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A história, se vista como um repositório para além das anedotas e cronologia, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem da ciência que hoje temos (Kuhn, [1962] (1970),

p. 1, itálicos nossos).

Thomas Kuhn nutriu um vivo interesse não só pela importância da história no debate epistemológico, mas, de modo ainda mais específico, pelo status institucional da história da ciência nos EUA, algo explorado em A história da ciência (The history of Science, 1968). Nesse artigo, ao mapear o recente desenvolvimento institucional da história da ciência nos EUA, Kuhn acaba por fazer uma caracterização geral desse campo do conhecimento, bem como uma análise crítica que permite antever sua própria visão do sentido e do lugar da história no desenvolvimento do conhecimento científico. Nesse ínterim, duas longas tradições historiográficas são apresentadas. Uma de cunho pedagógico/propedêutico, que tem por objetivo “elucidar os conceitos de sua especialidade [científica], estabelecer sua tradição e atrair estudantes” (Kuhn, [1968] 1977, p. 6). Trata- se de um tipo de trabalho que reduz a pesquisa historiográfica a uma mera seção de apoio ao entendimento dos conceitos técnicos e científicos de uma dada especialidade. Por isso, curiosidades biográficas são apresentadas de modo heróico e o desenvolvimento científico é entendido como um eterno progresso. Outra grande tradição, de viés propriamente filosófico, tem em vista fundamentar a própria noção de racionalidade a partir da investigação histórica. Haveria, porém, uma importante convergência entre as duas tradições:

(…) elas reforçam um conceito do campo que hoje foi em boa medida rejeitado pela nascente profissão. O objetivo dessas histórias antigas foi esclarecer e aprofundar um entendimento dos métodos ou conceitos

contemporâneos por meio da apresentação de sua evolução (…)

Observações, leis ou teorias que a ciência contemporânea classificou como erro ou irrelevante eram raramente levadas em conta a não ser que tenham apontado para uma moral metodológica ou tenham explicado um período prolongado de esterelidade. Princípios seletivos similares governaram a discussão dos fatores externos à ciência. A religião, vista como um esterelidade e a tecnologia, vista como um prerrequisito ocasional para o avanço na instrumentação, foram quase sempre os únicos

fatores que receberam atenção (Kuhn, [1968] 1977, p. 107).

Ambas as tradições apresentadas parecem compartilhar de uma pretensão recorrente (presentista), similar à orientação defendida por Bachelard. Thomas Kuhn se servirá do termo “whigismo” para caracterizar tal posição.

O internalismo, o externalismo e a renovação do debate historiográfico

Uma importante distinção, apresentada por Kuhn e entendida como válida para toda e qualquer tradição historiográfica, diz respeito à distinção interno versus externo na historiografa: “a forma ainda dominante, denominada ‘abordagem interna’ concerne à substância das ciências como conhecimento. Sua nova rival, frequentemente denominada ‘abordagem externa’, concerne à atividade dos cientistas enquanto grupo social no interior de uma ampla cultura” (Kuhn, [1968] 1977, p. 110). Kuhn defende que a abordagem internalista de sua época já havia evoluído a ponto de evitar um viés anacrônico e instrumentalizante. No entanto, estava ainda muito voltada às ciências mais prestigiadas: física, química e astronomia. A abordagem externalista, por seu turno, apresentara importante desenvolvimento a partir de um novo tipo de análise sociológica e institucional, tendo como embasamento as teses de Robert K. Merton (1910 - 2003),98 autor que assumiu a execução do programa baconiano como o principal responsável pelo florescimento das ciências do século XVII. Tal visão não deixaria de receber importantes críticas. Muitos fatores - mais associados ao milieu intelectual que propriamente ao desenvolvimento técnico e econômico, como a redescoberta das obras de Arquimedes e do atomismo grego, ou até mesmo a manutenção do neoplatonismo - exerceram influência tão ou mais importante que o empirismo de Bacon nesse florescimento.

