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3 A polícia precisa ser policiada

3.2 A nova polícia que não era tão nova assim

É nesse contexto de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais, descrito anteriormente, que se insere a já mencionada criação da Brigada Militar, em 1892. Esta instituição militar e policial foi constituída no calor das disputas político-ideológicas e nas vésperas da Revolução Federalista de 1893, no estado do Rio Grande do Sul. Na época, o estado estava dividido entre republicanos (ou castilhistas) e federalistas (ou gasparistas). A partir desse momento, “a Brigada Militar começou a exercer um papel significativo na história do Rio Grande do Sul, principalmente como um aparato político do governo castilhista, que usou desse meio militar para manter-se (...) no poder do Estado.” (MAFFI, 2008, p. 24)

A constituição dos efetivos da Brigada Militar torna-se importante recurso de análise, para compreendermos o seu papel social na sociedade de então. Quem eram os homens que compunham e vestiam a farda desta importante instituição mantenedora da ordem pública e um dos sustentáculos dos republicanos no poder político do Rio Grande do Sul? A partir desse questionamento, pesquisamos os livros de assentamento de praças do período pós- revolucionário, tendo por referencial de partida o ano de 1895, data em que foram abertos os livros por nós utilizados.

A Brigada Militar terá a seguinte formação: três corpos, sendo dois Batalhões de Infantaria e um Regimento de Cavalaria num total de 1266 homens. Também haverá a formação de três corpos da reserva nas mesmas condições da força ativa. As forças de reserva serão arregimentadas e organizadas para que possam entrar em ação quando necessária à manutenção da ordem. (MORAIS, 2002, p.49)

Entre as organizações militares da Brigada Militar, escolhemos, como objeto de nossas análises, o 1° Regimento de Cavalaria (1° RC), que, nos dias atuais, é o 1° Regimento de Polícia Montada (1° RPMon), sediado no município de Santa Maria. A escolha foi feita porque, desde sua criação, quando da constituição da própria Brigada Militar, é este corpo militar o principal responsável pelo policiamento na região central do estado.

Ao nos questionarmos sobre o período histórico da República Velha no estado do Rio Grande do Sul, saímos em busca de uma bibliografia que abordasse a construção do cenário político-social para nosso recorte temporal. Entretanto, as imagens construídas a partir das primeiras leituras chocaram-se frontalmente com as da leitura dos livros de assentamento de praças da Brigada Militar.9 Neles esperávamos encontrar a expressão material da imagem de um estado profundamente composto de imigrantes italianos e alemães, entre outros grupos de imigrantes europeus, que compõem a tradicional história da composição étnica de nosso estado. Os grupos étnicos, que esperávamos encontrar nos efetivos da Brigada Militar, não se faziam presentes de forma massiva. A imagem, que passamos a vislumbrar desses efetivos, era composta por nacionais, ou melhor, por homens de cor.

9 Os dados por nós quantificados estão nos seguintes livros de Assentamento de Praças da Brigada Militar: Livro n° 1 (1895 - 1903) do 1° Esqd, Livro n° 1 (1895 - 1902) do 2° Esqd, Livro n° 1 (1895 - 1903) do 3° Esqd, Livro n° 1 (1895 - 1904) do 4° Esqd, todos arquivados no Centro Histórico Coronel Pilar sediado nas dependências do 1° RPMon (1° Regimento de Polícia Montada de Santa Maria-RS).

GRÁFICO 1 - EFETIVO DA BRIGADA MILITAR (1895 – 1903)

Fontes: Estão arquivados no Centro Histórico Cel. Pilar, sediado no 1° RPMon - SM

A imagem e os números contidos nesse gráfico são tentadores para emitirmos pareceres a respeito da composição social da virada do século XIX para o XX. Isso porque seria plausível ali encontrarmos uma representação, uma amostra da sociedade da República Velha no estado do Rio Grande do Sul. Nos livros de assentamento de praças dos quatro esquadrões do 1° Regimento de Cavalaria, com expressiva maioria, destacam-se os “homens de cor”, relacionados nesses livros, o que poderia nos conduzir a uma falsa imagem social do período. O que nos chama a atenção, ainda mais, para a composição étnica da corporação militar e policial do período, em função de que se esperava um percentual majoritário de homens brancos no ofício policial em virtude de o Estado do Rio Grande do Sul ser marcado pela imigração europeia.

