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O impacto do constitucionalismo no civil law como causa de sua aproximação à tradição do

1.2 Causas de aproximação entre as tradições de civil law e de common law

1.2.1 O impacto do constitucionalismo no civil law como causa de sua aproximação à tradição do

Como visto, a noção de norma geral, abstrata, coerente e fruto da vontade homogênea do parlamento, típica do direito da Revolução Francesa, não sobreviveu aos acontecimentos históricos. Vivenciou-se, sem saudosismo, a experiência de que a lei poderia ser criada de modo contrário aos interesses da população e aos princípios de justiça.70

Mostrou-se necessário, diante desse quadro, resgatar a substância da lei e encontrar os instrumentos capazes de permitir a sua conformação aos princípios de justiça. Dotaram-se, portanto, as Constituições de plena eficácia normativa, tonando-as rígidas, porque elas passaram a conter os princípios de justiça antes esquecidos, daí não poderem mais ser modificadas por simples legislação ordinária.

Da supremacia da lei, esta passa a encontrar limite e contorno nos princípios constitucionais, deixando de ter apenas legitimação formal, não valendo mais por si, mas dependente de sua legitimação pelos direitos fundamentais. Se antes era possível dizer que os direitos fundamentais dependiam da lei, torna-se exato afirmar, agora, que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais.71

O princípio da legalidade, de suma importância ao presente trabalho, passou a ter outro significado, deixando de ter conteúdo apenas formal para adquirir conteúdo substancial. Ao invés de se limitar apenas à forma, o princípio da legalidade passou a ter uma conotação substancial, impondo à conformação da lei com os direitos fundamentais, naquilo que Ferrajoli identificou como uma segunda revolução, quebrando o paradigma da supremacia do parlamento do Estado Legislativo. Essa segunda revolução substituiu o princípio da legalidade formal pelo princípio da legalidade substancial.72

70 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, p. 67. 71 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

72 FERRAJOLI, Luigi. Derechos fundamentalis. In: FERRAJOLI, Luigi et. al. Los fundamentos de los derechos

Parece evidente que o civil law passou por um processo de transformação das concepções de Direito e jurisdição. Se é certo afirmar que o Direito não está apenas na lei73, mas, sobretudo, na Constituição, também é certo que a jurisdição passa a não mais declarar a vontade concreta da lei, senão a conformá-la aos direitos contidos na Constituição. O juiz do

civil law passou a exercer um papel muito diferente daquele concebido pela Revolução

Francesa, afastando-se dos princípios clássicos do civil law e aproximando-se, sobremodo, do juiz do common law.74

Não há dúvidas, que o juiz que, mediante as técnicas de interpretação conforme à Constituição e da declaração parcial de nulidade sem redução de texto, confere à lei sentido distinto do que lhe deu o Legislativo – o que não o autoriza a dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, conforme será abordado mais a frente neste trabalho –, bem como aquele que julga procedente mandado de injunção75 para construir a norma jurídica do caso concreto, cria o Direito (judge made law), em atividade que muito se assemelha ao juiz do common law.76

Ressalte-se, entretanto, que a possibilidade que o juiz do Estado Constitucional tem de atribuir sentido ao texto normativo, exercendo verdadeiro controle de constitucionalidade (técnicas da interpretação conforme e declaração de nulidade sem redução de texto), não o confere um poder discricionário em sentido forte77 de decidir de forma solipsista, escolhendo a solução subjetivamente. Na verdade, a utilização da teoria dos precedentes judiciais objetiva conter essa discricionariedade, conforme será analisado no decorrer de toda essa investigação.

Embora ainda não seja o lugar, mas com o intuito de iniciar o debate, tem-se entendimento diametralmente oposto de Hart sobre a atividade criativa do juiz:

73 A lei, decerto, compõe o Sistema Jurídico, seja este tomado como “conjunto composto de enunciados descritivos”, seja na visão de sistema de normas de direito Positivo, “como proposições inter-relacionadas e com um ponto final de referência – o fundamento de validade”. VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 266. A conformidade à Constituição, por esta possuir posição cimeira no sistema jurídico, diz respeito ao mencionado fundamento de validade.

74 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 2. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 98.

75 Conforme descrição do próprio Supremo Tribunal Federal, Mandado de Injunção é uma “ação ajuizada para suprir lacuna legislativa. Busca-se a regulamentação de uma norma da Constituição, quando os Poderes competentes não o fizeram, o que tornou inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, cidadania e soberania. A ordem judicial determinará a prática ou a abstenção de ato, suprimindo a omissão legislativa por meio da integração. No Supremo Tribunal Federal, essa ação é representada pela sigla MI”. Artigos 5º, LXXI; 102, I, "q"; e 150, I, "h", da CF/1988. In: http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=M&id=188, consulta em 13.12.2016. Em 23 de junho de 2016, foi editada a Lei nº 13.300/2016, que disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo e dá outras providências.

