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4 O CAMPO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR EM SAÚDE E OS HOSPITAIS

4.3 A Ebserh: origem, caracterização e estrutura organizacional

A decisão do governo federal pela criação da Ebserh integrou um conjunto de medidas adotadas no início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) que visava sanar os problemas de ordem institucional, financeira, estrutural e de pessoal pelos quais os hospitais de ensino vinham enfrentando nas últimas décadas. Esse conjunto de medidas resultou da avaliação e diagnóstico situacional dos hospitais universitários e de ensino, efetuado a partir

de 20039, por uma Comissão Interinstitucional – formada por representantes de Ministérios, Associações, Conselhos e outros setores10 – com o objetivo de reorientar e/ou formular a política nacional para o setor (BARROS, 2014; GOMES, R., 2016; TORO, 2005).

Do ponto de vista jurídico-normativo, o esboço inicial da Ebserh se deu com a publicação da Medida Provisória nº 520, de 31 de dezembro de 2010. Tal medida provisória, entretanto, não foi aprovada por decurso de prazo, tendo em vista intensas mobilizações da comunidade universitária (ANDREAZZI, 2013; BARROS, 2014; GOMES, R., 2016). Diante disso, o governo propõe o Projeto de Lei nº 1.749 em 05 de julho de 2011, que se transformou na Lei nº 12.550 em 15 de dezembro de 2011, aprovando a criação da Ebserh.

Segundo o artigo 3º da Lei 12.550/2011,

a EBSERH terá por finalidade a prestação de serviços gratuitos de assistência médico-hospitalar, ambulatorial e de apoio diagnóstico e terapêutico à comunidade, assim como a prestação às instituições públicas federais de ensino ou instituições congêneres de serviços de apoio ao ensino, à pesquisa e à extensão, ao ensino-aprendizagem e à formação de pessoas no campo da saúde pública, observada, nos termos do art. 207 da Constituição Federal, a autonomia universitária (BRASIL, 2011b).

São competências da Ebserh:

I - administrar unidades hospitalares, bem como prestar serviços de assistência médico-hospitalar, ambulatorial e de apoio diagnóstico e terapêutico à comunidade, no âmbito do SUS;

II - prestar às instituições federais de ensino superior e a outras instituições congêneres serviços de apoio ao ensino, à pesquisa e à extensão, ao ensino- aprendizagem e à formação de pessoas no campo da saúde pública, mediante as condições que forem fixadas em seu estatuto social;

III - apoiar a execução de planos de ensino e pesquisa de instituições federais de ensino superior e de outras instituições congêneres, cuja vinculação com o campo da saúde pública ou com outros aspectos da sua atividade torne necessária essa cooperação, em especial na implementação das residências médica, multiprofissional e em área profissional da saúde, nas especialidades e regiões estratégicas para o SUS;

9 A Portaria Interinstitucional nº 562, de 12 de maio de 2003, que inicialmente instituiu a Comissão para avaliação e diagnóstico da situação dos Hospitais Universitários e de Ensino no Brasil, foi revogada e passou por várias reedições, sendo a Portaria Interministerial nº 41, de 8 de janeiro de 2010, a última instituída para a consecução do seu objeto.

10 A Comissão para avaliação e diagnóstico da situação dos Hospitais Universitários e de Ensino no Brasil abrangeu: Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Ministério da Ciência e Tecnologia, Conselho Nacional de Secretários de Saúde, Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, Associação Brasileira de Hospitais Universitários e de Ensino, Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior, Associação Brasileira de Reitores das Universidades Estaduais e Municipais, Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Associação Brasileira de Educação Médica, Associação Brasileira de Enfermagem e Direção Nacional dos Estudantes de Medicina (BRASIL, 2010c).

IV - prestar serviços de apoio à geração do conhecimento em pesquisas básicas, clínicas e aplicadas nos hospitais universitários federais e a outras instituições congêneres;

V - prestar serviços de apoio ao processo de gestão dos hospitais universitários e federais e a outras instituições congêneres, com implementação de sistema de gestão único com geração de indicadores quantitativos e qualitativos para o estabelecimento de metas; e

VI - exercer outras atividades inerentes às suas finalidades, nos termos do seu estatuto social (BRASIL, 2011b, [p.1]).