Se não levarmos em consideração as praças sem identificação, os números são reveladores. Temos 65,89% de homens de cor, contra 34.11% de homens descritos como brancos. Esses números nos revelam um importante fator, que vem a somar-se a já desprestigiada e malvista atuação dos policiais, os “morcegos”.10 Esses, além de terem que enfrentar a má vontade da população, em função de sua intromissão no cotidiano popular, tinham que carregar consigo os estigmas sociais ligados aos homens de cor, em uma sociedade com a escravidão ainda bem viva na memória.

10“Não era à toa que os policiais atraíam o rancor popular, sua presença cada vez maior limitava os espaços de relativa autonomia dos pobres urbanos – daí serem classificados de MORCEGOS, pois deviam permanecer escondidos, aparecendo rapidamente acabando com as desordens”. (MOREIRA, 1995, p.61)

1 11% 2 30% 3 59%

1) Praças sem identificação 2) Praças identificados como brancos

3) Praças identificados como Homens de cor.

O efetivo total do 1° RC , contido no 1° livro de assentamento de praças de cada um dos quatro esquadões é de: 1508 homens.

GRÁFICO 2 - OS HOMENS DE COR

Fontes: Arquivadas no Centro Histórico Cel. Pilar - 1° RPMon - SM

Segundo Mauch (2004), as constantes críticas feitas pelos jornais de Porto Alegre a respeito da qualidade do serviço policial, inúmeras vezes, eram direcionadas ao policial e não à instituição que ele representava. Criticavam a prática do policial por vê-la muito aquém do discurso das autoridades do recém

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nascido regime republicano que se instalava. Discurso em que se desejava a formação de uma moderna e eficiente polícia, calcada em preceitos de boa conduta e moralidade, os quais seriam compatíveis com os novos e desejados tempos de sociedade civilizada e moderna. O “bom policial” deveria ser “reflexo” e consequência dessa sociedade.

Quando a formação do “bom policial” pela instituição torna-se deficiente, o agente vê-se na contingência de tomar decisões baseadas quase que unicamente na sua própria apreciação dos indivíduos e dos conflitos. De forma que, ao classificar ou distinguir os indivíduos através de atribuições de valores à sua cor, sexo, idade, posição social e nacionalidade, o policial certamente estará ativando estigmas social e culturalmente aceitos. (MAUCH, 2004, p. 119)

A partir dessa conclusão, Mauch considera que, na falta de uma estrutura específica de formação e seleção dos policiais, eles recorriam a sua experiência de vida na hora de avaliar e analisar essas práticas cotidianas de confronto, as quais também estavam de acordo com a população de modo geral. Suas “avaliações calcadas no senso comum” faziam parte da constituição do “ser policial” e estavam ligadas ao seu contexto social de origem com o qual interagiam. 373 222 195 74 864 0 100 200 300 400 500 600 700 800 900 1000

Indios Pretos Pardos Morenos

ou Mulatos

Total

Quantidade

Dados retirados dos 4 primeiros livros de assentamento de praças (1895 - 1903). Total de indios: 373 - Total de pretos: 222 - Total de pardos: 195 - Total de morenos ou mulatos: 74

Moreira (1995), a partir da correspondência dos chefes de polícia dos anos finais do Império, demonstra a preocupação destes para com o baixo número de policiais, considerado insuficiente pelos delegados para garantir a propriedade. “Os relatórios do período constantemente enumeravam a precariedade da força policial como uma das causas da criminalidade.” (1995, p. 59) Mais adiante, o pesquisador descreve as dificuldades de se obter voluntários para o serviço policial, demonstrando os “abusos e tropelias praticados no recrutamento.” (MOREIRA, 1995, p. 65) Abusos que seriam praticados contra cidadãos pertencentes às classes sociais mais abastadas da sociedade, homens que eram considerados “isentos” do serviço policial e militar, ou seja, este tipo de serviço estaria relegado a homens oriundos das classes sociais subalternas, as quais eram consideradas “classes perigosas”.

A inversão de papéis pesquisada por Carvalho (2005), a partir do levantamento das ocupações dos homens e mulheres arrolados em processos de crimes, tem seu paralelo na composição étnica das praças da Brigada Militar. A autora descreve o peso simbólico que tinha perante a justiça o ser europeu na hora do discurso de defesa dos réus com origem estrangeira, mesmo que parte significativa desses imigrantes não compartilhasse “o que se propagava sobre eles.” (2005, p. 99) O reflexo dessa inversão de papéis é, ironicamente, ser o homem nacional o principal responsável pela manutenção da ordem e um regulador da moralidade pública, ao menos era esse o desejo e discurso das autoridades no Rio Grande, segundo. (PESAVENTO, 1988)

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