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É uma ilusão acreditar que a história do conhecimento tenha tão pouco a ver com o conteúdo da ciência quanto, digamos, a história do telefone com o conteúdo das conversas telefônicas (Fleck, [1935] 2010, p. 62, itálicos

nossos).

Luwik Fleck (1896 - 1961) destoa dos principais epistemólogos de sua época, seja por carecer de formação inicial em física ou matemática, ou por não ter exercido a carreira acadêmica em filosofia. Ele foi, sobretudo, um “pesquisador de bancada”, tendo expresso profundo interesse pela história da medicina e pelo debate filosófico. Fleck formou-se em medicina pela Universidade Jan-Kazimierz de Lwów (Galícia, então território polonês). Atuou como clínico e pesquisador em microbiologia e imunologia. Sua produção mais extensa foi no campo científico, assumiu importantes posições acadêmicas e profissionais.

Em 1933, Fleck estabeleceu contato com Moritz Schlick (1882 - 1936), importante representante do Círculo de Viena e influente editor. Em carta, buscava apoio para a publicação de uma monografia, cujo esboço intitulava-se A análise de um fato científico - Busca por uma teoria comparativa do conhecimento.71 Na justificativa, indicou as limitações da epistemologia da época, que investigava “não o conhecimento tal como factualmente se manifesta, mas sua construção ideal imaginária”. Herdeira do empirismo ingênuo, centrava-se nas impressões sensíveis, ignorando os processos comunicativos e seus registros escritos: “nunca se pesquisou com seriedade se o comunicar de um saber, sua peregrinação de homem a homem, de revista especializada a manual, estaria, em princípio, relacionada com uma transformação direcionada de maneira particular” (Fleck, [1933] 2011, p. 561). Em sua resposta, Schlick minimiza qualquer esperança de publicação por seu intermédio. A monografia Gênese e desenvolvimento de um fato científico (1935)72

71 Die analyse einer wissenschaftlichen Tatsache - Versuch einer vergleichenden Erkenntnistheorie, (título provisório de sua futura monografia, publicada em 1935).

72 (Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache, [1935] 1980), obra que conta com uma edição brasileira (2010). Nos serviremos desta edição, recorrendo, porém, à edição alemã a fim de explicar algumas expressões e propor alterações pontuais.

acabaria lançada em solo suíço pela editora Benno Schwabe, que estava um tanto distante do debate epistemológico da época, limitando, com isso, a difusão da obra de Fleck.

Feito esse pequeno prelúdio histórico, é importante notar que a centralidade da abordagem histórica na visão da ciência fleckiana já se fazia presente desde o primeiro escrito de viés epistemológico do autor: Sobre algumas características específicas ao modo médico de pensar (1927).73 Nesse artigo, como sugere o título, o problema central reside em distinguir quais seriam as especificidades da medicina, quando confrontada com as demais ciências. Partindo-se da análise do estado anormal, patológico, a primeira dificuldade residiria em distinguir, ainda que de modo arbitrário, a fronteira entre normalidade e anormalidade e, disso, o estabelecimento de uma “norma” para o que em princípio designamos como “anormal”. Fleck entende que a identificação de um determinado estado patológico individual (variável por definição) com doenças já estabelecidas, ou seja, com “entidades nosológicas”,74 somente poderia ser entendido de

modo “construtivo”. Isso, pois tais entidades seriam como que “quadros fictícios” produzidos pelo modo médico de pensar: “(...) por um lado, por abstrações genéricas, por meio da rejeição de parte dos dados observados, por outro lado, pela construção específica de hipóteses, isto é, pela suposição de nexos não observados” (Fleck, [1927] 2011, p. 42). Ademais, devido à complexidade de fatores envolvidos, a medicina demandaria uma intuição específica (swoista intuicja), responsável pela formulação de um “estilo” de pensamento peculiar (Fleck, [1927] 2011, p. 42). Nesse contexto, o termo “intuição” deve ser entendido fundamentalmente em oposição ao termo “lógica”. A intuição abrange uma dimensão imponderável a qualquer esquema lógico. Conspira para isso o fato de que uma entidade nosológica não possa ser identificada com a soma de sintomas ou indícios isolados, incapazes, no mais das vezes, de gerar um diagnóstico conclusivo. O conceito de intuição é a materialização do próprio “estilo de pensamento específico” (woisty styl myślowy): “(...) Nenhuma outra disciplina, afora a medicina, nenhum outro ramo da ciência, apresenta espécies comtantas características específicas, isto é, características não analisáveis, que não podem ser reduzidas a elementos comuns” (Fleck, [1927] 2011, p.

