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disciplinar: a Gestalt no contexto da tradição psicológica descritiva

(...) a teoria das qualidades gestálticas seria apropriada

para, de um modo geral, criar pontes tanto para a cisão entre os distintos domínios sensoriais, como entre as diferentes categorias do que é representável (Ehrenfels

[1890] 1960, p. 41, itálicos nossos).

Um leitor do século XXI, em busca de uma análise histórica da teoria da Gestalt, inevitavelmente esbarrará no nome de Christian von Ehrenfels. Trata-se de algo muito bem estabelecido na literatura especializada mais recente. Barry Smith em A teoria da Gestalt (Gestalt Theory: a essay in Philosophy, 1988) assim resume Sobre as qualidades gestálticas (Über Gestaltqualitäten, 1890) de Christian von Ehrenfels: “a importância do artigo de Ehrenfels reside no fato de apresentar a primeira reflexão concentrada sobre o que seriam as formações perceptivas complexas, tais como figuras espaciais ou melodia” (Smith, 1988, p. 12). Mitchell Ash, em seu exaustivo estudo A psicologia da Gestalt na cultura alemã, 1890 - 1967 (Gestalt psychology in german culture, 1890 - 1967, 1995), descreve o referido escrito como o “documento fundador da teoria da Gestalt” (Ash, 1995, p. 88). Como veremos, essas posições não são inovadoras. A centralidade de Ehrenfels já havia sido estabelecida na literatura especializada durante o próprio curso da formulação do problema da Gestalt tal como a conhecemos, ou seja, já na virada do século XIX para o século XX. Smith justifica Ehrenfels ser ponto incontornável do debate pelo fato de que, embora explore em detalhes o caso das construções melódicas e de certas percepções visuais, o filósofo concede posteriormente um alto nível de generalidade aplicativa para seu conceito. Tal generalidade certamente nos parece ter, de fato, cumprido um papel heurístico para o desenvolvimento tanto do conceito, como do problema correlato. No entanto, isso não seria capaz por si só capaz de garantir-lhe uma unidade e de despertar interesse e inteligibilidade científica para o posterior desenvolvimento na forma de um protoconceito científico. Impõe-se uma análise de época, capaz de estabelecer mediações cognitivas com o debate esotérico então em curso. A primeira diretriz que a literatura contemporânea nos dá, em nosso intento de uma longa reconstrução conceitual, nos associa a esse pensador austríaco e seu milieu intelectual mais imediato.

Christian von Ehrenfels (1859 - 1932) possui um profícuo e diversificado percurso intelectual.164 De origem aristocrática, nasceu em Rodau, arredores da capital austríaca.

Desde cedo nutriu interesse por música, literatura, filosofia, com especial destaque por suas conexões com a psicologia, ética e matemática. Em 1879 matriculou-se em filosofia na Universidade de Graz, tendo concluído doutorado, Números e relações de grandeza (Größenrelationen und Zahlen - eine psychologische Studie, 1885), sob orientação de Alexius Meinong (1853 - 1920). Passou a frequentar a Universidade de Viena, onde conclui em 1887 sua tese de habilitação (Habilitationsschrift), Sobre o sentir e o desejar (Über Fühlen und Wollen, 1887), sob orientação de Franz Brentano (1838 - 1917). Além do estreito trânsito com Meinong e Brentano, nutriu profunda amizade com Alois Höfler (1853 - 1922) e Anton Bruckner (1824 - 1896), com quem teve lições de composição.

Quanto ao círculo intelectual mais íntimo de Ehrenfels, Brentano é indubitavelmente quem merece especial atenção. Em verdade, a influência não só da obra, mas da própria pessoa de Brentano, enquanto professor e orientador, ultrapassa em muito o debate estritamente psicológico na virada do século XIX para o XX.165 Padre ordenado, para além da formação escolástica recebida durante sacerdócio católico, Brentano tornou- se especialista em Aristóteles, tendo especial interesse pela dimensão ontológica e psicológica de sua obra. Sua tese de doutorado, Das múltiplas acepções do ente segundo Aristóteles (Von der mannigfachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles, 1862), bem como na subsequente tese de habilitação, A psicologia de Aristóteles (Die Psychologie des Aristoteles, insbesondere seine Lehre vom Nous Poietikos, 1867), atestam sua erudição

nesta seara. Para comentadores como Smith, o projeto brentaniano de uma psicologia

descritiva é tributário direto de uma concepção aristotélica de um empirismo166 de cunho

164 Para uma análise mais detalhada da biografia de Ehrenfels, cf. Fabian, Christian von Ehrenfels (Christian von Ehrenfels: Leben und Werk, 1986).

