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III. A DOR COMO PRESENÇA

3.2 A Dor e o Indivíduo

11 de Fevereiro de 1954 Me amputaram a perna há seis meses. Foram séculos de tortura e em alguns momentos quase perdi a razão. Sigo tendo vontade de me suicidar. Diego é quem me detém, pela minha vaidade de crer que posso fazer falta. Ele me disse e eu acredito. Mas nunca em minha vida sofri tanto. Esperarei um tempo. (Frida Kahlo)

O diário de Frida corresponde aos últimos 10 anos de sua vida. Esta seção se inicia com uma lâmina do último ano de sua vida, muito próxima, cronologicamente, ao Figura 10 – Lâmina 134 do

Diário de Frida

70 trecho que inicia o primeiro capítulo, transcrito ao lado. Ambos fazem alusão à dolorosa amputação de sua perna direita, em meados de 1953.

De fato, não há adjetivo melhor para definir este momento da vida da pintora do que doloroso. Em primeiro lugar, pela singularidade do evento. São poucos os que terão a chance de contar algum dia a experiência de ter uma perna amputada e, passado este momento, serão menos ainda os que conseguirão descrever tal feito. E, conforme será visto adiante, é possível que Frida tenha conseguido expressar-se sobre isto não apenas por seu pulsante e vivo poder imaginativo, mas por sua vivência prolongada da experiência dolorosa, desde a infância e, acredita-se, mesmo desde a concepção3.

Na página de seu diário em questão, Frida faz um desenho bastante diferente da maioria, mais desenvolvido e finalizado do que os rascunhos com que povoou as páginas do seu caderno íntimo. Dois pés separados do corpo estão sob um pedestal, semelhante a uma estátua. No entanto, ao invés de um tom cinzento ou marmóreo, os pés possuem um tom amarelado pálido, que remete à fragilidade e à doença4. Da perna direita, que se sobrepõe à esquerda, saem, da altura do joelho, não veias, mas ramos espinhosos, e o sangue que deveria fluir ali colore o fundo, também em um tom pálido, aguado e descendente, como se escorresse. A perna possui dois cortes, sendo um na altura do joelho, onde ocorreu a amputação, e outro na altura do calcanhar.

Sarah Lowe, a historiadora da arte responsável pela transcrição e comentário das lâminas do diário de Frida, afirma que o desenho possui “elementos premonitórios e libertadores, como se mediante a visualização do seu maior medo, a pintora pudesse afugentar o pânico que sentia frente à perspectiva de amputação” (apud KAHLO, 2014, p. 274).

Autores como Claudia Toldo e Romeu Carletto (2012) e Maria da Penha Alves (2012) também analisam lâminas do diário de Frida, sendo que Alves introduz sua análise com a mesma lâmina. Alves diz que a composição única de imagens e palavras introduz a idiossincrasia do discurso de Frida, justificando sua escolha como corpus da

3 O neurologista lituano Valmantas Budrys (2006) pondera que a relação de Frida com a dor possa vir desde antes do nascimento, em decorrência de espinha bífida, uma má formação congênita que ocasiona o fechamento incompleto do tubo neural, durante as 4 primeiras semanas de formação do feto, podendo ocasionar problemas ósseos, motores, urogenitais e neurológicos. O autor mostra ainda que o cirurgião Leo Eloesser, médico de Frida, detectou a má formação em exames de raio-X (2006, p. 5), que infelizmente não mais existem. O portal Faces of Spina Bifida Magazine, que congrega pessoas com a condição, chegou a aclamar a pintora como sua padroeira (FACES, 2011).

4 No início do seu diário, na lâmina 15, Frida experimenta vários lápis coloridos e assimila significados a cada tom. Ao amarelo, que ela assimila “loucura, enfermidade, medo, parte do sol e da alegria [...] mais loucura e mistério, todos os fantasmas usam trajes desta cor ou, pelo menos, roupa de baixo” (KAHLO, 2014, L. 15, p. 45).