73 Escrito em polonês sob o título O Niektórych swoistych cechach Myślenia lekarkiego (1927). O citaremos a partir da reedição alemã: Über einige spezifische Merkmale des ärztlichen Denkens (Werner; Zittel, 2011), fazendo cotejamento com o original polonês.

74 Em polonês “jednostkami chorobowemi”, literalmente, “doença unitária/individual”. O equivalente alemão, “Krankheitseinheit”, rente à expressão original, indica uma unidade num quadro de múltiplas manifestações que uma patologia pode gerar.

43). Tal irredutibilidade é entendida, preliminarmente, pela associação de um estado patológico (por definição individual e variável) a uma entidade nosológica, fruto de uma abstração em boa medida construtiva.

O que parece ser mais interessante é que a instância integradora apresentada no artigo é a própria história ou, mais especificamente, historia morbi, a história do desenvolvimento de uma morbidade. Em oposição a ela, encontra-se seu status praesens, a saber, a manifestação de uma morbidade de modo sincrônico, no tempo presente. Para Fleck, nenhuma outra ciência possuiria tantos níveis de análise quanto a medicina. Há quatro níveis de desenvolvimento diacrônicos das entidades nosológicas. O primeiro consiste numa “ontologia detalhada da doença”, ou seja, a gênese patológica analisada a partir de um caso individual, que envolveria questões tais como: diátese, origens e desenvolvimento de sintomas, infecções etc. O segundo nível diz respeito, grosso modo, em aplicar o primeiro tipo de análise a períodos ou momentos do desenvolvimento ontogenético humano, tais como puberdade, infância, climatério. Haveria, ainda, uma “filogênese detalhada”, associada à história de uma doença num certo contexto social ou localidade geográfica. Por fim, chega-se a uma “história do desenvolvimento geral de uma patologia”, que descreve o surgimento de suas mutações durante o curso histórico da própria humanidade, constituindo sua “filogênese geral”. Essa filogênese seria a base para identificação de uma entidade nosológica (Fleck, [1927] 2011, p. 47-48).

A crise da ‘realidade’ e a generalização do projeto de uma epistemologia de base histórica e social

Em Sobre a crise da ‘realidade’ (Zur Krise der ‘Wirklichkeit’, 1927),75 seu primeiro artigo epistemológico geral, Fleck - aproveitando-se da temática de crise científica e ontológica tal como proposto por Kurt Riezler (1882 - 1955) - reenquadra o problema da “realidade”, ou da “crise da realidade” numa perspectiva histórica e sociológica. O curso histórico, entendido em seu artigo anterior como mecanismo de sedimentação dos conceitos médicos, assume doravante a condição de possibilidade de todo e qualquer conhecimento, na medida em que “(...) nossa atividade cognitiva é

75 Publicado em Die Naturwissenschaften, em resposta a Kurt Riezler, cujo artigo Krise der Wircklichkeit defendia, grosso modo, uma série de alterações para o conceito de “realidade” decorrentes do avanço da mecânica quântica.

dependente dos estados de conhecimentos prévios. Desse modo, o lastro daquilo que já é conhecido altera as condições internas e externas do novo conhecimento” (Fleck, [1929] 1983, p. 46). O autor propõe três fatores atuantes durante o desenvolvimento do conhecimento em geral: o lastro da tradição, o peso da formação (Erziehung) e a consequência do encadeamento do conhecimento (Wirkung der Reihenfolge des Erkennes) (Fleck, [1929] 1983, p. 46). Em tal perspectiva, interrogações quanto a uma suposta origem do conhecimento não fariam sentido já que, sequer no estágio embrionário do desenvolvimento ontogenético humano, seria possível encontrar algo como uma tabula rasa (Fleck, [1929] 1983, p. 46).

O aspecto social da produção do conhecimento passa a ser profundamente enfatizado. A fim de caracterizar tanto a tradição como os mecanismos de formação envolvidos na construção de uma “comunidade de conhecimento” (Wissensgemeischaft), bem como da realidade a ela correspondente, Fleck cunha o conceito de “estilo de pensamento” (Denkstil/Gedankestil):

Todo conhecimento possui um estilo de pensamento próprio, com sua tradição e formação pedagógica específica. (...) Integrantes de diferentes comunidades de saber vivem em uma realidade de conhecimento ou de ofício própria. No entanto, essas pessoas podem conviver provavelmente em boa concordância na vida cotidiana, pois a realidade cotidiana pode [lhes] ser comum (Fleck, [1929] 1983, p. 48).

A percepção visual é a expressão mais destacada a fim de materializar a ação de um estilo de pensamento sobre a cognição humana, algo que será enfatizado em obras posteriores.

