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II. A FORMAÇÃO DA ESCRITA

2.1 O que se escreve

Charlie Kaufman: Eu escrevi um roteiro sobre mim mesmo. Donald Kaufman: Isso é meio estranho, não? (Adaptação, de Spike Jonze, 2002)

A citação de Frida que encerrou o capítulo anterior é uma carta a Jacqueline Lamba (1910-1993), pintora surrealista francesa, que à época era esposa de uma das cabeças do movimento surrealista, o pintor André Breton (1896-1966). A carta, não datada no diário, é de 1939, quando Frida deixa Paris após uma grande decepção com o movimento surrealista francês.

Em 1938, André e Jacqueline desembarcam no México com uma comitiva do governo francês. Após algumas conferências sobre o movimento surrealista, Breton encontrou-se com um grupo de artistas e intelectuais que incluíam Frida Kahlo, seu esposo, Diego Rivera, e o líder revolucionário soviético Leon Trotsky, que havia se exilado no país no ano anterior. Em meio a uma série de conversas acadêmicas sobre arte, das quais Frida e Jacqueline foram excluídas, iniciou-se uma grande amizade entre ambas.

Breton, encantado com a arte de Frida – e com todo o ethos exótico que fluía do México para sua visão eurocêntrica – prometeu organizar uma exposição para a pintora em Paris. Em janeiro de 1939, Frida embarca para a Cidade Luz, onde descobre que Breton sequer havia começado a organizar a exposição. Todos os quadros que Frida havia trazido consigo estavam retidos na alfândega, e não havia ainda uma galeria disposta a recebê-los. Foi apenas em 10 de março daquele ano que a galeria Renou et

Colle, especializada em pintura surrealista, abriu as portas para a exposição Mexique,

que não continha uma exibição solo de Frida, mas uma amálgama de arte hispânica que ia de obras do século XVIII e XIX, fotografias de Manuel Álvarez Bravo (cuja esposa, Lola Álvarez Bravo, também foi grande amiga de Frida), esculturas anteriores à invasão espanhola (da coleção pessoal de Diego Rivera), e objetos de arte popular que Breton havia comprado em mercados do país (KETTENMANN, 1999, p. 51).

Não é de se espantar que Frida tenha ficado frustrada com o resultado de sua viagem. O descaso de Breton e a estranha fusão culturalmente panfletária da exposição deram a Frida uma péssima impressão da Europa e, mais ainda, dos surrealistas. Em

42 uma carta ao fotógrafo Nickolas Muray (1892-1965), ela escreve sobre o círculo surrealista:

Não pode imaginar que bando de babacas são essa gente. Me dão vontade de vomitar. São tão desesperadoramente “intelectuais” e degenerados que já não posso aguentar mais [...] A visita valeu a pena para ver porque a Europa está podre e que todos esses patifes são a razão de todos os Hitlers e Mussolinis. Aposto com você a minha vida que, enquanto eu respirar, vou odiar esse lugar e seus habitantes (KAHLO apud KETTENMAN, 1999, p. 51)

A princípio, a única coisa que manteve positiva nessa viagem de Frida à Europa, foi sua grande amizade com Jacqueline Lamba, que, para tentar consolar a amiga, disse que os franceses eram nacionalistas demais para se interessarem pela obra de uma estrangeira desconhecida. E ainda assegurou que era uma época muito difícil para as pintoras: “As mulheres ainda são subestimadas. Os homens são reis. Eles mandam no mundo” (HERRERA, 2012, p. 187). A carta que Frida envia a Jacqueline, cujo pequeno trecho encerra o capítulo anterior, foi escrita logo após a partida de Paris, sendo em seguida transcrita no diário.

Enfatizando que o objetivo aqui não é que se tenha uma experiência profunda na vida de Frida Kahlo, lembra-se que, antes do esforço biográfico, empreende-se aqui um movimento autobiográfico. Ler esta carta de Frida para Jacqueline não é colocar mais uma peça no quebra-cabeças linear de uma biografia que é compreendida na sua totalidade com a morte da sua autora. Antes, é compreender que este trecho é uma vivência única e singular, que trouxe consigo uma série de eventos perfeitamente irrepetíveis, que nada mais são do que os “momentos da vida infinita”, como cita Schleiermacher (apud GADAMER, 1999, p. 129-130).

É importante lembrar da noção estética de vivência, apresentada no capítulo anterior. O estético é o que rompe o racional. O estético é a representação não do objeto para o conhecimento, mas da imaginação para o subjetivo, diz Kant na Crítica do Juízo. O que é estético opõe-se àquilo que é lógico pela noção de que seu fundamento não

pode ser senão subjetivo (KANT, 1, 1993, p. 48)1.

A volta a Kant, mais uma vez, apresenta-se como um instrumento útil para compreender o pensamento fortemente colonizado pela Razão que se formava à sua época. Embora a Crítica do Juízo aventure-se pela definição do que é belo, numa tentativa de submetê-lo à cognição, suas argumentações servem para preparar o terreno para o qual se move a Erlebnis.

