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3 A polícia precisa ser policiada

3.1 A duvidosa prática policial

A prática policial era foco da constante suspeita dos juízes, que tinham a atitude de questionar os procedimentos policiais no momento de tomada dos depoimentos nas delegacias de polícia. (CHALHOUB, 2001) Os contraditórios procedimentos policiais fazem parte do que Moreira (1995) descreve, ao constatar que a ação policial era objeto de críticas tanto da elite, a qual deveria proteger, quanto dos subalternos, os quais deviam ser intimidados por sua atuação profissional. A vigilância policial causava rancor na população, pois “o governo não tinha dinheiro e, no entanto pagava vagabundos para estarem em pé, nas esquinas.” (CHALHOUB, 2001, p. 275) Essa frase, retirada de um processo-crime, enfatiza a aplicação de rótulos sociais ligados às esferas do poder na sociedade, aqui representadas pela atuação policial.

A imposição da presença policial no cotidiano da população não tinha apenas a atribuição de prevenir possíveis crimes contra o patrimônio ou o bem-estar público. Segundo Chalhoub (2001), no estado republicano nascente, o caráter da prática policiesca tinha, antes de tudo, profundas atribuições moralizadoras da sociedade. Tratava-se de uma das linhas de ação governamental, que acreditava ser necessário acomodar e refrear os maus costumes dos trabalhadores nacionais, diante dos novos tempos da modernidade e das necessidades que o mercado de trabalho exigia. (PESAVENTO, 1989)

Na nova sociedade que o estado republicano desejava refundar, na passagem do XIX para o XX, os trabalhadores nacionais, entre eles os policiais, carregavam consigo a herança escravista do período imperial. Estavam imersos em estigmas sociais vinculados aos homens de cor. Estes eram representados pelos homens tidos por “nacionais”, homens estes associados a estereótipos pejorativos que eram base da manutenção do discurso escravista do regime anterior. Em fins do século XIX e início do XX, “não havia uma preocupação com as multidões ou com os trabalhadores organizados”, o foco de tensão da classe dominante era o homem nacional, considerado preguiçoso, indolente e vagabundo. (MAUCH, 2004, p.110)

No Rio Grande, da virada do século XIX para o XX, a retórica antes descrita fazia parte do discurso das elites políticas. (PESAVENTO, 1989) Estas se debatiam entre dois modelos diferenciados de governo. De um lado, estavam representantes dos grandes proprietários de terras e charqueadores, defensores de uma lenta e gradual passagem da mão de obra servil para a livre assalariada através das alforrias condicionais. Do outro lado, estavam os republicanos, contrários em protelar a emancipação total do cativeiro. De acordo com o ideário positivista, a escravidão, naquele momento, se tornara um entrave para atingir a “etapa das sociedades científicas”, de acordo com os estágios evolutivos do homem, baseados nas explicações de August Comte.

Em suma, para os charqueadores do império interessava reter força-trabalho junto à tradicional empresa saladeiril da província. Já os republicanos, que tinham entre as propostas de seu partido o desenvolvimento global do Rio Grande, a partir da diversificação de sua economia, contemplando neste intento as indústrias, encaravam a questão sob outro prisma. (PESAVENTO, 1989, p. 34)

Ambos os lados da disputa política, diante dos novos tempos, teriam que lidar e, por vezes, negociar com as parcelas subalternas da sociedade. As resistências, impostas pelos populares às restrições de seu cotidiano nas ruas, eram motivo de constante preocupação das autoridades políticas, judiciárias e policiais, pois a manutenção do status de elite mandatária passava pela manutenção das classes subalternas nessa sua condição. (CHALHOUB, 2001) O estado passaria, então, a assumir seu papel de interlocutor com a imensa massa de trabalhadores livres e mestiços, a qual possuía na cor de sua pele a “marca da escravidão”.

A normatização e moralização, impostas à população através da direta interferência do estado por meio da ação repressora de seu policiamento, buscavam alterar costumes e modos de vida. Isso, contudo, não aconteceu de forma homogênea, nem sem gerar muitos conflitos e confusão de papéis naquele conturbado período político. (MAUCH, 2004) O caráter moralizador e progressista do Partido Republicano Rio - grandense, ao assumir o governo do estado em fins do ano de 1892, ficou claro a partir de sua postura política, ao considerar que: “Garantir a ordem para obter o progresso era uma tarefa precípua do Estado, para o que deveria o governo tomar providências que assegurassem a submissão da classe trabalhadora.” (PESAVENTO, 1988, p.153) Essa postura política foi acentuada pelo contexto social de 1893, com a Revolução Federalista, que transformou policiais em militares e militares em policiais, em uma clara indefinição de funções.

Os documentos policiais referentes ao período mostram um quadro bastante confuso do policiamento na capital. Embora a partir de sua criação, fosse oficialmente a guarda municipal a responsável pelo policiamento da cidade, alguns documentos e notícias de jornais dão conta de que as funções do policiamento de Porto Alegre eram exercidas também por outras corporações. (MAUCH, 2004, p. 143)

A partir disso, surgem sucessivas tentativas de organização e profissionalização do policiamento, que esbarraram na inexistência de um saber ser policial, recaindo nas mesmas indefinições de papéis entre os praças das guardas municipais, os do exército federal e os da Brigada Militar. Esta última foi constituída, em 1892, para combater a oposição federalista que se armava e queria retomar o governo do estado. Esse confuso cenário só vem acentuar a falta de prestígio do policial perante as demais classes profissionais. Ainda mais em uma sociedade profundamente marcada por preconceitos étnicos e com grande hierarquização social, na qual a presença de homens de cor na polícia causava um forte desprestígio para a profissão.

O desprezo pela profissão de policial era agravado pelas indefinidas atribuições dos órgãos de controle e repressão social do governo. O que abriu espaço para o que Mauch (2004) chamava de “poder discricionário do policial”. Devido à falta de técnicas, normas e regulamentos claros que dessem amparo ao policial diante dos inúmeros e imprevistos acontecimentos do dia a dia, o policial se viu na situação de “intérprete das leis e um árbitro das normas morais e sociais.” (MAUCH, 2004, p.176)

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