165 Trata-se de uma linha interpretativa defendida no próprio Manifesto do Círculo de Viena (Wissenschaftliche Weltauffassung. Der Wiener Kreis, 1929) - assinado por Hans Hahn, Otto Neurath e Rudolf Carnap - e em Le developpment du Cercle de Vienne et l'avenir de l'empirisme logique (1936) por Otto Neurath, que posiciona Brentano junto a Mach como os dois principais inspiradores do Círculo de Viena, que por sua vez é entendido como autêntica manifestação da filosofia austríaca. Tal leitura, ainda que potencialmente simplificadora, teve longa acolhida e foi condensada e continuada por Smith em Filosofia austríaca (Austrian philosophy - the legacy of Franz Brentano, 1994).

166 Cabe ressaltar também um forte interesse pelo positivismo comteano, sobretudo em seu aspecto metodológico, algo expresso por Brentano em seu artigo Auguste Comte e a filosofia positiva (Augut Comte und die positive Philosophie, 1869). A atenção dada a Comte está em linha não propriamente com uma renúncia a uma investigação de caráter metafísico, tal como feita pelo mestre grego, mas sim com sua ressignificação e delimitação no interior da psicologia, entendida como ciência moderna.

realista da ciência, que refuta a um só tempo tanto a tradição mais geral do idealismo alemão, em sua compreensão especulativa das ciências naturais, como a nascente defesa de uma especificidade metodológica para as ciências humanas, tal como defendida por Wilhelm Dilthey (1833 - 1911). Mesmo em suas proposições mais específicas, a psicologia descritiva de Brentano traz o eco da teoria psicológica de Aristóteles. Este seria o caso das duas teses mais centrais do teórico alemão: a defesa da unidade da alma e a intencionalidade dos atos da consciência.

Em Psicologia do ponto de vista empírico (Psychologie vom empirischen

Standpunkt, 1874), encontramos o arcabouço do projeto brentaniano de uma teoria

psicológica de base empírica com aspiração científica. A cientificidade é entendida pelo

autor nos termos da busca por um fundamento seguro, como um “núcleo de verdades universais” que possibilitarão o desenvolvimento gradativo não de múltiplas psicologias, mas - a exemplo das ciências naturais - da psicologia enquanto ciência una.167 Quanto ao escopo e ao objeto de estudo, a psicologia é entendida, num sentido mais genérico, como uma “ciência dos fenômenos psíquicos” (Wissenschaft der psychischen Phänomene) ou “ciência da alma”. Cabe ressaltar, neste ponto, que Brentano afasta-se da metafísica subjacente à psicologia aristotélica. Alma para o psicólogo alemão nada mais seria que o suporte funcional das “aparições” (Erscheinungen), estas sim, objetos de estudo mais específico da psicologia. Tais aparições são subsumidas na forma de: (1) “representações” (Vorstellungen),168 entendidas aqui como objetos apresentados à consciência: sensações,

recordações ou fantasias; (2) os juízos (Urteilen), antes que objetos, são ações sobre representações, no sentido de tomá-las como verdadeiras ou falsas; (3) por fim, os

167 Dos seis livros do projeto da Psychologie, apenas dois foram efetivamente concluídos e publicados na forma de sua edição de 1874. Cabe notar - como bem indica Mauro Antonelli no artigo introdutório da mais recente edição das obras completas de Brentano, Uma psicologia que formou uma época (Eine Psyhologie, die Epoche gemacht hat, 2008) - que se trata “não de um tratado, mas de um manifesto programático, que pretende lançar os fundamentos metodológicos e o arcabouço teórico para a psicologia entendida como ciência do futuro” (Antonelli, 2008, p. XV). Nessa mesma Introdução, Antonelli oferece uma sucinta apresentação dos principais tópicos da Psicologia do ponto de vista empírico.

168 Trata-se de um termo central para a psicologia de viés descritiva. A tradução por “representação” expressa uma longa tradição que remonta ao menos a escola de Christian Wolff (1679 - 1754), sendo o equivalente encontrado para o termo latino “representatio”. Contudo, tal escolha não captura a etimologia do termo alemão, que remete à expressão “dispor [algo] diante” (vor-stellen). Em muitos casos, as Vorstellungen não se referem à uma “representação mental”, pois, como veremos no caso das Gestalten (ao menos contexto da Escola de Frankfurt-Berlim), muitos desses objetos são apreendidos imediatamente pela consciência, prescindindo, inclusive, de uma faculdade intelectiva associativa. Dado, porém, que a tradução por “representação” foi plenamente estabelecida nas línguas neolatinas, a adotaremos nesse trabalho.

sentimentos e desejos (Gemütsbewegungen) que, igualmente fundados sobre as representações, atuam no sentido de valorá-las. A instância em que todos esses eventos ocorrem é a consciência, que, para Brentano, é una. Não se trata, com isso, de concebê-la como uma totalidade homogênea. As três classes fundamentais supracitadas devem ser entendidas como partes atuando não como fragmentos de um agregado, mas como aspectos ou momentos de um todo.