Partícipes da antiga tradição historiográfica costumam declarar que a ciência, como eles a concebem, nada tem a ver com valores econômicos ou com doutrina religionsa. A ênfase de Merton na importância do trabalho manual, na experimentação e na confrontação direta com a natureza era, entretanto, familiar e congênita para eles. Em contraste, a nova geração dos historiadores reivindica ter esclarecido que a revisão radical do século XVI da astronomia, matemática e mecânica e, mesmo, óptica tiveram pouco a ver com novos instrumentos, experimentos ou

98 Trata-se de um conjunto de aspectos culturais, sobretudo derivados do protestantismo, que poderiam ser correacionados positivamente com o desenvolvimento técnico-científico. Robert K. Merton oferece uma primeira apresentação sistemática de suas teses na monografia Ciência, tecnologia e sociedade no século XVII (Science, technology and society in seventeenth century, 1938).

observações. O método primário de Galileu, eles argumentam, era a o tradicional experimento mental da ciência escolástica aperfeiçoado. O ambicioso e ingênuo programa de Bacon foi uma frustração já no começo (Kuhn, [1968] 1977, p. 116).

Diante desse impasse, a solução apresentada por Kuhn consistia em insistir que ambas as abordagens seriam complementares, desde que inseridas numa estrutura maior: uma classificação periódica da histórica capaz de distinguir os estágios de desenvolvimento de um campo científico. Uma abordagem externalista teria mais poder explicativo numa ciência ainda prematura, já num estágio amadurecido de desenvolvimento, uma abordagem internalista teria maior pertinência:

Precocemente no desenvolvimento de um novo campo (…) os valores e demandas sociais são os maiores determinantes de problemas sob os quais os investigadores se concentram. Também durante esse período, os conceitos que eles empregam para resolver os problemas são extensamente condicionados pelo senso comum contemporâneo, por uma tradição filosófica prevalecente ou pela ciência contemporânea mais prestigiada (…) Contudo, na evolução posterior de uma especialidade técnica é significativamente diferente (…) Os praticantes de uma ciência madura são homens treinados em um sofisticado corpo da teoria tradicional e em técnicas verbais, matemáticas e instrumentais sofisticadas. Como resultado, eles constituem uma subcultura especial, cujos membros formam uma audiência exclusiva, que julga seus próprios trabalhos (Kuhn, [1968] 1977, p. 118-119).

Essa longa citação apresenta de modo resumido importantes elementos de uma proposta de orientação de pesquisa histórica e epistemológica executada pelo próprio autor anos antes, em seu livro de maior projeção:99 A estrutura das revoluções científicas (The structure of scientific revolutions, [1962]). O capítulo introdutório não deixava dúvida quanto ao debate de fundo devido seu sugestivo título: um papel para a história (a role for history). No curso de sua análise, o ataque mais contundente refere-se à já citada visão propedêutica da história da ciência, amplamente disseminada nos livros-textos de formação científica:

A história, se vista como um repositório para além das anedotas e cronologia, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem da ciência que hoje temos. Essa imagem foi previamente desenhada, mesmo pelos próprios cientístas, principalmente a partir do estudo de realizações científicas já acabadas, tal como registradas nos clássicos e, mais

99 Cabe ressaltar que Kuhn já fazia jus ao título de historiador com a publicação, cinco anos antes, de A revolução copernicana (The copernican revolution: planetary astronomy in the development of Western thought, 1957). Trata-se de uma obra, contudo, que não apresentava uma reflexão propriamente metodológica, restringindo-se ao trabalho de reconstrução e ressignificação factual.

recentemente, nos livros-textos com os quais cada geração científica aprende a praticar sua matéria. Inevitavelmente, contudo, o objetivo de tais livros é persuasivo e pedagógico (Kuhn, [1962] (1970), p. 1).

Essa concepção historiográfica ingênua não deixaria de engendrar importantes consequências para compreensão da própria ciência, uma vez que assume que sua história não passaria de uma “crônica”, tanto do acúmulo sucessivo de conhecimento, quanto dos “obstáculos” inibidores de tal acúmulo (Kuhn, [1962] 1970, p. 2). Diante disso, a proposta historiográfica kuhniana encontra-se no contexto de um movimento maior, crítico a uma narrativa centrada em identificar inventores individuais, equívocos superados e a sequência de um contínuo acúmulo de conhecimento. Embasam essa nova abordagem, episódios históricos até então obliterados, embora não menos relevantes para o desenvolvimento científico. Para Kuhn, quanto mais os historiadores se ocupem de temas tipicamente perecidos (a dinâmica de Aristóteles, a química do flogisto etc.) “(...) mais certamente eles sentem que as visões de então da natureza, em seu todo, não eram menos científicas nem mais idiossincráticas que as de hoje” (Kuhn, [1962] 1970, p. 2). É interessante notar que Thomas Kuhn aplica de modo duplo o termo “revolução”, num primeiro sentido para qualificar um episódio histórico específico associado à mudança de paradigmas. Mas, num segundo sentido, a “revolução” diz respeito ao resultado da aplicação de sua proposta metodológica para a escrita da história, que seria capaz de provocar uma “historiographic revolution”, cujo motivo principal seria o estudo de cada época, levando em conta os interesses do presente, mas não sendo por eles contaminada.

