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CAPÍTULO V PROCEDIMENTOS DA PESQUISA DE CAMPO CARACTERIZAÇÃO DA

OUTROS ESPAÇOS

5.5 A efetivação das entrevistas

Na aplicação das entrevistas, optamos pelo desenvolvimento de um formato mais aberto, frente a um delineamento dos tipos predeterminados pelos resultados das análises estatísticas. Desse modo, seguindo as orientações de aplicação de entrevistas compreensivas, as interlocuções seguiram um roteiro semiestruturado de análise. Isso se deu, tomando como

diretriz as técnicas do desenvolvimento de “entrevistas compreensivas” (BOURDIEU, 2011; KAUFFMAN, 1996; FERREIRA, 2014), conforme tais procedimentos foram sendo aplicados na realização desta investigação.

As entrevistas compreensivas constituem um modo mais criativo de entrevistar (FONTANA, 2001; PLATT, 2001). Consistem em uma técnica qualitativa de coleta de informação, que articula formas tradicionais de entrevista semiestruturada com técnicas de natureza mais etnográfica. Parte do entendimento de que nenhuma técnica é neutra, padronizada ou impessoal na recolha de dados (FERREIRA, 2014). Por sua vez, compõe-se de uma estrutura social e discursiva a duas vozes, em diálogo recíproco, a partir das posições que ambos os participantes ocupam na situação específica de uma entrevista, seja de interrogador ou de respondente (PAIS, 2002).

No caso específico desta investigação, tomando como orientação a forma de condução das entrevistas compreensivas e de posse de um roteiro-guia, orientador de temas e questões a serem abordadas, estabeleceu-se um diálogo com o entrevistado. A perpetuação dessa interlocução exigiu certo esforço de improvisação e empatia para a manutenção da conversa e como postura ética, de forma a evitar constrangimentos por parte dos participantes.

Seguindo o desenvolvimento de tal técnica compreensiva, na consecução das entrevistas, verifica-se um discurso mais narrativo que informativo. Desse modo, considerando que a obtenção do que está verdadeiramente em jogo no terreno de análise pode ser favorecido com a aplicação desse método, tomamos tal procedimento a fim de captar especificidades, a partir do corpus coletivo de trajetórias individuais analisadas. Portanto, não abdicamos da coleta de informações complementares, pontuais e específicas acerca da vida e da trajetória escolar e acadêmica dos entrevistados, com a aplicação de um questionário socioeconômico e cultural, que também foi incorporado ao roteiro.

Na coleta de dados realizada, para além das informações de sentido e significado das decisões que balizaram as condutas dos ex-alunos, foram aplicadas questões de caracterização socioeconômica e cultural, bem como foram demandadas informações gerais acerca da trajetória escolar e acadêmica dos entrevistados. Acreditamos que, com a adoção dessa técnica e com a parametrização de algumas questões pontuais e padronizadas, temos um compilado de informação que possibilita entender aspectos das intercorrências da evasão na USP, sob uma perspectiva mais qualitativa.

O roteiro foi composto de questões correspondentes à procedência social, econômica e cultural do estudante em sua família de origem; sua trajetória escolar no ensino fundamental e médio; questões relativas à escolha do curso; número de tentativas no exame vestibular;

momento de ingresso na USP; idade, estado civil e renda no período de ingresso; tempo de permanência e vivência estabelecida na universidade, bem como sua situação/condição de vida hoje.41

Nos depoimentos coletados, dada a especificidade de cada caso, era configurada a singularidade particular de cada história, ao mesmo tempo em que questões mais estruturais despontavam nos relatos obtidos, com mais ou menos ênfase, dada a relevância que o entrevistado dava aos pontos mencionados no roteiro de trabalho. Com essa proposição, objetivamos efetuar um aprofundamento vertical de análise sob um ponto de vista particular de cada depoente, como um tratamento horizontal, de forma a visualizar transversalmente o que é comum e se repete em mais de uma história de vida entre os concluintes e não concluintes dos cursos de graduação da USP, em suas experiências e caminhos percorridos dentro dessa universidade, pontos a serem desdobrados na discussão dos resultados desta pesquisa.