As atividades de prestação de serviços de assistência à saúde, segundo o artigo 3º da Lei 12.550/2011, estarão inseridas integral e exclusivamente no âmbito do SUS, observadas as orientações da Política Nacional de Saúde, de responsabilidade do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011b). Todavia, o parágrafo 3º desse artigo assegura à Ebserh o ressarcimento das despesas com o atendimento de consumidores e respectivos dependentes de planos privados de assistência à saúde (BRASIL, 2011b), configurando de forma clara a possibilidade de criação de mecanismos para obtenção de recursos financeiros por outras vias – o que, a nosso ver, estaria em contradição ao que preconiza o SUS, pois favoreceria a demanda oriunda da clientela de planos privados em detrimento da demanda oriunda da população mais carente que depende exclusivamente do sistema público de saúde.

No que diz respeito ao ensino, à pesquisa e à extensão, a Ebserh tem como competência servir de apoio à essas atividades, não ficando claro, todavia, como viabilizar financeiramente esse apoio por meio da destinação de recursos específicos para essas áreas nos hospitais. Percebe-se, assim, a intenção da Ebserh em admitir a responsabilidade das Universidades para o ensino, pesquisa e extensão – fato que pode ser evidenciado em seu Estatuto Social, quando menciona que, no exercício de suas atividades, a Ebserh estará orientada pelas “políticas acadêmicas estabelecidas no âmbito das instituições de ensino” (EBSERH, 2018b). Isso torna-se mais evidente quando observamos que a Lei 12.550/2011 faz referência à garantia da autonomia universitária (BRASIL, 2011b).

Com sede e foro em Brasília, Distrito Federal, a Ebserh poderá manter escritórios, representações, dependências e filiais em outras unidades da Federação (BRASIL, 2011b). À Sede compete a articulação, a coordenação, o monitoramento, a avaliação, o planejamento e a gestão das finalidades da Empresa, enquanto às Filiais – conjunto de hospitais universitários federais sob gestão da Empresa – compete a prestação direta da atenção à saúde, bem como a integração respectiva ao ensino e à pesquisa (EBSERH, 2016).

Segundo o parágrafo 1º do artigo 10 do seu Regimento Interno, a Ebserh Sede será administrada por uma Diretoria Executiva, composta pelo Presidente e até seis Diretores, a saber:

I – o Presidente da Ebserh; II - o Diretor Vice-Presidente Executivo (DVPE); III – o Diretor de Atenção à Saúde (DAS); IV – o Diretor de Gestão de Pessoas (DGP); V – o Diretor de Administração e Infraestrutura (DAI); VI – o Diretor de Orçamento e Finanças (DOF); e VII – o Diretor de Gestão de Processos e Tecnologia da Informação (DGPTI) (EBSERH, 2016).

Na exposição de motivos encaminhada à época ao Presidente da República, os então Ministros de Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) e da Educação (MEC) do Governo Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) – Miriam Belchior e Fernando Haddad, respectivamente – entendiam que a existência de uma instância centralizada no MEC coordenando as atividades desses hospitais, permitiria uma gestão integrada para a obtenção de ganhos de escala e especialização nos processos de compras; e também em processos finalísticos, na aquisição e disseminação de tecnologias e na gestão de pessoas (BRASIL, 2010b; 2011a). Todavia, essa gestão integrada, no nosso entendimento, “não integra” as áreas de ensino, pesquisa e extensão, haja vista não existir no organograma da Ebserh Sede (Anexo A) uma diretoria para as referidas áreas, ficando essas pastas à cargo da Coordenadoria de Formação Profissional e da Coordenadoria de Pesquisa e Inovação Tecnológica, subordinadas diretamente ao Presidente da Empresa, que, por sua vez, não tem assento com voto na Diretoria Executiva da Ebserh Sede, o que se revela bastante contraditório, tendo em vista a natureza formativa dos HUF e ainda a vinculação da Ebserh ao Ministério da Educação.

Não obstante, para que a Ebserh possa cumprir suas competências, é necessário que ela firme contrato de gestão com os HUF, observando os seguintes pontos: (1) as obrigações por parte da Ebserh e dos HUF; (2) as metas de desempenho, indicadores e prazos de execução; e (3) o acompanhamento e avaliação, contendo critérios e parâmetros a serem aplicados (EBSERH, 2016). É preciso ressaltar, entretanto, que essa adesão se colocou para muitos HUF como uma imposição e como única alternativa (BARROS, 2014; SODRÉ et al., 2013), em função do cenário de crise generalizada, das problemáticas particularizadas de cada instituição, e principalmente em função da descontinuidade de autorização para realização de concursos públicos, via autarquia, para a contratação de servidores para esses hospitais.