Ruptura versus continuidade: Thomas Kuhn tributário de seu tempo

Thomas Kuhn é canonicamente associado na literatura como o principal nome de um momento histórico do debate anglófono no âmbito da filosofia da ciência, o qual ficou conhecido como a “virada pós-positivista” (ou antipositivista). Embora inegável protagonista, Kuhn pode ser entendido mais precisamente como um agente catalizador desse movimento de ampla participação.100 Em sua dimensão propriamente metodológico-

100 Indicamos nesse sentido apenas dois nomes explicitados reconhecidos e citados por Kuhn em 1962: o norte americano Norwood Russell Hanson (1924 - 1967), cuja obra Padrões do descobrimento (Patterns of Discovery, 1952) e o conceito a ela associado de impregnação teórica (theory ladeness) exerceu importante influência no conceito kuhniano de paradigma. Já o segundo autor, o húngaro radicado inglês Michael Polanyi (1891 - 1976), por meio da noção de conhecimento tácito (tacit knowleadge) presente no livro Conhecimento pessoal (Personal knowleadge, 1958), abriu nova seara de investigação para o

historiográfica, a influência excercida sobre a obra de Kuhn parece remontar os anos de 1930. Dentre os poucos historiados da ciência apresentados por Thomas Kuhn como inovadores, Alexandre Koyré emerge com claro destaque.101Koyré parece ter indicado de modo decisivo um caminho para a análise histórica que a afasta do anacronismo e, ao mesmo tempo, busca tratar seus eventos de modo sistemático e coerente. A própria concepção revolucionária da história da física, baseada numa atitude de subversão (bouleversement) dos pesquisadores, inegavelmente ressoará na obra de Kuhn dos anos de 1960. Por outro lado, a atitude excessivamente intelectualista de Koyré não deixaria de assumir reservas por parte do norte-americano. Como vimos, ela tenderia claramente para uma proposição internalista, ainda que considerado o milieu intelectual de época. O projeto epistemológico fleckiano de uma teoria comparativa do conhecimento - uma amalgama original de história, sociologia, antropologia e processos comunicativos - apresenta importantes paralelos com as proposições assumidas por Kuhn. Não por acaso, ele reconhece a influência do epistemólogo polonês.102 Ressalta-se, além disso, que essa breve menção a Fleck cumpriria importante papel para sua redescoberta, inaugurando uma nova fase de sua recepção.103

É inevitável notar que o segundo grande inspirador da renovação metodológica citado por Kuhn, Arthur O. Lovejoy (1873 - 1962), além de atuar no campo da história e filosofia da ciência, defenda posição antagônica à de Koyré em ao menos um aspecto central. Diferente do filósofo russo, Lovejoy insistiu na permanência de grandes temas e conceitos no curso da história das ideias. Seu livro de maior projeção, A grande cadeia do

aprendizado das práticas científicas.

101 Algo explicitado em A história e a filosofia das ciências (1968): “Os homens mais empenhados em estabelecer a florescente tradição contemporânea na filosofia da ciência - eu penso particularmente em A. O. Lovejoy e, acima de tudo, Alexandre Koyré - eram filósofos antes de se voltarem à história das ideias científicas. Com eles eu e meus colegas aprendemos a reconhecer a estrutura e coerência dos sistemas de ideias que não os nossos” (Kuhn, [1968] 1970, p. 11).

102 Kuhn, embora não cite Fleck no corpo do texto de A estrutura, reconhece em seu prefácio o débito de suas ideias para com o polonês: “Um ensaio [monografia de Fleck] que antecipa muitas de minhas próprias ideias. O trabalho de Fleck, juntamente com uma observação do ‘Junior Fellow’, Francis X. Sutton, fez-me compreender que essas ideias podiam necessitar de uma colocação no âmbito da Sociologia da Comunidade Científica” (Kuhn [1962] 1970, p. 11).