Em seu debate com Riezler, Fleck parte do postulado quântico, concebido por Niels Bohr (1885 - 1962) nos seguintes termos:

(…) toda observação de fenômenos atômicos exige uma interação recíproca (Wechselwirkung) com o dispositivo de medição (...) nem aos fenômenos, nem o meio de observação, se pode atribuir uma realidade física autônoma no sentido costumeiro. De modo geral, o conceito de observação porta uma arbitrariedade (Willkur) no sentido de que ele depende dos objetos que fazem parte do sistema em observação.76

Há, contudo, um esforço de reenquadramento do postulado, de tal modo a fundir as dimensões histórica, perceptiva e visual. Dito de outro modo, o princípio do postulado

76 Niels Bohr, Das Quantenpostulat und die neuere Entwicklung der Atomistik, apud Fleck, [1929] 1983, p. 53.

quântico seria válido para a observação de todo e qualquer fenômeno (inclusive os de natureza não física), ainda que, no mais das vezes, as interações envolvidas sejam diminutas. Isso é explicitado por Fleck ao transpô-lo para as inter-relações históricas e sociais: “se a interação do fenômeno com o meio durasse séculos, o efeito não seria significante?” (Fleck, [1929]1983, p. 53). Essa passagem do mundo quântico para o plano histórico explicita a intenção de Fleck de utilizar o debate de época em favor de suas formulações. Deixando de conceder destaque para interações puramente físicas entre fenômenos e dispositivos observacionais, sua perspectiva enfoca as interações entre estilos de pensamento (histórico e socialmente situados), de um lado, e os objetos e problemas a eles relacionados (a rigor, por eles conformados) de outro. Nesse sentido, a existência de uma terceira realidade, absoluta,77 seria impossibilitada não pelo postulado quântico e pela indeterminação dele advinda, mas pelo próprio modo como o conhecimento científico se constitui: nunca como algo acabado, mas sempre como um eterno devir. A crise estaria não na “realidade”, mas nas categorias utilizadas pela epistemologia de então, incapaz de compreender o dinamismo histórico e social que lastreia a atividade científica. Em suma, tratar-se-ia de uma crise epistemológica.

A monografia e o desenvolvimento das categorias sociais: coletivo e estilo de pensamento

O resultado, objeto de discussão na correspondência com Moritz Schlick, foi, como já dito, o opus magnum de Fleck: Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Nela, Fleck propõe uma história do desenvolvimento histórico de uma entidade nosológica, hoje denominada sífilis, desde suas referências astrológicas no começo do Renascimento até o advento da imunorreação de Bordet-Wassermann,78 esta última ao autor contemporânea.

77 A rigor, para Riezler a ideia de realidade absoluta somente poderia ser admitida no seio da ciência no interior de uma perspectiva dinâmica, não fechando as portas para novas descobertas no campo das ciências físicas (Cf. Riezler, 1928, p. 712).

78 Um ano antes, Fleck já havia publicado um breve artigo em que já apresentava resumidamente as principais teses de sua monografia. Trata-se de Como surgiu a reação de Bordet-Wassermann e como surge uma descoberta científica em geral?, originalmente publicada em polonês (Jak powstał odczyn Bordet-Wassermanna i jak wogóle powstaje odkrycie naukowe?, 1934). Citamos, na seção de Referências, pela edição alemã (Wie entstand die Bordet-Wassermann-Reaktion und wie entsteht eine wissenschaftliche Entdeckung im allgemeinen, [1934] 2011). Já em 1935, simultaneamente à monografia, Fleck publica outro artigo de síntese - Sobre a questão dos fundamentos do conhecimento médico, escrito já em língua alemã (Zur Frage der Grundlagen der mezinischen Erkenntnis, 1935) - a fim de divulgar sua obra maior.

Nesse novo projeto, a natureza relacional de todo ato cognitivo, explicitada já no artigo de 1929, passa a ser mais bem delineada por meio de novas categorias sociais. Um exemplo diz respeito ao ato cognitivo individual que somente poderia ser entendido diante de complementos do tipo: “'como membro de um determinado meio cultural', ou, melhor ainda, 'dentro de um determinado estilo de pensamento', dentro de um determinado coletivo de pensamento” (Fleck, [1935] 2010, p. 82). Este último conceito, “coletivo de pensamento”, passa a constituir a categoria social que faltava a sua teoria:

Se definirmos o “coletivo de pensamento” como a comunidade de pessoas que trocam ou se encontram numa situação de influência mútua de pensamentos, temos, em cada uma dessas pessoas, o portador do desenvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um determinado estado de saber e da cultura, ou seja, de um estilo específico de pensamento. Assim, o coletivo de pensamento representa o elo na relação que procurávamos (Fleck, [1935] 2010, p. 82).