A configuração da personalidade jurídica da Ebserh na forma de empresa pública de direito privado levou em consideração as experiências de autonomia adotadas pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) – empresa pública federal vinculada ao Ministério da

Educação – e pelo Grupo Hospitalar Conceição (GHC) – sociedade de economia mista vinculada ao Ministério da Saúde. O argumento dos formuladores da Ebserh era que tais instituições são dotadas de autonomia administrativa e orçamentária, gestão profissionalizada e mecanismos de governança colegiada, o que promove a sua inserção estratégica no ambiente de atuação e na administração pública (BRASIL, 2010b; 2011a). Vale destacar que o HCPA, fundado desde 1971 como empresa pública de direito privado, tem a contratação de todos os seus funcionários sob o regime celetista (HCPA, [201-?]), não coexistindo nesse hospital dois regimes de trabalho como acontece nos demais HUF filiais da Ebserh. Além disso, o HCPA tem dupla porta de entrada e parte da clientela atendida é oriunda de planos privados (HCPA, [201-?]), contrariando os princípios do SUS.

O formato de empresa pública com personalidade jurídica de direito privado que caracteriza a Ebserh é definida no inciso II do art. 5º do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, e no art. 5º do Decreto-Lei nº 900, de 29 de setembro de 1969 (BRASIL, 2011b). Segundo o inciso II do artigo 5º do Decreto-Lei nº 200/1967, com a redação alterada pelo Decreto-Lei nº 900/1969, denomina-se empresa pública

[...] a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criada por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito (BRASIL, 1967).

O caput do texto acima dispõe que, desde que a maioria do capital votante permaneça de propriedade da União, será admitida, no capital da empresa pública a participação de outras pessoas jurídicas de direito público interno bem como de entidades da administração indireta da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios (BRASIL, 1969). A Ebserh representa, dessa forma, uma enorme mudança na operacionalização e no financiamento dos HUF, já que além da possibilidade de recursos oriundos da União, poderão ser obtidas outras receitas que variam desde a prestação de serviços a aplicações financeiras, a divisão de dividendos, conforme artigo 8º da Lei nº 12.550 (BRASIL, 2011b).

Vale destacar que os recursos provenientes do Ministério da Saúde e de outras fontes, inclusive do Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais de (Rehuf), cuja responsabilidade pelo Comitê Gestor ficou a cargo da Empresa após sua criação, deverão ser transferidos à Ebserh durante a vigência do contrato com o hospital filial (EBSERH, 2013a).

Destinado à reestruturação e revitalização dos hospitais universitários federais integrados ao SUS, o Rehuf foi instituído pelo Decreto 7.082, de 27 de janeiro de 2010. Seu objetivo é “criar condições materiais e institucionais para que os hospitais universitários federais possam desempenhar plenamente suas funções em relação às dimensões de ensino, pesquisa e extensão e à dimensão da assistência à saúde” (BRASIL, 2010a). O referido Decreto estabelece e orienta-se pelas seguintes diretrizes:

I - instituição de mecanismos adequados de financiamento, compartilhados entre as áreas da educação e da saúde; II - melhoria dos processos de gestão; III - adequação da estrutura física; IV - recuperação e modernização do parque tecnológico; V - reestruturação do quadro de recursos humanos dos hospitais universitários federais; e VI - aprimoramento das atividades hospitalares vinculadas ao ensino, pesquisa e extensão, bem como à assistência à saúde, com base em avaliação permanente e incorporação de novas tecnologias em saúde (BRASIL, 2010a).

Não obstante, Barros (2014), Araújo (2016) e Gomes, R. (2016) explicam que o Rehuf não atendeu às necessidades dos HUF, em particular a modernização da gestão e a recomposição da força de trabalho, fato que abriu precedentes para a criação da Ebserh.

Assim, para os formuladores da política da Ebserh, havia convincentes argumentos que atestavam a necessidade de criação de uma empresa pública de direito privado para a administração dos hospitais universitários federais. As Exposições de Motivos Interministeriais acerca da Medida Provisória e do Projeto de Lei da Ebserh defendiam que a Empresa traria a solução para os problemas prementes dos HUF, criando condições para a melhoria substancial dos padrões de gestão, inclusive pela adoção de instrumentos avançados de controle de resultados e transparência perante a sociedade. Alegava-se que, sem personalidade jurídica própria, os HUF gozavam de limitada autonomia administrativa para a gestão das suas atividades e serviços (BRASIL, 2010b; 2011a).