103 Ofereço uma análise resumida e atualizada da recepção dos trabalhos de Fleck na resenha crítica Gênese e desenvolvimento de um fato científico (2016). Uma análise mais aprofundada, especificamente voltada para a monografia fleckiana, é oferecida por Graf em HABENT SUA FATA LIBELLI (HABENT SUA FATA LIBELLI: Le destin des livres, 2009).

ser (The great chain of being: a study of the history of an idea, 1935)104 consiste, como o subtítulo indica, num ambicioso escrutínio histórico de uma ideia - a rigor uma tríade de ideias, sob a rubrica de “a grande cadeia do ser” - durante um período de mais de dois milênios. Caberiam algumas palavras sobre as orientações de pesquisa e de interpretação históricas assumidas por Lovejoy.

De modo similar a Koyré, Lovejoy entende que seu campo de estudo, a história das ideias, somente pode ser entendida em sua integralidade quando associado a uma reflexão mais ampla. Nesse sentido, embora esteja intimamente associada à história da filosofia, ela se diferencia desta última, pois busca justamente um expediente analítico capaz de desmembrar os componentes de uma doutrina filosófica em suas unidades básicas, que a princípio estão mascaradas pela sistematicidade da doutrina filosófica em que estão inseridas. Não por acaso, Lovejoy compara o expediente de sua disciplina com o da Química Analítica:

Ao lidar com a história das doutrinas filosóficas, por exemplo, ela corta os sistemas individuais hard-and-fast e, segundo seus propósitos, os quebram até o nível de seus componentes elementares, no que deve ser chamado ideias-unidade (unit-ideas). O corpo total da doutrina de qualquer filósofo ou escola é, quase sempre, um agregado complexo e heterogêneo (…) (Lovejoy, [1935] 1960, p. 3).

Em que pese a multiplicidade de doutrinas e sistemas filosóficos, haveria poucas ideias realmente distintas, estando elas apenas ordenadas de modos variados. Nesse sentido, destaca Lovejoy, o termo “unit-idea” não pode ser confundido com conceitos demasiado genéricos, como o de Deus, ou a tradições/escolas de pensamento que, sob o sufixo de “ismos”, englobam na verdade uma miríade heterogênea de ideias como base.

Embora não apresente uma definição formal do conceito de “unit-idea”, importantes elementos são apontados para sua caracterização. Nesse sentido, elas podem se apresentar como “suposições simplistas ou incompletas”, na forma de “hábitos mentais inconscientes”. Há ainda referências a algumas orientações presentes em importantes correntes teórico-filosóficas, como a de tipo nominalista e a orgânicista (organismic).

104 O livro é baseado na compilação de uma série de conferências (The William James Lectures on Philosophy and Psychology) durante o ano de 1933 na Universidade de Harvard. Sua primeira edição data de 1935.

Embora não possam ser confundidas com “unit-ideas”, essas inclinações humanas mereceriam investigação, pois:

A suscetibilidade a diferentes tipos de patos metafísico cumpre, eu estou convencido, um importante papel tanto para a formação dos sistemas filosóficos por guiar sutilmente uma lógica filosófica e, parcialmente, pondo em voga a influência de distintas filosofias entre grupos ou generações por elas afetadas (Lovejoy, [1935] 1960, p. 13-14).

Tal como esboçada, essa proposta já entende de antemão que a pesquisa em história das ideias é por definição interdisciplinar. Embora centre-se em exemplos fornecidos pela história da filosofia e pela literatura comparada, Lovejoy não vislumbra um limite claro para o campo de atuação. Nesse sentido, além de não ocupar um lugar institucional estabelecido, a pesquisa em história das ideias assume uma dificuldade inerente ao seu próprio objeto: “ela almeja a interpretação e unificação, e busca correlacionar coisas que frequentemente não estão conectadas na superfície; ela pode facilmente degenerar-se numa espécie de generalização histórica meramente imaginativa” (Lovejoy, [1935] 1960, p. 21). O historiador norte-americano não oferece uma solução para tal dilema. Uma última característica do programa em questão:

Outra característica do estudo da história das ideias, tal como eu a defino, é que ele é especialmente voltado para a manifestação de unidade-ideias específicas no pensamento coletivo (collective thought) de um amplo grupo de pessoas, e não meramente de um número pequeno de pensadores profundos ou escritores eminentes. Ele busca investigar o efeito desse tipo de fatores (que ele - no sentido bacteriológico do termo - isolou) em crenças, prejuízos, piedades, gostos, aspirações nas classes educadas atuais, podendo atingir uma geração completa, ou mesmo várias. Tal estudo é, em poucas palavras, mais interessado em ideias que atingem uma ampla difusão e que se tornam parte do estoque de muitas mentes (Lovejoy, [1935] 1960, p. 19).

