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CAPÍTULO 2 EXPLORANDO A MATERIALIZAÇÃO

2.2. Dinâmicas e emergências paradigmáticas no campo ambiental

2.2.1 A “economia do mundo cheio” e suas vicissitudes

A economia foi reestruturada com a influência da Ciência, marcando

grandemente a era moderna24, podendo-se dizer que a modernidade traz como uma

das principais características o estabelecimento da economia capitalista no mundo, onde o Estado assume papel de gerenciador em sintonia com as teorias econômicas de cada época.

Cabe destacar que teorias econômicas de grande influência tinham como pressuposto a possibilidade do crescimento ilimitado. Em meados do século XIX, a população mundial pouco passava de um bilhão de habitantes no planeta, ou seja, menor que a atual população chinesa e praticamente não utilizávamos combustíveis fósseis. Neste contexto, não se percebiam que os recursos naturais impunham limites ao crescimento, não eram considerados escassos e, deste modo, o crescimento podia ser ilimitado.

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Concomitantemente ao início do processo de modernização também nasce à matriz teórica da economia capitalista. A ciência, através de sua previsibilidade inabalável, tem na economia um de seus pilares de sustentação, a qual tenta dar um sentido, reflexivamente, para as ações científicas, ou seja, como em todos os outros âmbitos da sociedade.

As transformações deste último século, ocasionadas com grande influência da intervenção técnico-científica, levaram a sociedade a uma explosão demográfica impressionante, ao mesmo tempo, o tempo médio de vida foi aumentando e as sociedades ocidentais exploravam mais a sua força de trabalho com base em tecnologia. Enfim, o crescimento econômico aconteceu no contexto de crença acerca dos potenciais ilimitados da revolução técnico-científica. O encontro entre a cultura científica, que se encantava com o desenvolvimento tecnológico pós-petróleo com a conjuntura política dos Estados-nações, que favoreciam o intercambio de recursos naturais e humanos, possibilitaram níveis altíssimos de instrumentalização da natureza. O “projeto moderno” avançava, diminuindo, cada vez mais, as restrições para a vida humana no planeta, contudo, a utopia moderna tornou-se acessível para uma ínfima parte da população. Ou seja, a desigualdade nas sociedades ocidentais representa a grande realidade e, aqueles Estados-Nação que atingem sistemas sociais mais igualitários com padrões de vida elevados – no consumo de recursos - dependem da externalização de custos e da degradação ambiental e social de outras sociedades desta rede para manterem-se “igualitários”.

Ambientalmente, avalia-se que mesmo que tenhamos condições tecnológicas e políticas para produzir suficientes recursos à toda a população, não conseguimos manter o processo por longos períodos e, muito menos, distribuir igualitariamente estes recursos gerados. Sobretudo, constata-se que o modelo estabelecido resultou na emergência de um problema inédito, o risco de finitude de recursos naturais essenciais à sociedade.

Assim, invariavelmente, o sistema econômico capitalista, apesar de ter trazido inúmeros benefícios a espécie humana, levou ao desequilíbrio ambiental, o que configura, atualmente, uma crise. Esta crise veio a ser “revelada” a partir de um conjunto de contribuições.

O livro de Rachel Carson (Silent Spring), por exemplo, trouxe (para a ciência) a tona um dos problemas mais complexos a ser resolvido pela humanidade, sua sustentabilidade. Revelando o caráter inter-relacional dos diversos sistemas que formam este planeta e, evidenciando sua finitude, a autora explicita seu manifesto de insatisfação com o impacto das atividades industriais e recoloca em pauta a necessidade de um entendimento mais profundo da ecologia e assim, do avanço da ciência. Outros cientistas que pioneiramente revelaram suas preocupações ambientais, entre eles:

- Paul Bigelow Sears (1891-1990), botânico e estudioso dos processos de desertificação em escala planetária;

- Aldo Leopold (1887-1948), engenheiro florestal, deu origem a disciplina denominada “manejo da vida silvestre”;

- Paul R. Ehrlich (1932), biólogo, fez grande referência as questões que envolviam os problemas relacionados ao crescimento populacional;

- Garret James Hardin (1915-2003), zoólogo, preocupou-se grandemente pelas dimensões sociais e políticas, revelando a necessidade de se utilizar os recursos naturais para o interesse coletivo e não individual, e;

- James E. Lovelock (1919), químico, levantou a idéia do planeta como um organismo vivo através da controversa “teoria de Gaia”, revelando sua capacidade auto-regulatória e contribuindo para a visualização da Terra em escalas de tempos mais amplas, deste modo, evidenciou sua característica sistêmica ou holística. Também observou, pioneiramente, os efeitos das altas concentrações de gases CFC na camada de ozônio.

