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CAPÍTULO 2 ASPECTOS DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

1.1 A “emancipação da dissonância”

Certa vontade de sensacionalismo quer assomar nos relatos das estreias das peças dos primeiros compositores pós-tonais do século XX. Chamam a atenção as histórias sobre as estreias de peças de Schoenberg e Stravinsky (ROSS, 2007, p.67-68, 90). Segundo Alex Ross, autor de O resto é ruído, o motivo para o escândalo foi a dissonância. De fato, a dissonância é uma das marcas características que ajuda a definir a música contemporânea como tal e é provavelmente o primeiro motivo das relutâncias do público, músicos e críticos, antes do que outros “ruídos” da música de vanguarda.

É verdade que a dissonância já existia na música, já que o conceito vem da Grécia Antiga; nos começos da polifonia e até o século XIX, foi um recurso cujo uso se justificava pela eficácia para a afirmação da consonância, destino obrigatório de toda dissonância, aplicando na música princípios de dualidade onde não necessariamente se descarta a interdependência das partes contrárias. No entanto, o que definiu a música de cunho moderno nos seus começos foi o uso diferente de intervalos harmônicos considerados dissonantes pelos teóricos da música desde o chamado Período da Prática Comum, entre 1600 e 1750. No século XX, dissonância e consonância se fundem num princípio maior, que é a construção de uma linguagem musical sem as regras impostas pelo tonalismo, uma nova sintaxe musical; não se trata só de escrever acordes dissonantes, é a recusa de dispor a peça tendo como referência um centro tonal.

Antes de Schoenberg e Stravinsky já existiam alguns sinais de declínio das regras tonais para consonâncias e dissonâncias. Alguns dos compositores de mais destaque de épocas não muito distantes fizeram experimentações que buscavam novos efeitos ou provavelmente queriam expressar de maneira mais eficaz alguns estados de ânimo. Alguns exemplos emblemáticos são Franz Liszt, que fez uma primeira aproximação ao atonalismo na Bagatelle sans tonalité S.216 a, Richard Strauss que experimentou decididamente as dissonâncias em Salomé, Claude Debussy em algumas peças de Images e o acorde místico de Alexander Scriabin.

maioria das escalas utilizadas na música moderna no começo do século XX já existia, como as escalas modais e a escala pentatônica, mas não eram tão familiares para o ouvido ocidental na virada do século XIX para o XX como sim eram as escalas maiores e menores. As primeiras experimentações com escalas não tonais foram feitas com a escala pentatônica e a escala de tons inteiros, talvez a escala mais representativa dos começos da música moderna. Desde o começo do período Barroco até o final do Romantismo não foram muito exploradas as escalas modais, que eram a base da música medieval e renascentista; no século XX, os modos diatônicos foram reavivados com entusiasmo e até foram misturados, como é o caso da escala Lídia-Mixolídia, também chamada de escala acústica. Também foram muito utilizadas as escalas octatônicas, nas duas disposições mais comuns (semitom-tom e tom-semitom), muito ricas em possibilidades harmônicas e melódicas. Os primeiros compositores do século XX, como Scriabin, Bartók, Debussy e Stravinsky usaram profusamente muitas das escalas descritas.

Uma primeira tentativa de justificar teoricamente o uso de intervalos dissonantes foi feita por Schoenberg e seguida pelos seus discípulos Alban Berg e Anton Webern. As explicações de Schoenberg para dar validade às dissonâncias no sistema dodecafônico eram muito variadas, em alguns momentos as colocações eram de cunho político, como a libertação das dissonâncias da escravidão imposta pela tonalidade, outras vezes as características do seu estilo eram explicadas como resultado inevitável de uma dialética histórica (eram produto de uma necessidade), ou usava como exemplo o fato de que algumas obras-primas de Bach, Mozart e Beethoven foram recebidas com algum receio quanto ouvidas pela primeira vez, e até comparava a suas experimentações com explorações de lugares recônditos ou travessias de oceanos.

Stravinsky propõe um sistema que daria um tipo diferente de dissonâncias: o politonalismo, que consiste em acordes que combinam elementos de dois ou mais acordes tradicionais, dando como resultado algumas dissonâncias entre algumas notas. A primeira experimentação importante como essa técnica foi a Sagração da

Primavera com os seus “desabafos orquestrais dissonantes” (CROCKER, 1966,

Bartók, consistiu na adoção de material escalar folclórico, entre as que se destacam a já mencionada escala acústica de Bartók, a escala pentatônica e as escalas modais, frequentes em muitas tradições folclóricas.

E claro, a leis da acústica têm relação com a percepção das dissonâncias e consonâncias. Vários estudos na área da psicoacústica, da fisiologia e da neurologia deram como resultado teorias sobre os motivos pelos quais o ouvido ocidental sente prazer com uma e aspereza com a outra. As conclusões desses trabalhos levam a pensar que os motivos para as diferenças na percepção e efeitos da consonância e dissonância não se reduzem a razões puramente biológicas nem se limitam a fatores físicos ou culturais.

O pioneiro das teorias para explicar as consonâncias e dissonâncias foi o matemático, médico e físico alemão Hermann Helmhotz (1821-1894), quem afirmava que as dissonâncias produzem batimento27, o que gera uma sensação de aspereza no ouvinte. A teoria aparece em no livro On the sensation of tone (1963), que é um estudo da acústica destinada a ser aplicada na teoria musical. Helmhotz assevera que os intervalos harmônicos dissonantes têm um efeito agressivo nas terminações nervosas, enquanto os intervalos consonantes produzem um efeito prazeroso, e a lista de intervalos que geram atrito começa com o semitom. A teoria do batimento/rugosidade de Helmhotz foi seguida ou levemente modificada por outros autores no século XX, como Reinier Plomp e Fred Lerdahl.

Com exceção do minimalismo, o elemento principal de correntes posteriores já mencionadas, como o serialismo integral, o aleatorismo e a nova complexidade, continua sendo a dissonância. De qualquer maneira, se o objetivo for realizar estudos analíticos mais detalhados, dissonância ou consonância “estará baseada na 'norma' harmônica da passagem particular sob observação e não numa noção preconcebida” (SCHMITZ, 1950, p.24).

27 Batimentos são leves diferenças nas frequências de dois sons simultâneos. A quantidade de oscilações ou vibrações de uma onda no ar são chamadas de frequências, a unidade de medida dessas frequências é o Hertz, que é a quantidade de vibrações por segundo. Dois sons puros (ondas senoidais, sem harmônicos) com a mesma frequência dão uníssono; segundo Helmhotz, uma diferença de em torno de 30-40 Hertz entre os dois sons gera batimentos que serão percebidos como dissonâncias. Nos sons dos instrumentos, que geram harmônicos, o mesmo princípio se aplica às frequências dos harmônicos (parciais), sendo a segunda menor o intervalo mais dissonante no temperamento igual.

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