Para Brentano, os atos associados aos conteúdos psicológicos devem ser entendidos como intencionais, sendo tais conteúdos apresentados como objetos unitários e autônomos à consciência. O conceito de intencionalidade e o caráter unitário da consciência são fundamentos de seu programa de pesquisa, uma vez que este visa, em última instância, descrever e esclarecer de que modo os conteúdos intencionais são dados à consciência. Para a presente análise, a relação de filiação intelectual, neste caso filiação inclusive tutorial entre Brentano e Ehrenfels, possui ao menos as seguintes dimensões de interesse: o conjunto de problemas em comum, as orientações metodológicas, os contrapontos e o vocabulário compartilhado. Tais dimensões também serão balizadas pelo público leitor de seu ensaio e, antes disso, pelo tipo de publicação de que se serviu.

A Revista quadrimestral de filosofia científica (Vierteljahrsschrift für wissenschaftliche Philosophie), editada em Leipzig, foi fundada em 1877 e perdurou até 1916, tendo editado 40 volumes nesse período. Teve como editor e fundador, até o ano de sua morte, o filósofo monista Richard Avenarius (1843-1896). Como o título da publicação indica, embora aberta a um debate filosófico mais geral, seu enfoque era a filosofia dita “científica”, com destaque para sua interação com a psicologia descritiva e experimental. Indício disso são as inúmeras publicações de Oswald Külpe (1862 - 1915), Alexandre Meinung, além de Wundt e, naturalmente, do próprio Avenarius.

No Editorial (Zur Einführung) do primeiro número, Avenarius apresenta de modo resumido e em tom audacioso o programa da revista. Nele, ao constatar o isolamento da filosofia dita “especulativa”, indica a necessidade de uma reflexão que abarque não só a filosofia, mas também sua interrelação com as ditas “ciências rigorosas” (Strengewissenschaften). Para isso, a própria filosofia deveria tornar-se “científica”. Uma vez atingido tal status, sua relação com as demais ciências (Specialwissenschaften) dar- se-ia na forma da constituição de um sistema de conceitos (Begriffssystem) (Avenarius, 1877, p. 5). Tal sistema, ao mesmo tempo que sistematiza, deriva das ciências particulares,

“(...) pois a filosofia nada mais é, em última instância, tal como a vemos, que o resultado da interação mútua das ciências particulares, tendo em vista um conceito universal” (Avenarius, 1877, p. 14). Não por acaso, a imagem oferecida pelo editor é a de uma “pirâmide conceitual” em que a filosofia ocupa o ápice. Outra característica fundamental do projeto científico de filosofia aqui promulgada é o teor empírico:

Toda ciência tem a experiência como seu fundamento, não havendo quaisquer outros fundamentos materiais que não a experiência (...) Ou seja, a essência da ciência - quando contraposta à arte - reside na matéria, e deve ser dada por meio da experiência. Isso, e não outra coisa, significa a expressão ‘filosofia científica’ - ou seja, uma filosofia que seja não apenas formalmente, mas que sua própria essência, ou seja, por meio do caráter empírico de seus objetos, seja ciência (Avenarius, 1877, p. 6-7). Como já indicado, tanto pelo volume como pela especialidade dos artigos publicados, a psicologia - embora à época caracterizada apenas como um ramo da filosofia - detinha proeminência dentre as “ciências especiais”. Cabe notar que a revista contou com a colaboração direta do já citado Wilhelm Wundt (1832 - 1920), no período de 1877 a 1891, e Ernst Mach (1838 - 1916), no de 1897 a 1905. Ambos os investigadores tinham projetos diretamente comprometidos com uma reflexão, ou mesmo refundação, dos conhecimentos psicológicos.169 A Vierteljahrsschrift für wissenschaftliche Philosophie constituiu-se, portanto, em veículo de circulação e expressão de um debate técnico (esotérico) de uma cultura filosófica com clara interseção com as ciências naturais, sobretudo com a emergente psicologia descritiva e experimental.