Muitos destes autores, ao questionarem os paradigmas estabelecidos na economia, buscam que a ciência reconheça que, ao contrário da ótica econômica hegemônica, a terra é finita e que o crescimento desenfreado da economia é insustentável. Neste propósito, também emergiram polemicamente os relatórios desenvolvidos pelo Clube de Roma (Limits of Growth), pela Comissão Brundtland (Relatório Brundtland) e pela ECO-92 (Agenda 21), respectivamente. Revelando a característica antiecológica e, simultaneamente, antieconômica, estes documentos consolidam, mundialmente, as críticas acerca do modelo de gestão da economia e acoplam, assim, o discurso da sustentabilidade às propostas que se vinculam ao avanço deste sistema em nível global. Tomou-se consciência de que a antropização da Terra passa a significar um risco para a própria espécie, da mesma forma com que o sistema econômico capitalista contribuiu para impulsionar a sustentabilidade

humana25. Assim, novos paradigmas econômicos surgem para indicar alternativas

aos paradigmas hegemônicos.

2.2.2 Uma economia que ajusta-se aos limites naturais

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O economista Herman E. Daly faz contribuições significativas para a construção de um novo paradigma, destacando a necessidade de introduzir ao sistema econômico atual uma perspectiva mais ecológica. Para o autor, o fato de que a humanidade passou de 10% a 40% do consumo da fotossíntese líquida do planeta em 70 anos (dois ciclos geracionais) expõe a dimensão da ocupação da energia do planeta pelo homem, ao mesmo tempo em que revela que as formas com que exploramos os recursos naturais são desfavoráveis a sua manutenção e renovação. Deste modo, o autor evidencia, baseado na economia ecológica, alguns pontos que podem contribuir para a redução no ritmo deste processo de antropização e, introduzir, através da exploração menos intensa dos recursos naturais, maior estabilidade nas atividades produtivas.

De modo geral, Daly expõe que haveria a necessidade de promover estratégias para alcançar o ponto de inversão, isto é, argumenta que até o momento

a economia preocupou-se com o acúmulo de capital de origem humana26 em

detrimento do capital natural, que acabou sendo sobreexplorado, pois este não era percebido como recurso finito. Como conseqüências deste processo, todo o avanço sobre a técnica, sobre os meios de produção e a própria especialização funcional se vêem ameaçadas atualmente pela escassez de capital natural, pois o capital de origem humana depende da disponibilidade destes bens e serviços. A crise ambiental ameaça, entre tantas coisas, também os avanços produzidos pela sociedade durante a modernidade, sendo assim, para Daly esta seria a ocasião para inverter a lógica econômica e passar a investir para o avanço do capital natural, promovendo com isso, a rentabilidade da continuidade das atividades econômicas.

Uma mudança da economia com vistas a monitorar o capital natural implicaria um conjunto de desafios específicos no âmbito da teoria e dos instrumentos de gestão econômica. Geralmente, os valores econômicos aplicados aos bens e serviços se baseiam na quantidade de capital de origem humana incorporado, no entanto, com a inversão desta lógica, deveria haver um ajustamento dos mesmos para refletir a utilização e a capacidade de formação do capital natural, buscando um ponto em que a produção humana e a natural alcancem o equilíbrio e, concomitantemente, diminuíndo os riscos de abalar a continuidade destes processos. Mas, para isso o “valor ecológico” de um bem ou serviço haveria de ser

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traduzido em termos monetários. E é exatamente a necessidade de valorar os recursos naturais que dificulta todo este processo, ou seja, como chegar à exigida quantificação em algo que é extremamente complexo e relativo. Como dar valor a natureza?

Tradicionalmente as quantificações de bens e serviços envolvem avaliação de custo-oportunidade levando a sociedade a questionar-se de quanto estará disposta a abrir mão em nome da segurança e qualidade de vida no futuro, em nome da sustentabilidade? Qual é a percentagem da natureza e da economia que estaremos dispostos a eliminar para atingir este equilíbrio27?

Entende-se que os limites de uma abordagem centrada na internalização monetaria dos custos ambientais (da privatização) se tornam evidentes, chegando a significar quase o mesmo que não dar valor, pois não contemplam adequadamente às externalidades relacionadas à produção, podendo-se considerar que simplesmente inventou-se a externalização de custos. Em uma ótica da ecologia profunda, considerar-se-ia que dividimos o preço da perda dos ecossistemas e da degradação ambiental com todas as formas de vida do planeta, alguns sofrem mais diretamente estas conseqüências que outros, da mesma forma que alguns recebem mais benefícios que outros. Durante todo este processo, vamos gastando a energia que retiramos de Gaia, dividindo custos e lucros e quem coordena este processo recebe a parte que ele mesmo escolhe, diferentemente de outros tantos seres vivos que somente vêem a parte em que intervêm.

