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Juan Carlos Moreno González: a zarzuela, a música de câmara e

CAPÍTULO 1 – APONTAMENTOS SOBRE A HISTÓRIA DA MÚSICA

2.3 Juan Carlos Moreno González: a zarzuela, a música de câmara e

Na primeira metade do século XX, a música erudita no Paraguai tinha uma movimentação interessante de compositores e escrita de peças, mesmo que esses

compositores e suas obras não fossem muito conhecidos no país: a difusão da música estava reservada à música folclórica e a música popular importada. A partir da década de 1980 começaram a publicar-se biografias, catálogos, partituras (muitas delas pela primeira vez) e gravações -também inéditas-, mediante esses materiais sabemos da existência de peças eruditas de compositores paraguaios dessa época.

Os motivos para a difusão de certos gêneros musicais e para a discriminação de outros eram principalmente as vantagens comerciais (no caso da música popular) e políticos, por exemplo José Asunción Flores era militante do Partido Comunista e as gravações soviéticas da sua obra foram proibidas no país. De fato, muitos protagonistas da vida cultural do país fugiram dele na época da Segunda Guerra Civil (1947) e principalmente durante a ditadura militar (1954-1989), tempos em que qualquer um que não apoiava o partido no poder era perseguido. Também a obra de Carlos Lara Bareiro foi proibida durante a ditadura. Por outro lado, também existiam compositores que tinham um certo prestígio compondo músicas para os partidos políticos e clubes de futebol, os dois principais veículos da cultura de massa do país.

A partir da década de 1920, a maioria dos compositores paraguaios começou a sair do país para aprofundar (ou começar em alguns casos) os seus estudos musicais, preferencialmente na Argentina e no Brasil. Outros compositores tiveram a oportunidade de estudar na Europa, como Juan Max Boettner (Alemanha) e Remberto Giménez (França). O contato com novas técnicas e estilos musicais, sem dúvida, motivou esses músicos a contribuir com peças originais ao incipiente repertório erudito do país. Porém, uma característica, se formos olhar para o catálogo de esses compositores, é a baixa produção em termos de quantidade; depois de Agustín Barrios (cuja obra consta de aproximadamente setenta peças, quase todas de um movimento só), a obra erudita completa de cada compositor tem uma média de oito ou dez peças, e o grande motivo desse pequeno número de composições parece ser a falta de intérpretes, orquestras, solistas e grupos de câmara; Barrios escreveu peças para violão, que era o instrumento que ele mesmo tocava, então não existia impedimento para as suas peças serem apresentadas e gravadas.

Já se falou da música de orquestra, que só começaria a ter espaço no fim de década de 1950 com a criação da primeira orquestra estável do Paraguai. A música instrumental solista teve espaço por meio das obras para violão de Barrios, mas os instrumentos solistas da música erudita com o repertório mais conhecido -o piano e o violino- só teriam algum espaço por volta de 1920 e teriam mais notoriedade a partir da década de 1940.

A música de câmara foi pouco cultivada no país, no que diz a respeito a formações estáveis. Segundo o dicionário de Luis Szarán, a primeira informação que se tem sobre um quarteto de cordas é de 1913, integrado por professores do Ginásio Paraguaio, que atuou durante quatro anos. Um segundo quarteto de cordas surge em 1928, tendo como figuras principais Remberto Giménez e Alfred Kamprad (ex violinista da Filarmônica de Berlim e, posteriormente, professor de violino no Instituto Paraguaio). Desde 1988 houve grupos de câmara de curta duração, como o

Trio Asunceno (piano, violino e violoncelo)23.

Segundo a lista de compositores e peças de música erudita de Diego Sánchez Haase, até a década de 1970 se escreveram três peças para violino e piano (dois ciclos e uma sonata), um trio -piano, violino e violoncelo- e dois quartetos de corda, representando essas peças a totalidade da produção camerística do país até então (SÁNCHEZ HAASE, 2002, p.116-119). O compositor que mais se destacou na música de câmara (compôs três das seis peças mencionadas) e na música erudita no geral na primeira metade do século XX foi Juan Carlos Moreno González.

Moreno González aproveitou as duas principais cidades vizinhas do Paraguai da época para estudar música, primeiro em Buenos Aires e depois em São Paulo, com Furio Franceschini. É, segundo Boettner, o grande compositor paraguaio de música erudita posterior a Agustín Barrios. A grande contribuição de Juan Carlos Moreno González foi em vários gêneros: a música instrumental, primeiramente a música para piano solo, a música de câmara, e o drama musical, sendo conhecido como o criador da “Zarzuela paraguaia”.