Lovejoy apresenta, desse modo, um projeto investigativo105 bastante amplo e ambicioso que, se não fora abarcado por completo no pensamento de Kuhn, certamente contribuiu para a sua compreensão historiográfica, que buscava uma compreensão “mais ampla” do desenvolvimento científico, ainda que numa perspectiva estranha a Lovejoy, uma perspectiva revolucionária.

105 As expressões “pensamento coletivo de um amplo grupo”, “em sentido bacteriológico” e “ideias que atingem uma ampla difusão” despertam um interesse particular. Tais termos inevitavelmente aproximam- se de Ludwik Fleck, igualmente citado por Thomas Kuhn, mas certamente desconhecido por Arthur Lovejoy. Tanto a monografia de Fleck como o livro de Lovejoy datam de 1935.

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A revolução historiográfica para Thomas Kuhn não deixaria de envolver uma importante inovação terminológica, seja pela ressignificando de conceitos já estabelecidos, seja pela criação de novos. Dentre eles, temos: “paradigma”, “comunidade científica”, “revolução cientifica” e “incomensurabilidade”. O elo central dessa nova concepção historiográfica reside na noção de “paradigma”, cujo sentido mais geral, no contexto da primeira edição de A Estrutura das revoluções científicas (1962), é entendido como a: “fonte dos métodos, campo de problemas e padrões de resolução aceitos por qualquer comunidade científica madura em qualquer tempo” (Kuhn, [1962] 1970, p. 103). Longe de ser uma regra de aplicação imediata e uniforme, a exemplo da origem gramatical desse termo, um paradigma deve ser compreendido como passível de “(...) posterior articulação e especificação, sob condições novas e desafiadoras” (Kuhn, [1962] 1970, p. 23). Nesse sentido, um dado paradigma possibilita não só a definição e resolução de problemas previamente proposto, mas a proposição tanto de novos problemas como de novas aplicações. Do ponto de vista pedagógico, Kuhn coloca-se muito rente às formulações de Fleck (1929) ao afirmar que a iniciação dos membros de uma comunidade científica a um paradigma não se dá por meio de regras, axiomas ou mesmo de uma fundamentação teórica mais consistente, uma vez que:

Cientistas trabalham a partir de modelos adquiridos por meio da formação (education) e posterior contato com a literatura [científica] muitas vezes sem saber, ou sequer necessitando saber, quais características deram a tais modelos o status de paradigmas da comunidade. E porque eles assim o fazem, não necessitam de um conjunto completo de regras (Kuhn, [1962] 1970, p. 46).

O conceito de paradigma106 está indissociavelmente relacionado à atividade científica já amadurecida, entendida como ciência normal, ou seja, o conjunto de atividades desempenhadas por uma comunidade comprometida com um dado paradigma tendo em vista a resolução de problemas por ele determinados. Dito de modo sumário, a ciência normal visa a “solução de quebra-cabeça” (puzzle-solution). É importante ressaltar que aderir a um paradigma significa assumir compromissos (commitments) fundamentais. Em casos extremos, as visões de mundo desenvolvidas são tão antagônicas que “(…)

106 Oferecemos uma descrição mais detalhada tanto do termo “paradigma” - como de conceitos e problemas a ele relacionados, sobretudo o de incomensurabilidade - em nosso já citado trabalho (Carneiro, 2012).

proponentes de paradigmas competidores praticam suas ações em mundos diferentes” (Kuhn, [1962] 1970, p. 150). Há, quanto a isso, mais uma clara convergência com a proposição fleckiana das múltiplas realidades.

Durante o desenvolvimento e aplicação de um paradigma por uma dada comunidade científica, é comum o acúmulo de anomalias. Ou seja, situações em que a predição, adequação empírica ou coerência interna de um paradigma são violadas. A mudança de paradigma, durante o curso histórico, em muitos casos acarreta um confronto inter-paradigmático. Diante da crise instaurada, o processo de escolha entre paradigmas concorrentes pode, em alguns casos, ter como desfecho o que o autor denomina “revolução científica”, fenômeno em geral associado a outro conceito capital, o de incomensurabilidade:

Atuando em mundos diferentes, os dois grupos de cientistas observam coisas diferentes quando olham de um mesmo ponto para uma mesma direção. Novamente, isso não quer dizer que eles observam qualquer coisa