76 ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Precedentes vinculantes e irretroatividade do direito no sistema processual brasileiro. Curitiba: Juruá, 2012, p. 44 e MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios, São Paulo: RT, 2010, p. 69.

77 Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Haverá sempre certos casos juridicamente não regulados em que, relativamente a determinado ponto, nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou incompleto. Se, em tais casos, o juiz tiver que proferir uma decisão, em vez de, como Bentham chegou a advogar em tempos, se declarar privado de jurisdição, ou remeter os pontos não regulados pelo direito existente para decisão do órgão legislativo, então deve exercer o seu poder discricionário e criar direito para o caso, em vez de aplicar meramente o direito estabelecido anteriormente.78

Deixando de lado por enquanto a questão da discricionariedade judicial e as técnicas limitadoras dessa prática, tem-se que o constitucionalismo minou praticamente todos os dogmas e mitos da Revolução Francesa79, o que evidenciou ainda mais a necessidade de uma doutrina de precedentes vinculantes, mesmo porque a adoção do sistema de controle difuso de constitucionalidade, com suas vantagens e inconvenientes, aproximou as duas grandes famílias do Direito.80

Segundo Cappelletti, os sistemas de controle de constitucionalidade das leis classificam- se, no aspecto subjetivo ou orgânico, em: i) sistema difuso: “em que o controle pertence a todos os órgãos judiciários de um dado ordenamento jurídico, que o exercitam incidentalmente, na ocasião da decisão das causas de sua competência”; ii) sistema concentrado: “em que o poder de controle se concentra, ao contrário, em um único órgão judiciário”.81

Ainda segundo Cappelletti, o sistema de controle de constitucionalidade norte- americano (difuso) teve forte influência nos países do continente europeu, bem como nas Américas do Norte e do Sul, na África, na Ásia e na Oceania, muitos deles de tradição romano- germânica. A importação do sistema de controle difuso de constitucionalidade norte-americano, muitas vezes, se deu de maneira acrítica e ingênua por países de tradição do civil law, que descuidaram do fato de que para que houvesse êxito em tal modelo, era imprescindível a adoção da regra do stare decisis.82

O funcionamento do controle difuso de constitucionalidade estava intimamente ligado à regra do stare decisis, inerente aos países da família do common law. Quando a Suprema Corte decidia sobre a constitucionalidade de lei, todas as demais instâncias do Poder Judiciário encontravam-se vinculadas a tal decisão, a demonstrar a eficácia erga omnes dos julgamentos

78 HART, Hebert L. A. The concept of law. Oxford: Clarendon Press, 1993, p. 135.

79 MERRYMAN, John Henry. La tradición jurídica romano-canónica. 2. ed. México: FCE, 1989, p. 56. 80 Não se pode deixar de observar que nem todos são acordes de que o constitucionalismo contemporâneo implica

numa aproximação entre as tradições do civil law e do common law. Negando as bases do que vem se analisando, por entender que o bilding force no stare decisis no common law não é imposto externamente, mas sim muito debatido processualmente pelos juízes antes de qualquer aplicação de precedentes, o que desconfiguraria qualquer aproximação, conferir: LOPES FILHO, Joaquim Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo contemporâneo brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2014, pp. 105-113.

81 CAPPELLETTI, Mauro. O controle de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 67.

sobre (in)constitucionalidade. Já em países de civil law o sistema de controle difuso ensejou graves inconvenientes, tendo em vista que proporcionou uma série de decisões conflitantes a respeito da constitucionalidade de uma mesma lei.83

Para fugir desses problemas, países de tradição continental, como a Itália e a Alemanha, que haviam aderido ao controle difuso de constitucionalidade, mudaram de ideia e passaram a adotar o modelo de controle concentrado, criando suas cortes constitucionais, com competência exclusiva para decidir sobre a constitucionalidade das leis. Nesse modelo, os juízes ordinários não têm competência para decidir sobre a constitucionalidade das leis, caso surja no curso do processo necessidade de uma decisão incidental sobre inconstitucionalidade, o máximo que se admite é a suspensão do processo e a remessa à corte constitucional84.

Com efeito, em razão das cortes constitucionais passarem a produzir decisões com eficácia vinculante, aparentemente aproximaram-se as duas tradições. O mesmo se diga do Brasil, que embora adote um sistema misto de controle de constitucionalidade, passou a trabalhar com a eficácia vinculante das decisões proferidas sem sede de controle concentrado pela Suprema Corte – posteriormente também do Superior Tribunal de Justiça -, o que denota que o constitucionalismo aproximou as tradições do civil law e da common law também por aqui.