Em 1956, Moreno González, junto com o autor teatral Manuel Frutos Pane, criou a primeira versão paraguaia do drama musical, a chamou de “Zarzuela

23 MÚSICA DE CÁMARA. IN: SZARÁN, Luis. Diccionario de la Música del Paraguay. Asunción: Luis Szarán, 2007.

paraguaia”, entre as mais famosas estão La tejedora de ñanduti (1956), Los alegre

kygua vera (1957), Korochire (1958) e Maria Pacurí (1959). Estas peças tiveram

grande sucesso nas suas estreias, mas o gênero foi declinando com o tempo até quase desaparecer. As zarzuelas de Moreno González ganharam novas apresentações nos últimos anos.

Na música de câmara, são três as peças catalogadas de Moreno González: a sonata para violino em si menor (1935), o quarteto de cordas em dó maior (1944) e o trio para piano, violino e violoncelo (1946). O quarteto de cordas é considerado a peça camerística mais importante do compositor e consta de quatro movimentos: “El

amor” (Allegro moderato), “La ternura” (Largo apassionato), “El bienvenido”

(Allegretto scherzando), “La niñez” (Allegro). O estilo é predominantemente clássico, com forte influência de Mozart e do primeiro período de Beethoven.

Falando especificamente da música para piano solo, que tem relação mais direta com este trabalho, os principais compositores antes do pós-tonalismo foram quatro: Remberto Giménez, Juan Max Boettner (1899-1958), Luis Cáceres Carisimo (1926-1965) e, principalmente -e de novo-, Juan Carlos Moreno González (1916- 1983).

Remberto Giménez escreveu quatro peças curtas para piano, Juan Max Boettner tem cinco peças (dois ciclos, uma suíte e duas peças de um movimento), Luis Cáceres Carisimo tem três ciclos (todos inéditos, sobreviveram só manuscritos). Junto com a produção camerística e as zarzuelas, Juan Carlos Moreno González também se destaca na música para piano, sendo autor da seguinte lista de peças24:

Três peças para piano (1935)

Scherzo para la sonrisa de un niño (Scherzo para o sorriso de

um menino)

El canto del artista Nocturno de primavera

24 MORENO GONZÁLEZ, Juan Carlos.Partituras. 1ed. Asunción: El Cabildo CCR, 2011.

LUZKO, Nancy. An annotated bibliography of Paraguayan music for piano. 2005. Dissertação (Doutorado em Música) - Frost School of Music, University of Miami. Coral Gables, FL. 2005. pp.

Juguete (Brinquedo) (1937)

Sonata para piano “El amanecer” (1942/1943)

Tres aires paraguayos (Três canções paraguaias) (1946)

Prelúdio e pequena fuga (1948) Balada em Mi bemol (1973)

Duas danças paraguaias (data de composição desconhecida)

Esta lista de peças mostra a importância de Moreno González na obra pianística de compositores paraguaios nas primeiras seis décadas do século XX, não só pela quantidade de obras mas pela vontade de escrever a partir das influências mais diversas -tanto na linguagem quanto na forma-, como a música folclórica e os estilos de música erudita europeia. É o primeiro autor de obras consideradas “substanciais”25 no repertório pianístico erudito, como sonata e balada.

Há dois momentos na escrita para piano de Moreno González, um em que olha para o classicismo e o romantismo, principalmente se formos relacionar a forma como o período. Assim, a Sonata em Ré Maior “El amanecer” é predominantemente clássica, e a Balada em Mi Bemol é marcadamente romântica. O outro momento é quando começa a introduzir nas obras as dissonâncias da escrita moderna, o exemplo dessas experimentações são das Duas Danças Paraguaias para piano.

“El amanecer” é a primeira sonata para piano publicada por um compositor paraguaio. Trata-se de uma obra onde, além da escrita em forma sonata (pouco frequente nos compositores paraguaios) é exposto o pensamento harmônico que predominava nos compositores do Paraguai já bem avançado o século XX: não existia nenhum sinal de quebra do tonalismo. A obra é neo-clássica: formal, temática e harmonicamente tem resquícios de Beethoven, com a escrita mista, por momentos é limpa, lembrando o Mozart (Ex.12), e tem trechos densos que parecem passagens difíceis dos últimos períodos de Beethoven ou inclusive Chopin (Ex.13). A obra tem três movimentos: Allegro, Adagio Sostenuto e Introdução e Rondó.

A Balada em Mi Bemol é uma tentativa do compositor de explorar os limites técnicos da escrita pianística. A escrita mistura as influências de Chopin e Liszt (Ex.14)

25 Entende-se por “substancial” quando a peça é um ciclo completo ou uma peça de um movimento de longa duração, ficando fora da categoria as peças curtas, como danças, prelúdios ou estudos.

