudanças ocorreram por meio de continuidades e rupturas a partir de questionamentos sobre o que se considerava arte, reflexões sobre como são constituídas as poéticas, materiais que os artistas utilizam e representações utilizadas para a ficção e a invenção na produção. Constatamos que a relação entre a produção artística e a produção da cultura material se dá no processo em que a arte alcança aquele que vê e a experimenta. A arte contemporânea se enquadra na dinâmica da aproximação à cultura, ao real.

Nesse sentido, este tópico apresenta as aproximações da arte contemporânea nos museus com o público, em cujo espaço as obras reconfiguram novas formas das práticas dos museus e apresentam propostas de recepção estética mais experimentais. Há – ou deveria haver – um trabalho constante de (re)significação da obra de arte. Essa proximidade e a realização das produções com representações plurais sobre a cultura aproximam o artista às realidades, ao cotidiano do público.

Segundo Artur Danto (2006, p. 203), nas atuais práticas artísticas, há um contato imediato com o público, são feitas críticas aos museus e as poéticas das obras têm conteúdos com aspectos políticos e de denúncia, o que aproxima as pessoas das proposições dos artistas.

Visto que existe um aspecto da arte contemporânea que, talvez, a distinga de toda arte feita desde 1400, suas ambições principais não são estéticas. Seu modo principal de relacionamento não se destina a espectadores enquanto espectadores, mas a outros aspectos das pessoas a quem a arte se dirige, e portanto o domínio principal de toda essa arte não é o próprio museu, e certamente não os espaços públicos constituídos como museus em virtude de terem sido ocupados por obras de arte que sejam fundamentalmente estéticas e que se dirigem às pessoas basicamente como espectadoras (DANTO, 2006, p. 204).

Danto afirma que a arte contemporânea é um campo expandido para o estabelecimento de diálogo com aquele que vê, ou seja, dependendo de como a obra de arte é apreendida

enquanto reflexo das experiências do cotidiano e da vida de qualquer pessoa113. Os espaços como museus estão presos a perspectivas históricas que, aparentemente, não são adequadas para preservar e comunicar práticas artísticas contemporâneas. Justamente por isso, o autor afirma que as obras de arte contemporânea não têm as ambições estéticas como obras de arte de outros tempos114.

Pode-se supor que o tipo de arte que o museu define teve o seu momento e que o conceito de arte passa por uma revolução tão notável quanto aquela da qual o conceito surgiu, em torno do ano 1400, e que fez do museu uma instituição exatamente adequada à arte deste tipo. Eu próprio argumento aqui, e em diversos lugares, que é chegado ao fim da arte, significando que a narrativa gerada por esse conceito encontrou o seu fim internamente projetado. Quando a arte muda, o museu pode desaparecer gradualmente como a instituição estética fundamental, e as exposições extramuseológicas [...], em que arte e vida estão muito mais estreitamente entrelaçadas do que permitem as convenções do museu, podem se tornar a norma. Ou então o museu pode ele próprio se tornar esteticamente marginalizado, uma vez que se torna tribalizado em relação ao que ainda pode permanecer como cultura artística dominante, compreendida como território de certos tipos sexuais, econômicos, raciais. Por certo que isso suprimira muito da pressão exercida sobre o museu – o que também teria o seu preço (DANTO, 2006, p. 208-209).

O museu carrega simbologias estéticas e normativas que, para Danto, são incompatíveis com a produção artística contemporânea. No entanto, essa possibilidade de desparecimento do museu não ocorreu: o museu se adequou – e se adequa – à arte contemporânea.

Segundo Freire (2015, p. 65), no Brasil pós-segunda guerra mundial, os museus de arte se guiaram por uma perspectiva da arquitetura, “[...] uma espécie de ‘fator Niemeyer’ é decisivo nos processos museológicos brasileiros onde modernização e museus são correlatos”. Ou seja, há uma ideia da acepção da modernidade na sociedade brasileira a partir da construção de museus de arte. No entanto, os museus não romperam completamente com a ideia materializada e datada de preservação e comunicação de obras de arte, mesmo em um projeto moderno.