1 A referência após a página é da seção, ou parágrafo, que se estabeleceu como divisão da Crítica do

43 No entanto, eis aqui a linha que se estabelece entre este trabalho e o reino kantiano. O juízo do belo não é a vivência. O juízo estético é desinteressado. O belo funda-se no prazer desinteressado e livre, e não na satisfação de uma necessidade material ou moral (algo que é bom), nem em algo que satisfaz a um desejo dos sentidos (algo que é agradável).

Longe de se embrenhar nesse longo e complicado labirinto de interesses, percebe-se que há um limite intransponível pela estética sistemática de Kant e as vivências de Frida Kahlo. Ora, Frida Kahlo estava vivendo sua vida. Em sua grande decepção na Europa, ela não pretendia afastar-se e sentir uma graciosa sensação “universalmente subjetiva” de que aquilo é belo. A experiência na Europa sem dúvida a desagradou profundamente, assim como a amizade com Jacqueline Lamba a alegrou. Do mesmo modo, o sucesso que ela posteriormente fez nos Estados Unidos lhe foi muito útil, enquanto a amputação de sua perna lhe foi tremendamente inútil. Não há, portanto, como separar a vivência do bom, do agradável, do ruim, do triste, do doloroso. Sobre o agradável e o bom, trabalha Kant a quinta seção da Crítica do Juízo, dizendo que:

Tanto o agradável quanto o bom se referem ao nosso poder de desejar, e desta forma carregam consigo uma ligação. Enquanto o agradável porta uma ligação patologicamente condicionada a estímulos, o bom traz uma ligação pura e prática que é determinada não apenas pela representação do objeto, mas também pela representação da conexão do sujeito com a existência desse objeto (KANT, 5, 1993, p. 54)2

Apreende-se desta citação dois pontos que enriquecem a compreensão da vivência de um autor. Em primeiro lugar, a questão da conexão do sujeito com a

existência do objeto. O juízo estético não é fundado nem almeja um conceito. Ele não se

apoia na existência – ou refutação – de um objeto externo, como uma cadeira ou uma exposição na Europa, que são ou não são. Ele se apoia no encontro da representação dessa cadeira ou dessa exposição com a ligação que o sujeito tem com ela. A ligação dele com a sua existência.

Pode-se voltar aqui rapidamente à etimologia de Erleben, cujo radical carrega a ideia conjugada de viver e ter um corpo. Não há, a priori, como estabelecer uma relação entre algo que não tem uma existência. Mesmo que seja algo imaginário, como um

2 Em tempo, este trecho não é uma perfeita transcrição da edição portuguesa da Editora Forense, mas um cotejamento com o original em alemão. Dado o estilo condensado (e um tanto truncado) do filósofo alemão, muitas traduções ganham, sobretudo semanticamente, com um confronto com o original. Esse procedimento, obviamente não é condição para a compreensão do texto, e o sentido mantêm-se o mesmo.

44 unicórnio ou um saci, suas construções foram feitas a partir da união de partes que existem. Mesmo a mais fantasiosa das quimeras é uma construção de um corpo.

Assim, a existência de uma experiência real – aqui compreendida como dotada de uma realidade além do sujeito, para não se perder em combates hermenêuticos – é uma das condições de uma vivência, pois isso dá-lhe a chance de ser boa/útil, ou ruim/infrutífero (como um remédio para uma doença).

O segundo ponto que pode servir à estruturação da vivência na escrita – principalmente do diário – é a ligação “patologicamente condicionada a estímulos” que o prazer agradável traz dentro de si. Ao contrário do que é bom ou ruim, cujo prazer está associado à realidade da experiência e à subjetividade do indivíduo, o agradável liga-se a estímulos dessa experiência, pois esse tipo de prazer satisfaz os sentidos imediatamente (como uma bebida gelada em um dia quente).

Assim completa-se o percurso da Erlebnis tal como ela advém do romantismo alemão, agora compreendida do ponto de vista daquele que a sente. Voltando a duas das noções de Erlebnis que Jorge Viesenteiner (2013) apresentou, tem-se a imediatez, a significação. À imediatez corresponde o condicionamento a estímulos do prazer agradável, e à significação corresponde a conjunção entre a realidade do objeto e a subjetividade do ser3.

O terceiro aspecto da Erlebnis, o estético, mantêm-se, visto que permanece o embate entre ela e a Aufklärung, entre a totalidade e o infinito de uma, e a frieza determinante de outra. O conteúdo do que é vivido imediata, individual e significativo em uma vivência não exige, nem cabe, numa determinação racional.

Assim, vê-se que a vivência romântica avançou com muito mais força nos séculos que se seguiram, ao contrário do juízo universal subjetivo estético de Kant, que não percebeu a individualidade que germinava nos quartos e nos cadernos.

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