71 pesquisa. Segundo a autora, as relações entre o visual e o verbal conjugados dialogicamente nas páginas do diário de Frida, dão visibilidade a “um eu apaixonado e posicionado dessa pintora” (ALVES, 2012, p. 170).

Para analisar esse caráter dialógico do discurso de Frida, Alves se lança aos fundamentos teóricos do russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), tais como enunciado concreto, acabamento estético e olhar exotópico.

Em primeiro lugar, o olhar exotópico, de compreensão mais intrincada, demanda uma volta à teoria bakthiniana. Em A Estética da Criação Verbal, o teórico russo fala de um excedente que surge da visão e do conhecimento sobre o outro. Esse excedente coloca o observador em uma posição única, em que, naquele instante de observação privilegiada, “todos os outros se situam fora de mim” (BAKHTIN, 1997, p. 43). Colocando espacialmente esta relação, diz o russo que:

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar — a cabeça, o rosto, a expressão do rosto —, o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele (BAKHTIN, 1997, p. 43)

Essa forma favorecida de observação só poderia ser evitada se o observador se fundisse ao observado, o que é impossível em todos os casos, inclusive da escrita autor/personagem, e principalmente na relação diário/leitor-observador.

Na escrita ficcional, a exotopia não existe quando o autor se alheia totalmente da personagem (romance em 3ª pessoa), nem tampouco quando se funde a ela numa única voz (romance em 1ª pessoa). Tzvetan Todorov descreve esse processo afirmando que “uma vida encontra um sentido, e com isso se torna um ingrediente da possível da construção estética, somente se é vista do exterior, como um todo; ela deve estar completamente englobada no horizonte de outra pessoa” (apud BAKTHIN, 1997, p. 6)

Assim, “quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente”, como colocou Bakhtin, estabelece-se uma relação dialógica em que uma das pessoas engloba inteiramente e, por isso mesmo, completa e dota a outra de sentido. Realiza-se aqui o que Caibar Magalhães (2010) chama de olhar empático. Segundo o comentador, esta empatia do processo exotópico realiza-se exatamente quando munido deste olhar do outro “retorno a mim mesmo e efetivamente coloco em ação o excedente de visão que o outro me proporcionou, o que atualiza muito do que penso sobre o mundo”

72 (MAGALHÃES, 2010, p. 17). Em resumo, a exotopia demanda o envolvimento completo do outro em um horizonte de visão e o surgimento de uma relação empática.

Quanto ao conceito de enunciado concreto, Alves facilita sua compreensão apresentando os três pontos chave que o constroem: “(i) o horizonte espacial comum dos interlocutores; (ii) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores; e (iii) sua avaliação comum dessa situação” (ALVES, 2012, p. 172). Assim, para a autora, a compreensão do diário de Frida se dá desde que: (i) o leitor recupere todas as informações do horizonte espacial da autora – onde nasceu, os principais eventos, sua obra etc.; (ii) o leitor assimile o horizonte temporal da autora – o contexto maior de sua produção dentro de um período histórico, cultural, político e artístico específico; (iii) o leitor realize uma reflexão sobre os impasses de tal obra, neste caso tendo em vista que o diário possuí uma estreita relação com a vida, ambos inacabados, mais próximos do sentido de devir do que do sentido esgotado. Em suma, o enunciado concreto constrói-se a partir de uma ponderação espaço-temporal de um gênero específico e dos sentidos que ele enuncia.

Após este breve parênteses, cabem aqui algumas críticas a esse procedimento analítico. É impossível ao leitor de qualquer diário o olhar exotópico, como revela o próprio Bakhtin com seu exemplo de um indivíduo fora de mim e à minha frente. Assim como quem olha um diamante lapidado, aquele que encara uma pessoa vê apenas uma face, sendo as demais, invisíveis, não apenas reais como físicas, também constituídas de momentos temporais inapreensíveis e emoções inalcançáveis.