As entrevistas tiveram uma duração média de 1 hora e 22 minutos. Algumas tiveram uma duração mínima de 45 minutos, e uma, muito extensa, durou 3 horas. A duração das entrevistas dependia muito da fala dos entrevistados. Muitas vezes, ao perguntar sobre a natureza e o nome da instituição de ensino no ensino fundamental e médio, o ex-aluno conferia documentos para fornecer uma informação precisa acerca da referência solicitada. Isso se dava, sobretudo quando tinha uma trajetória mais recortada e existia a passagem por diversas escolas. Em outros casos, isso acontecia quando buscava fundamentar a causa de ter estudado neste ou naquele estabelecimento de ensino durante a trajetória escolar. Assim, em um processo de rememorização, buscava-se reconstituir e também ressignificar a trajetória biográfica de maneira revisitada. Nessas circunstâncias, as entrevistas se alongavam mais. Em outras situações, o contexto, para iniciar o diálogo, demandava um tempo maior de familiarização com o entrevistado. Desse modo, dependendo da personalidade ou de algum evento específico que afetava a vida do sujeito investigado no momento da entrevista, era requerida uma demanda maior de tempo e um certo cuidado para introduzirmos os pontos a serem abordados no roteiro. Além dessas questões, observamos um comportamento mais analítico e reflexivo mais recorrente entre as mulheres. Os homens, muito incisivamente, tinham respostas mais curtas, tendiam a ser mais objetivos e menos prolixos. As entrevistas, dentre outros aspectos, observaram essa particularidade.

Com relação à rememorização e à necessidade de significar a trajetória realizada, destacamos, na efetivação das entrevistas, que a reconstituição de percursos das histórias de

vida não se atém a um conjunto dos acontecimentos de uma existência individual concebido como um deslocamento unidirecional e seu relato. Frente a isso, entre as idas e vindas das narrativas, observamos que os investigados tendiam, muito frequentemente, a tornarem-se ideólogos de sua própria história, selecionando, em função de certos acontecimentos significativos, uma conexão entre esses fatos para dar-lhes coerência. Quanto a esse aspecto, ativemo-nos ao seguinte alerta:

É significativo que o abandono da estrutura do romance como relato linear tenha coincidido com o questionamento da visão da vida como existência dotada de sentido de significação e direção. [...] o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório. (BOURDIEU, 1986, p. 185).

Nessa perspectiva, procuramos reconstituir a trajetória do sujeito entrevistado a fim de entender os caminhos percorridos e as escolhas realizadas, de forma parametrizada e circunstanciada ao contexto coletivo em que se inserem. Contudo, mesmo com essa proposição, defrontamo-nos recorrentemente com uma narração linear, coerente, com uma pontuação bem marcada, de início, meio e fim, ou com uma lógica ou proposição orientada desde o ponto de partida, almejando conferir um significado, mediante uma visão de totalidade do percurso empreendido.

Mediante tal circunstância, reiteramos que histórias individuais se definem como colocações e deslocamentos no espaço social, e, mais precisamente, os acontecimentos biográficos ocorrem nos diferentes estados sucessivos da estrutura de distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado (BOURDIEU, 1986). Sendo assim, não podemos assimilar uma trajetória sem que tenhamos configurado o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo. De tal maneira que:

[...] não podemos compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social que, embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do envelhecimento biológico) sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado — pelo menos em certo número de estados pertinentes — ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo estado dos possíveis. Essa construção prévia é a condição de qualquer avaliação rigorosa do que podemos chamar de superfície social, como descrição rigorosa da personalidade designada pelo nome próprio, isto é, o conjunto das posições simultaneamente ocupadas num dado momento por uma individualidade

biológica socialmente instituída e que age como suporte de um conjunto de atributos e atribuições que lhe permitem intervir como agente eficiente em diferentes campos. (BOURDIEU, 1986, p. 190).

Para suprir tais dificuldades, procuramos coletar informações objetivas complementadas pelos motivos subjetivos que definiram os caminhos percorridos pelos entrevistados. Acreditamos que, com essa abordagem, diluímos uma visão totalizante de unificação das práticas e representações passivas das experiências vividas, ao mesmo tempo em que conseguimos uma densidade de informações que nos possibilitou um entendimento das experiências vividas.