Por conseguinte, a empresa pública foi considerada a alternativa e solução jurídico- institucional mais adequada e sustentável para essas complexas instituições, pois permitiria uma desejável autonomia financeira, adoção de normas e procedimentos próprios de compras e contratos, além da contratação de pessoal sob o regime celetista alinhado com o mercado de trabalho (BRASIL, 2010b; 2011a). O objetivo era viabilizar um modelo de gestão mais ágil, eficiente e compatível com as competências executivas desses hospitais (BRASIL, 2011a). Contudo, Sodré et al. (2013) alerta para a necessidade de conhecimento e profunda reflexão acerca dessa alternativa de gestão, uma vez que os conflitos existentes em torno da gestão dos HUF são também reflexo da não efetivação plena do SUS.

Desse modo, o argumento acerca: a) da ineficiência da gestão pública a partir dos limites impostos pelo regime jurídico de direito público da administração direta e das autarquias; b) autonomia administrativa restrita; c) infraestrutura degradada; d) quadro de pessoal precário e reduzido, entre outros, foram amplamente difundidos de forma a apontar a Ebserh como única solução para esses hospitais (ANDREAZZI, 2013; GOMES, R., 2016; LAMPERT et al., 2013; SODRÉ et al., 2013), o que vigorou, pois a Empresa tem ganhado espaço e adesão junto às universidades federais.

Figura 02 – IFES com Hospitais Universitários Federais

Fonte: EBSERH ([201-]b).

Atualmente, das 35 universidades federais que possuem hospital universitário, 32 já firmaram contrato com a Ebserh para administrar 40 hospitais universitários (Figura 02). O HUF da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como já mencionado anteriormente, é um caso à parte, pois já configurava como empresa pública de direito privado antes mesmo da criação da Ebserh, servindo inclusive de modelo para concepção da Empresa. Vale salientar que 9 (nove) hospitais universitários seguem sem contrato com a Ebserh, sendo 1 (um) pertencente à UNIFESP e 08 (oito) à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Apesar da oficialização da Empresa, dúvidas e questionamentos quanto à sua efetiva funcionalidade persistiram por algum tempo, tendo em vista as inquietações das

representações sociais acerca da privatização dos hospitais, da perda de direitos dos servidores estatutários e da destituição autonomia universitária.

A respeito disso, é importante anotar que, sob a alegação de o modelo gerencial da Ebserh constituir um projeto com objetivos preponderantemente de mercado, pondo em xeque as diretrizes constitucionais que instituíram o SUS, a Procuradoria Geral da República ajuizou no início 2013 a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de número 4.895 no Supremo Tribunal Federal (STF) em face dos artigos 1º a 17 da Lei nº 12.550/2011, a qual outorga a criação da Ebserh (BRASIL, 2013). A referida ADI, no entanto, foi indeferida pela não regularização da documentação requerida pelo ministro relator Dias Tofolli.

Ainda, mais recentemente, uma audiência pública proposta por meio do Requerimento nº 187/2018-CLP, de autoria do Deputado Glauber Braga, do Partido Socialismo e Liberdade do Rio de Janeiro (PSOL/RJ), foi promovida no dia 07 de junho de 2018 pela Comissão de Legislação Participativa para debater a crise dos Hospitais Universitários pós Lei 12.550/2011. Segundo entrevista do deputado ao Painel Eletrônico (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2018), a crise dos hospitais ainda persiste. Braga apontou que os hospitais não vinculados à Ebserh tem sofrido perseguição e pressão para adesão à Empresa. Na audiência, representante da Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra Sindical) defendeu a extinção da Ebserh e do fortalecimento dos HUF e do seu viés público. Apenas o representante da própria Ebserh defendeu a Estatal (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2018).

No próximo capítulo discutiremos as premissas que permeiam o argumento de modernização da gestão pública e a abordagem do ciclo contínuo e políticas, pois compreendermos que ambas as discussões constituem referenciais teórico-analíticos apropriados para a compreensão do nosso objeto de estudo.

5 AS PREMISSAS DE MODERNIZAÇÃO DA GESTÃO PÚBLICA E A