É oportuno, nesse ponto, despender algumas palavras sobre o status da psicologia no ambiente acadêmico alemão da época. Horst Gundlach - ao retomar o famoso adágio “a psicologia tem um longo passado, mas uma breve história” no artigo A psicologia como ciência e como disciplina (Psychology as science and as discipline: the case of Germany, 2006) - propõe que o fio condutor da historiografia psicológica deve ser assentado na distinção entre os conceitos de ciência e de disciplina.170 Enquanto ciência - ou seja, na

169 No mesmo ano do aparecimento do opus magnum brentaniano, Wundt publica o célebre Elementos de Psicologia fisiológica (Grundzüge der physiologischen Psychologie, 1874), considerado o marco da constituição da psicologia experimental como campo de pesquisa autônomo. A fixação de Wundt em Leipzig, lá fundando o primeiro laboratório (1879) e a primeira revista científica especializada em psicologia (Philosophische Studien, 1881), representam o coroamento desse movimento. O ensaio de Ehrenfels, embora de caráter não experimental, deve ser entendido a partir desse contexto maior. 170 Uma distinção semelhante havia sido oferecida, anos antes, por Timothy Lenoir em Instituindo a ciência

(Instituting science: the cultural production of scientific disciplines, 1997). Nessa obra, Lenoir distingue “programa de pesquisa” de “programa disciplinar”, estando este ultimo, diferente do primeiro, preso a

forma de um campo de investigação empírico e/ou teórico com objetos e métodos em consenso à época - a psicologia de fato possui um longo passado, cujas fronteiras ultrapassam a filosofia, mantendo, por exemplo, estreita relação com a Fisiologia, a Zoologia e o Direito. Contudo, a psicologia somente poderia ser reconhecida, enquanto disciplina auxiliar da filosofia, em meados do século XIX, na Alemanha, sobretudo após a atribuição legal às Faculdades de Filosofia da prerrogativa de formarem professores para a modalidade mais tradicional do ensino de nível médio (Gymnasium). “Disciplina” aqui refere-se a um corpus de conhecimento estruturado que ordena a formação discente e a atividade docente num dado arranjo institucional. O aumento gradativo da autonomia dessa disciplina “auxiliar” coincide com o incremento de sua importância na formação de recursos humanos para a burocracia, bem como com o avanço de suas pesquisas experimentais. A psicologia, ao menos no contexto alemão, apenas atinge plena autonomia institucional após a Segunda Guerra, passando a constituir, em casos paradigmáticos, um corpo coeso e estruturado numa faculdade universitária exclusiva.

Embora as especificidades da psicologia - seja na forma de uma ciência, seja como disciplina - tenham exercido importantes consequências para sua dinâmica de produção e reprodução de conhecimento, temos interesse aqui por uma abordagem mais ampla. Por isso optamos pelo termo “cultura científica”, ou seja, um meio aberto ao desenvolvimento de diferentes tradições de pesquisa. Ofereceremos no próximo capítulo, no que concerne à tradição experimental, um breve prelúdio de seu desenvolvimento. No presente, destacamos apenas alguns elementos para uma caracterização geral da psicologia enquanto campo de investigação científico: (a) existência de um debate entre especialistas; b) ser entendida como um subdomínio da filosofia (disciplina), ainda que gozadora de ampla autonomia; c) a presença de uma linguagem técnica e uma investigação sobre problemas específicos, ora articulados com a fisiologia, ora com um projeto maior de fundamentação das ciências e da filosofia sob uma perspectiva científica (projeto final do próprio Avenarius).

É nesse milieu intelectual que - a partir do lastro de um quadro conceitual e de uma problemática geral sistematizado por Ernst Mach - é cunhado o conceito de “Gestaltqualitäten”. Já na abertura do ensaio, Ehrenfels explicita tratar de um problema no campo da psicologia que, a seu juízo, ainda não teria tido satisfatória resolução e

“expressão científica”. Nesse ínterim, indica-se de antemão a opção de grafar o termo que intitula o ensaio, ‘Gestaltqualitäten’, entre parêntese:

A tarefa - já indicada no título por meio do emprego de um termo pouco usual e, por isso, dificilmente inteligível - pode ser brevemente caracterizada pela seguinte exigência: primeiramente esclarecer para cada termo o conceito a ele associado, e definir bem como indicar os objetos a ele correspondentes na natureza (Ehrenfels, [1890] 1960, p. 11).