Considera-se que no referente ao campo das externalidades revelamos ao máximo nosso caráter reducionista, a fragmentação de nosso pensamento e nosso engessamento mental perante a um sistema totalmente contraditório. A superação deste reducionismo possivelmente passaria por trazer ao debate na arena pública as questões relativas aos conflitos ambientais. Deste modo, entende-se que é necessário aprimorar mecanismos para aumentar nossa capacidade de pensar sistemicamente, uma delas seria o desenvolvimento qualificado da justiça ambiental, para que os responsáveis e os beneficiários pelos danos ambientais

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Para alguns de nós, ocidentais, talvez pareça fácil responder esta pergunta, aliás, o nosso reducionismo nos permite respondê-la, porém para aqueles que não pertencem as vertentes culturais judaico-cristãs esta pergunta talvez seja inquestionável, porque seria o mesmo que perguntar, qual parte de ti que você estaria disposto a eliminar?

sejam obrigados a reduzir, cada vez mais, seu campo de ação28. Contudo, mesmo que conseguíssemos a aplicação de uma justiça ambiental consistente, chegaríamos novamente ao mesmo ponto, que valor dar a natureza e a todos os elementos que a ela se agrupam? A complexidade deste fato nos direciona a reconhecer o caráter incomensurável da natureza, o que pode vir a implicar a necessidade de uma nova abordagem da economia, um novo paradigma, baseado em reflexões profundamente ecológicas (simbióticas), assumindo uma postura humana e uma consciência de espécie, contribuindo para tornar mais visível para a sociedade a parcela de cada indivíduo sobre a degradação ambiental.

2.2.3 Uma economia em simbiose com o ambiente: a perspectiva da ecologia profunda

Muitos autores comentam que o berço das sociedades ocidentais interage com a emergência dos valores socioculturais propostos pelas etnias judaico-cristãs, originadas entre o Mar Mediterrâneo e o Golfo Pérsico (PERLIN, 1992; VIVAN, 2001). A partir do sedentarismo proporcionado pelo desenvolvimento da agricultura nesta região, estabeleceram-se valores culturais que avançavam para uma perspectiva de instrumentalização do ambiente e dos seres vivos que o compõem.

Outra crença complementar identifica que os valores culturais emergentes no contexto das etnias judaico-cristãs não indicavam a ascensão de relações imateriais com o ambiente. O monoteísmo personificado proporcionava sólidos fundamentos para a instrumentalização da natureza, pois os fenômenos naturais foram vinculados com uma entidade superior à natureza e esta era fonte de sua criação. Como filhos desta entidade, a natureza haveria sido criada para seus filhos, podendo ser usada a seu bel-prazer.

2.2.4 Identificando convergências

As sociedades capitalistas desenvolveram-se perseguindo o crescimento ilimitado. Tal postura veio a ser questionada, propondo-se paradigmas alternativos,

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O que, de certa forma, acontece, mas dificilmente em escala global, os países que possuem legislação muito rígida acabam enviando seus problemas para aqueles que não a tem, ocorre na verdade o deslocamento dos dejetos e da área a ser consumida.

nem todos convergentes entre si. Daly enquanto avança no reconhecimento dos limites dos recursos naturais, não problematiza a postura de instrumentalização da natureza.

Reflexões críticas sobre as perspectivas econômicas indicam a necessidade, atualmente, de uma verdadeira revolução científica no sentido de uma revalorização da natureza. Ou seja, é imprescindível que a ciência desloque seus esforços para um aprofundamento perceptivo da relação sociedade-economia-ambiente, com o intuito de proporcionar condições para sua interação equilibrada e buscando, entre outras coisas, a equidade, a diversidade cultural, a democracia ambiental, os direitos coletivos, a autonomia, a autogestão, a ética e a racionalidade ambiental, enfim, elementos que alterem nossa ótica: de parasitária para a simbiótica com o planeta.

As transições no fazer da ciência haverão de ser acompanhados de alterações nos valores socioculturais. Inclusive, acredita-se aqui, que é exatamente a relação sociedade-natureza que melhor definiria o grau de ocidentalização de uma sociedade, ou seja, a ocidentalização seria o próprio processo de alteração dos valores socioculturais para a instrumentalização da natureza. Em outras palavras, o processo de ocidentalização é o acréscimo de importância da perspectiva material nas relações entre sociedade e ambiente e, a sua conseqüente redução da importância da perspectiva imaterial nestas relações. Assim, quanto maior seria o entendimento de uma sociedade em relação ao seu direito de instrumentalizar o ambiente, maior seria o grau de ocidentalização apresentada pela mesma. Neste contexto, o processo de desbabelização em curso nas sociedades ocidentais pode ser representado, na transição do campo ambiental, pela criação de acessibilidades para a relação imaterial com a natureza, ou seja, um acréscimo na percepção das interações que compõem a teia da vida, ou, um entendimento dos limites das sociedades na instrumentalização dos recursos naturais.