Nas Duas Danças Paraguaias (Ex.15-16) o compositor começa a atingir os limites do tonalismo, como já tentou Flores em trechos de Ñanderuvusu, com o uso discreto de dissonâncias (principalmente trítonos) sem resolver, mas mantendo reconhecíveis as peças folclóricas que são o material básico das danças, além de permanecer no tonalismo. As peças são curtas mas são um sinal interessante da pulsão de escrever peças além do tonalismo, talvez pelo contato com as peças modernas ou pelos resíduos de informação que ficaram depois dos estudos do

Figura 12 - Juan Carlos Moreno González, sonata para piano El amanecer. c.1-13

compositor fora do país. Seja como for, as Duas Danças Paraguaias constituem, para este trabalho, um antecedente estilístico da escrita pós-tonal para piano no

Paraguai.

As obras instrumentais de Juan Carlos Moreno González constituem a amostra mais clara da escrita tradicional de música erudita no país no século XX, tanto em termos de linguagem quanto na exploração das formas musicais mais recorrentes na música erudita. Na música de câmara e para instrumento solo é o máximo representante da fase “tonal” antes das experimentações de Nicolás Pérez González (1927-1991) na décadas de 1960/70, Pérez González é considerado o pai da música contemporânea no Paraguai26.

Exemplo 13 – Juan Carlos Moreno González, Sonata para piano El amanecer. Segundo movimento,

c.1-3.

Moreno González também é um resumo de duas atitudes co-dependentes:

26 PÉREZ GONZÁLEZ, NICOLÁS. IN: SZARÁN, Luis. Diccionario de la Música en el Paraguay. Asunción: Luis Szarán, 2007.

uma é a vontade de escrever música mais “universal” (termo usado pelos teóricos de música no Paraguai se referindo à música erudita europeia), com material melódico e harmônico mais elaborado e estendido, experimentando com artifícios e texturas desconhecidas na música folclórica; e a outra, relacionada com a primeira, é abraçar o tonalismo, mesmo com as novas técnicas composicionais já sendo aplicadas em países vizinhos que os compositores paraguaios visitaram e onde até moraram para

estudar -aprofundando ainda mais esse contato com novas linguagens-. O movimento brasileiro Música Viva é de 1939, Ginastera já tinha escrito as Danças Op. 2 em 1937, por citar alguns exemplos na região; embora não temos conhecimento sobre comentários de compositores paraguaios sobre a música contemporânea, dita omissão pode ser interpretada como uma atitude desses compositores de não considerar a possibilidade de explorar terrenos mais dissonantes e experimentais. Essa atitude prevalece até hoje em muitos músicos paraguaios.

Figura 16. Juan Carlos Moreno González, Danza no. 2

Existem muitos outros personagens importantes na história musical do Paraguai no começo do século XX, mas a maioria desses compositores destaca-se na música folclórica, inclusive vários dos citados aqui, como Remberto e Herminio Giménez e o próprio José Asunción Flores. Pode-se supor que algumas omissões podem pesar mais do que menções, mas não é o caso, a partir das fontes primárias sobre música no Paraguai, os compositores importantes de música erudita no Paraguai, pela quantidade de obras e pelo grau de elaboração são os três principais deste capítulo: Agustín Pío Barrios “Mangoré”, José Asunción Flores e Juan Carlos Moreno González.

Como já foi colocado, muitas obras desses compositores -principalmente Flores e Moreno González- só foram divulgadas no Paraguai muito depois de serem compostas, por exemplo, o primeiro livro de partituras editado e corrigido, seguindo o formato das editoras de partituras, com obras para piano, o quarteto de cordas e outras obras de Juan Carlos Moreno González foi publicado em 2011; a estreia no Paraguai da guarânia sinfônica Ñanderuvusu de Flores foi na década de 1990 (SALABERRY, 2013, p27).

Portanto, este capítulo pretende fazer uma amostra de uma atividade musical que talvez até fosse ignorada pelos próprios protagonistas desta pesquisa na sua formação musical, mas que constitui um antecedente direto ou indireto, no sentido de que, se não afetou os compositores de música contemporânea como influências para as peças que escreveram, pelo menos afetou a prática musical -a atividade dos intérpretes, a formação de público, o ensino de música, a composição- que lidava com a contradição de pretender se relacionar com a “universalidade” da música erudita mas que resistia o impulso de ultrapassar os limites da tonalidade, impulso que já tinha seus anos fora do país.

A música erudita no Paraguai passou pelas precariedades de toda música erudita latino-americana no início. O fato de que essas precariedades ainda sejam sentidas obedece aos fatores de ordem cultural, político e econômico que seriam objeto de uma outra pesquisa. Se formos oferecer um panorama histórico da música do Paraguai e se, a partir dessa contextualização, facilitarmos a compreensão da música contemporânea para piano de compositores paraguaios, o objetivo estará cumprido.

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