Pode-se objetar a isso que o conhecimento profundo dos horizontes espaciais e temporais é o suficiente para dominar várias das outras faces do Outro, no entanto, restam ainda as características inexprimíveis ao Outro, porque são indizíveis ao próprio Sujeito – como a dor.

Essa inefabilidade de alguns dos recônditos da alma é uma boa justificativa para a incompletude do gênero do diário, fundamentando a lacuna proposital de sentido – o tesouro de sentido de Bakhtin (1997, p. 365-366) – que serve a uma análise continuada pelo observador.

A análise de Bakhtin, no entanto, tropeça no mesmo obstáculo da análise de Benveniste, ao assumir que o único discurso possível é o da língua. Ainda que Bakhtin assuma um caráter mais semiológico, aceitando a conjunção entre formas verbais e visuais, sua noção para na totalidade de sentido, dado que a língua não apenas conforma, como forma o pensamento.

73 Aquele que observa o outro torna-se, então, o container que nunca pode ser imaginado vazio, desprovido do seu conteúdo – o Outro – que por sua vez não pode nunca ser pensado independente do seu container. E tal problema é apresentado por Alves, por meio de uma citação de Bakhtin:

O homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de criar para ele uma personalidade externa acabada; tal personalidade não existe se o outro não a cria; a memória estética é produtiva, cria pela primeira vez o homem exterior em um novo plano da existência (BAKHTIN, 2003, p. 33 apud ALVES, 2012, p. 179)

Apontamentos semelhantes poderiam ser feitos a Carletto e Toldo (2012), que sugerem, a partir de Benveniste e Saussurre, que uma análise do diário de Frida só poderia ser feita através da língua, pois esta “é o único sistema semântico que possibilita a atualização do semiótico” (CARLETTO; TOLDO, 2012, p. 57).

O indivíduo que observa o outro, assim como o leitor que se coloca frente ao diário de Frida, está perante e diante algo, relação em que Derrida (1991), posiciona a filosofia e a linguística. Estar diante não é ser parte, nem englobar, nem estar necessariamente em oposição, é uma forma de poder conceber, limitadamente, o outro. E é somente através da noção de Ser que os indivíduos concebem o eu, o outro e todas as demais categorias tão caras a Benveniste, Saussurre e Bakhtin. No entanto, falta a eles a noção da limitação, da lacuna, que Derrida já apontou na sua análise da escrita, e que aqui importamos a Frida.

Ao pintar sua perna mutilada, Frida repete o ato da jovem Cora de Sicião. Assim como Cora, Frida, não faz um desenho, mas delimita uma sombra. Na indefinição daquela forma que bloqueia o sol, Frida percebe o desenho de sua perna, assim como Cora percebe o perfil do seu amado. E, assim como Cora encerra ali a saudade do amado que se vai, Frida retêm todas as dores, o sofrimento, a ansiedade e o medo de uma amputação, traumática e, acima de tudo, dolorosa.

De maneira análoga, quando Frida escreve sobre o que acontece, ela também encerra nas palavras uma sombra, mas ao invés do traço livre de sua mão, utiliza-se de uma série de termos, estruturas e possibilidades que sua língua encerra.

Em todo caso, trata-se aqui de uma mulher tentando prender, em uma aparência palpável, algo que não tem corpo. Trata-se de dar uma aparência a algo que é inconcebível para outro além de si mesmo, ou oferecer um corpo a algo que é inexistente para a própria mente, mas que não pode ser mais real para o corpo. Esta é a

74 tentativa hercúlea de dar forma à dor, a grande sombra sem corpo, que mesmo assim eclipsa toda Razão e Linguagem que encontra.

O que é, no entanto, a Dor (com a letra maiúscula de um pretenso conceito que se pretende encontrar)? Antes de compreender seu funcionamento como esse ser inconcebível e onipotente que assola toda Razão, é preciso compreender suas origens, seus símiles, e seus reflexos dentro dessa própria racionalidade. O primeiro passo é, infelizmente, admitir que ela não cabe em um conceito, pois, acima de tudo, a dor é infinita, de mais de um modo.

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