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Já foram abordadas neste capítulo as origens do common law, suas fases e as necessárias noções para a formação desta tradição, como também suas similitudes e diferenças com a tradição do civil law, buscando-se demonstrar, com o cuidado necessário, os pontos de aproximação entre as duas famílias e as vicissitudes ainda exclusivamente inerentes a cada uma delas.

Propositadamente, nos tópicos antecedentes, nada foi falado acerca da doutrina do stare

decisis, tampouco se ela teria surgido desde os primórdios da tradição do common law, ou,

diferentemente, se a doutrina do precedente não se confundiria com a tradição do Direito não escrito, embora pareça estranho, hodiernamente, qualquer desvinculação entre eles.

Tal omissão se fez necessária, tendo em vista ainda existir alguma confusão entre o

common law e a regra do precedente (stare decisis), que ao fim busca vincular a utilização de

precedentes judiciais à família do Direito não escrito, o que parece totalmente desprovido de qualquer base jurídica ou histórica, mas ainda permeia o imaginário dos juristas.

Correndo o risco de parecer repetitivo, tem-se que o Direito inglês passou por quatro períodos distintos: i) o período anterior à conquista normanda de 1066; ii) do da formação do

common law, que perdurou de 1066 até 1485 (dinastia dos Tudors); iii) período, que vai de

1485 a 1832, é marcado pelo desenvolvimento, ao lado da common law, de um sistema complementar e às vezes rival, que se manifesta nas regras de equidade; e iv) o período moderno, que começa em 1832 e perdura até os dias atuais, marcado pela adaptação do common

law ao desenvolvimento em grande escala e sem precedentes da lei.123

122 Cf. STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

123 DAVID, Renê. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 356.

Numa análise desatenta dos períodos acima descritos, pode parecer que o common law, desde a sua origem, já se desenvolveu atrelado à regra do precedente, adotando de forma ampla a doutrina do stare decisis. Entretanto, essa crença não se mostra correta. Não há o que se confundir, como adverte Marinoni, common law com stare decisis. Compreendido como os costumes gerais que regravam o comportamento dos Englishmen, o common law existiu por vários séculos sem stare decisis e rule of precedent.124

Ao menos para um historiador, qualquer identificação entre o sistema do common law e a doutrina dos precedentes, qualquer tentativa de explicar a natureza do common law em termos de stare decisis, é condenada a parecer insatisfatória, uma vez que a elaboração de regras e princípios que regulam o uso de precedentes e o seu status de ‘lei’ é relativamente moderno, e a ideia de obrigatoriedade do precedentes é mais recente ainda. O common law já existia há séculos antes de alguém se interessar por essas questões, tendo funcionado como um sistema, não obstante carente de fundamentos como o conceito de ratio decidendi; e, diga-se de passagem, funcionou muito bem.125

Cruz e Tucci identifica que a eficácia vinculante do precedente judicial apenas teve lugar a partir das primeiras décadas do século XIX, notadamente na decisão do caso Beamish v.

Beamish, já no ano de 1861, embora não negue, ao longo de sua obra, que os precedentes

judiciais acompanharam a evolução do common law, mas não com eficácia vinculante.126 Na decisão do caso Beamish v. Beamish, conduzida, em 1861, pelo Lord Campbell, ficou virtualmente estabelecido que a House of Lords estaria obrigada a acatar a sua própria autoridade proclamada nos julgamentos: ‘... o direito declarado na ratio decidendi, sendo claramente vinculante para todas as cortes inferiores e todos os súditos do reino, se não fosse considerado igualmente vinculante para os Law Lords, a House of Lords se arrogaria o poder de alterar o direito e legiferar com autônoma autoridade.127

Apenas mais de um século depois do reconhecimento da regra de precedente, a House

of Lords, por meio da Practice Statement of Judicial Precedent, proclamada pelo Chancellor

Lord Gardner, aduziu ser prudente rever orientação emitida no passado, quando parecesse correto. Embora já houvesse, antes mesmo do ano de 1861, no caso Bright v. Hutton (1852), proclamado a possibilidade, como qualquer outro tribunal, de corrigir eventuais erros porventura cometidos.128

A expressão stare decisis é uma redução da frase latina “stare decisis et non quieta

movere”, que em tradução livre significa “ficar como foi decidido e não mexer no que está

quieto”. Afirma-se, ainda, que a palavra doctrine, seria melhor traduzida como “regra”, de

124 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, p. 33.

125 SIMPSON, A. W. B. The common law and legal theory. In: HORDER, Jeremy (ed.). Oxford essays in

jurisprudence. Oxford: Clarendon Press, 1973, p. 77.

126 TUCCI, Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, pp. 149-158. 127 Idem, ibidem, p. 158.

modo que a “doctrine of stare decisis” representa a regra segundo a qual as coisas devem ficar como foram decididas pelos juízes e pelas Cortes do passado.129

Destarte, não se deve confundir a doutrina do stare decisis com a tradição do common

law, não havendo óbice, ao menos não por este motivo, da adoção por um país filiado à tradição

do civil law da regra do precedente. Se tal regra estaria em rota de colisão com o princípio da legalidade, mesmo depois do constitucionalismo contemporâneo, é outro problema, do qual tentaremos nos desincumbir em capítulo próprio. Por ora, a conceituação do que é um precedente, as razões para segui-lo e sua aplicação no sistema jurídico brasileiro, é tarefa que se mostra imprescindível ao entendimento sobre o assunto.

2 NOTAS PARA UMA CONCEITUAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS: DA SÚMULA AO PRECEDENTE.