Ehrenfels, com isso, pretende destacar não só sua inovação terminológica, mas a importância que a reflexão conceitual e terminológica receberá na obra. Ademais, o autor, já no início, localiza o ponto de partida da investigação: a seminal obra de Ernst Mach, Contribuições para a análise das sensações (Beiträge zur Analyse der Empfindungen, 1886). É nessa obra que ele afirma ter encontrado uma “(...) série de observações e indicações, nas quais - embora aparentem estar relacionadas a uma concatenação muito diversa - reconheço um fortalecimento fundamental para minhas relações aqui expostas” (Ehrenfels, [1890] 1960, p. 11). Ofereceremos, agora, algumas palavras sobre a referida obra de Mach, uma vez nela temos o estabelecimento não só de boa parte dos problemas no terreno da psicologia perceptiva que nortearam Ehrenfels, mas a própria terminologia mais técnica empregada em seu ensaio.

As Contribuições de Mach

À época da publicação de Contribuições, Mach já gozava de uma estabelecida carreira profissional como docente em Praga, tendo sido reitor da Karl-Ferdinands- Universität entre 1883 e1884. Sua produção acadêmica em física, área de formação e de posição catedrática, já ganhava vulto não só pelas contribuições especializadas - sobretudo na área de óptica, caso de Investigações ópticas-acústicas (Optisch-akustische Versuche, 1872) - mas também com reflexões teóricas e históricas a respeito do desenvolvimento da física, da filosofia e das demais ciências, algo que ganhou formulação mais sistemática em A mecânica em seu desenvolvimento (Die Mechanik in ihrer Entwicklung, 1883). Contribuições - além de participar desse contexto mais geral - dialoga, quanto ao seu viés técnico, com investigações anteriores, relativas a temas fisiológicos e perceptivos.171

171 Trata-se de trabalhos tais como: Sobre a teoria do órgão da audição (Zur Theorie des Gehörorgans, 1863) e Sobre o efeito da divisão espacial da excitação luminosa sobre a retina (Über die Wirkung der räumlichen Vertheilung des Lichtreizes auf die Netzhaut, 1865). O segundo será analisado no próximo

Ademais, importantes contribuições experimentais que a psicologia perceptiva havia recebido na segunda metade do século XIX são resgatadas nessa oportunidade. Trata-se de uma obra voltada para um público de especialistas, porém relativamente amplo. Ela é redigida em linguagem didática, sem com isso deixar de pontuar questões técnicas da fisiologia, física e psicologia e, mesmo, de minúcias de dispositivos científicos usados em experimentos.

Mach afirma, no prefácio, que “(...) estímulo mais importante para as questões aqui tratadas teve lugar há 25 com o Elementos de Psicofísica (Elemente der Psychophysik, 1860) de Fechner, e principalmente com com resolução de [Ewald] Hering (...) de alguns problemas aqui especificados” (Mach, 1886, p. VI). A tese do paralelismo psicofísico de Mach é, assumidamente, uma derivação das formulações de Fechner172. Embora não faça uso da expressão em seu Elementos de psicofísica, esse filósofo alemão, diretamente influenciado pelo monismo espinozano e pela monadologia de Leibniz, afirma que: “(...) corpo e alma caminham de mãos dadas; a alteração em um corresponde à uma alteração no outro” (Fechner, 1860, p. 5). Nesse ínterim, Fechner evita soluções baseadas no dualismo de tipo cartesiano ou no ocasionalismo malebranchiano. Sua posição é monista, embora não ofereça nessa obra uma doutrina final sobre a natureza da alma e do corpo. Para ele, as ciências humanas e naturais diferem apenas quanto ao ponto de vista: “As ciências naturais concentram-se consistentemente sobre o ponto de vista externo das coisas; as ciências humanas, sobre o interno” (Fechner, 1860, p. 6). O fundamento de ambas as abordagens deve ser experimental e expressos em relações matemáticas. Fechner, por seu turno, admite receber influência direta dos estudos de Ernst Heinrich Weber (1895 - 1878). Weber havia constatado - a partir de diversos estudos de mensuração perceptiva, sobretudo daqueles referentes ao tato, publicados em A doutrina do tato e da sensibilidade geral (Die Lehre vom Tastsinne und Gemeingefühle auf Versuche gegründet, 1851) - que a capacidade discriminatória em resposta a um estímulo físico não é absoluta, mas sim relativa. Coube a Fechner o estabelecimento de uma função matemática (Lei de

capítulo.

172 É fato que Fechner avança, em outros escritos, para teses mais comprometedoras e de vieses fortemente metafísicos, como a do panpsiquismo. Nesses, e em outros momentos, há um afastamento entre Mach e o criador da psicofísica. Uma apresentação geral do paralelismo psicofísico de Fechner pode ser encontrada na obra de Michael Heidelberger A natureza pelo seu interior (Nature from within: Gustav Theodor Fechner and his psychophysical worldview [1993] 2004).

Weber-Fechner), que indica haver uma relação logarítmica entre a sensação psicológica e