De qualquer maneira, dividem-se em pelo menos três dispositivos conhecidos de guardar e do narrar nos museus. São eles: a biblioteca, o arquivo e a reserva técnica. Essa separação de lugares físicos epistemológicos define as práticas nas instituições artísticas e as obras conceituais de caráter documental (as publicações de artistas de forma especial) criam distúrbios nessa lógica sectária (FREIRE, 2015, p. 62). Os distúrbios mencionados pela autora são as complicações da operacionalização

113 Segundo Freire (2005, p. 68), “As proposições de Lygia Clark, as situações de Artur Barrio, os parangolés de

Hélio Oiticica, assim como as inserções de Cildo Meireles sugerem outros parâmetros que possam articular eixos de interpretação de universos sociais, antropológicos, psicológicos, políticos, econômicos, etc. Cabe ao público assumir um lugar mais ativo na relação com a obra. Seu corpo em movimento é que completa um parangolé, por exemplo, e a situação vivida é motor para a criação”.

114 Poderíamos pensar sobre a função da arte em outros tempos e na (não) função da arte contemporânea. As

propostas artísticas são produzidas sobre contextos e problemáticas diversas, e não necessariamente a sua produção possui um vínculo institucional e de enquadramento. É preciso pensar na possibilidade de indefinição como característica da arte contemporânea.

técnica do trabalho em museus115, pois as obras são de complexa classificação: algumas ocorreram e se encontram em outros meios, o que, muitas vezes, torna difícil o tratamento técnico nesses espaços, principalmente de obras que tiveram uma materialidade e deixaram alguns resquícios e vestígios dos materiais.

As complicações podem dificultar o tratamento técnico nos museus, mas estes encontraram e encontrarão formas de operacionalizar as obras de arte contemporânea, seja na busca de novos termos e definições para classificação, catalogação e os demais processos de documentação, seja na preservação da informação e das narrativas imateriais das obras ou na comunicação, com uma junção com a recepção estética, em que o público (re)significará as obras.

Trata-se, de qualquer maneira, da necessidade de considerar, mais uma vez, nas práticas museológicas, a passagem do objeto autônomo aos processos. Nessa medida, não basta restaurar no museu os objetos em sua fisicalidade, muitas vezes precária, mas, sobretudo, investigar e dar a ver os processos subjacentes à sua circulação e os enunciados que sustentam os espaços de sua legitimação (FREIRE, 2015, p. 63). A obra de arte contemporânea é passível de compreensões múltiplas e, a cada experiência com a obra e com os documentos relativos à produção, entendemos o caráter processual de algumas práticas artísticas. Além de serem processuais, as práticas artísticas nos remetem a questionamentos, como por exemplo: “[...] como saber se a fotografia de uma ação ou performance é uma obra de arte, ou um documento artístico, por exemplo. Como distingui- los? Tal pergunta pode não ser relevante ao visitante, mas é decisiva para o curador de coleções” (FREIRE, 2015, p. 63). A decisão de atribuir se a fotografia é ou não uma obra de arte surge de duas possibilidades: a primeira é como o artista opera o seu trabalho, ou seja, a sua poética, e a segunda é se a obra de arte está institucionalizada. Essa compreensão pode partir do museu, ou seja, é uma decisão da instituição.

Nesse sentido, começamos a pensar sobre autoria. O museu assume categorias, termos, definições e realiza pesquisas a partir dos documentos que possui e das publicações oriundas das produções dos seus profissionais e de pesquisadores externos. Assim, o museu forja as suas compreensões sobre as obras de arte e constrói formas de narrar. Assim que a obra é institucionalizada, a responsabilidade recai sobre o museu, que assume as posturas sobre a produção, sendo possível a existência ou não de um diálogo entre instituição e artista. Então,

115 Um dos problemas é a setorização do museu, que interpreta algumas produções, fazendo diferenciações

complexas dos meios e das técnicas, direcionando as obras conforme os materiais para serem guardadas: na reserva técnica, porque são objetos; no arquivo, porque são documentos escritos em papel; na biblioteca, porque são livros (FREIRE, 1999, p. 44).

na produção artística contemporânea, a autoria não está apenas em uma lógica do artista, mas, também, no processo das obras dentro das instituições e nas experiências dos públicos116.

As obras são (re)criadas e (re)significadas nos museus, como relatamos no caso da Laura Lima e do MAM-SP. É com base no registro que pensamos a constituição do primeiro passo narrativo, que significa arquivar para “[...] reunir e organizar fragmentos da existência” da obra de arte (FREIRE, 2015, p. 63).

Registros podem ainda se apresentar como partituras, isto é, enunciados e textos narrativos propondo ou arrolando ações para uma eventual execução futura. Nesse caso, o documento não se refere unicamente ao passado, mas é no presente que se atualiza na percepção do público. São assim imagens dialéticas pois conjugam o passado de onde provém e o futuro para onde se dirigem (FREIRE, 2015, p. 63). Para Freire, a questão do registro demonstra não somente a transitoriedade da obra, mas a transitoriedade entre passado e futuro no museu, cujas estratégias do presente em constituir bancos de dados sobre as obras geram as narrativas.

O museu configura-se a cada dia como uma zona de contato privilegiada que articula banco de dados e narrativas. Do ponto de vista do trabalho curatorial, as narrativas subjacentes à produção e circulação das obras presentes nas coleções sugerem outros parâmetros, certamente não retinianos, para compreender a relação peculiar entre documento e obra de arte. Para tanto, a pesquisa é fundamental. Há que investigar, portanto, junto aos próprios artistas, seus pensamentos e ideias latentes nas obras. Nos arquivos de instituições, as histórias das exposições e as trajetórias de legitimação em suas múltiplas órbitas. Tais relatos advindos da investigação deverão ser mais uma vez reinvestidos de um potencial narrativo e multiplicador pela percepção do público (FREIRE, 2015, p. 64).

Alguns artistas produziram – e produzem – registros sobre a sua própria produção, pois a obra não é entendida como final. Mais uma vez, ressaltamos o termo processual como uma característica fundamental de algumas obras de arte contemporânea. Esses registros demonstram preocupação em mostrar o processo de criação em torno da obra.

Atualmente, a sensível maioria dos artistas dedicados à experimentação tem no registro um elemento múltiplo crucial para a constituição da base memorial de suas práticas, antes e depois de um dado ápice poético, seja ele o momento de realização da performance, seja a reação ilustrada de um determinado público. A tecnologia tem mesmo eliminado o sentindo temporal de antes e depois, numa coabitação entre tempos que tornam o registro um próprio essencial para a circulação de determinado ato criador. Pouco a pouco a ética de tais procedimentos volta-se para a estética do arquivamento e reapresentação contínuos (OLIVEIRA, 2011, p. 3)117.

116 É preciso que o museu tenha cautela ao lidar com as obras e com os artistas e gere as narrativas de forma

contextual. Para Freire (1999, p. 55) é preciso que o museu faça análises sobre a obra de arte e a trajetória do artista, para que entenda a “posição, inserção ou exclusão” de ambos no sistema de valores e representações.

117 Segundo o autor, há uma compreensão da importância do registro como um fator de representação, circulação

e comunicação da obra, mesmo de obras consideradas imateriais pela não-existência em meio físico. “Paradoxalmente, o arquivamento da experiência da obra ‘imaterial’, por meio dos registros, faz surgir a ausência da obra, como objeto, porque se tornou uma experiência não permanente. Do mesmo modo, o arquivo apresenta- nos uma escrita sobre a obra (vídeo, fotografia, imagens digitais etc.). Uma presença traduzida em outra linguagem.

O museu de arte lida com a ficção da representação dos artistas por meios das obras. Segundo Leal, o museu118 como um “espaço de deriva significacional dos objectos, mas também como lugar de uma intensa manipulação e domesticação da sua própria existência”, a todo momento, revê a sua postura diante do seu acervo, da sua missão, do seu público e da sociedade.

A ficção museológica mencionada pelo autor demonstra as possíveis falhas do museu, mas também abre questões de (re)pensar esse lugar. Todas essas discussões sobre produção artística, autoria, recepção estética, definições e narrativas demonstram o poder e a necessidade do museu em se repensar e apresentar outras possibilidades de prestar um serviço à sociedade.

Por isso a escolha da arte contemporânea como parte do nosso objeto de estudo: pela dificuldade em ser narrada, mas por considerar que o museu pode constituir o acervo com obras das mais simples às mais complexas e propor exposições, pesquisas, ações culturais etc. O fato é que a arte contemporânea questiona a zona de conforto do museu, marcada pela compreensão enquadrada das obras e de uma cultura materializada, que deve ser (re)significada a cada instante no espaço.