A noção de coletivo de pensamento pode ser considerada de modo circunscrito, no sentido de um grupo de participantes que “se entrecruzem e se relacionem muitas vezes espacial e temporalmente” (Fleck, [1935] 2010, p. 159). No entanto, pode também ter caracterização demasiado genérica, ultrapassando toda sorte de barreiras nacionais e linguísticas, identificando-se com o senso comum: “O chamado bom senso, que é a personificação do coletivo de pensamento da vida cotidiana, transforma-se numa fonte universal para muitos coletivos específicos” (Fleck, [1935] 2010, p. 161).

Com a adição desse novo conceito, o trinômio cognitivo passa por uma reformulação e agora é composto por: o indivíduo, o coletivo e a realidade objetiva (aquilo que está para ser conhecido) (Fleck, [1935] 2010, p. 82). Há uma ênfase no fato de o estilo de pensamento, enquanto sistema de opinião, promover uma força coercitiva sobre a ação dos indivíduos, determinando ações e interações muitas vezes excludentes: “(...) para perceber uma relação, outra relação deve passar despercebida, deve ser negada ou ignorada” (Fleck, [1935] 2010, p. 72). O que num primeiro momento poderia ser entendido como limitação do processo cognitivo, passa a ser entendido como sua própria essência ou condição de possibilidade:

(…) a tendência à persistência dos sistemas de opinião, que se apresentam como totalidades fechadas, pertence inevitavelmente à fisiologia do conhecimento. O processo de conhecimento se desenvolve somente nessa e em nenhuma outra sequência. Somente uma teoria clássica com suas conexões plausíveis (a saber, enraizadas na época), fechadas (a saber, restritas) e propagáveis (a saber, conforme o estilo), possui um poder

promovedor (Fleck, [1935] 2010, p. 72).

Nesse momento, Fleck indica o sentido mais preciso e fundamental de um estilo de pensamento, ou seja, a capacitação para o reconhecimento de uma “forma” (Gestalt) que, dirá mais adiante, redunda numa “(...) coerção de pensamento que se intensifica na percepção imediata de configurações correspondentes” (Fleck, [1935] 2010, p. 144). Tal capacidade é designada pelo termo “Gestaltsehen”, vertida como “percepção da forma” pela tradução brasileira:79

A percepção imediata da forma (Gestaltsehen) exige experiência (Erfahrensein) numa determinada área do pensamento: somente após muitas vivências, talvez após uma formação prévia, adquire-se a capacidade de perceber, de maneira imediata, um sentido, uma forma e uma unidade fechada. Evidentemente, perde-se, ao mesmo tempo, a capacidade de enxergar [sehen] aquilo que contradiz a configuração (Gestalt). Mas essa disposição à percepção direcionada é a parte mais importante do estilo de pensamento (Fleck, [1935] 2010, p. 142).

Não por acaso, os exemplos e estudos de caso que envolvem diretamente a percepção visual são privilegiados no conjunto da obra de Fleck: atlas anatômicos, lâminas microscópicas e representações gráficas em geral.

É também com base no ato perceptivo que se busca compreender a emergência de um novo conhecimento. Nesse momento, há uma analogia direta com a apreensão de uma Gestalt visual. Parte-se de uma observação “inaugural”, descrita como um “olhar inicial pouco claro”, ou “desprovido de estilo” (Stillos), no sentido de se configurar como uma percepção baseada em “(...) motivos parciais, confusos, caoticamente acumulados e de vários estilos, e disposições (Stimmungen) contraditórias, que impulsionam o olhar não direcionado para lá e para cá (...)” (Fleck, [1935] 2010, p. 142). Essa visão inicial, no entanto, pode iniciar um ciclo de descoberta de uma nova “forma”, que posteriormente será entendida como um “fato”, assim descrito: “primeiro um sinal de resistência no pensamento inicial caótico, depois uma certa coerção de pensamento e, finalmente, uma configuração (Gestalt) a ser percebida de maneira imediata” (Fleck, [1935] 2010, p. 144).

79 Tal como “Gestalt”, o termo “Gestaltsehen” é de difícil tradução. Para Fleck, “Gestaltsehen” diz respeito à capacidade de - após um treino no interior de um coletivo de pensamento determinado - reconhecer uma nova configuração visual. De um olhar inicial “desestilizado”, passa-se a um novo olhar “estilizado”, ou seja, de acordo com o estilo de pensamento. Nesse sentido, entendemos que o termo que mais se aproxima do sentido original alemão é o de “configuração” (lembramos que “Gestalt” é também traduzida pelo termo “figura”). A “Gestaltesehen” indica a passagem de um olhar inicial “desconfigurado” (no sentido de “desestilizado”) a um novo, “configurado” (ou seja, “estilizado”).

Esse ciclo de desenvolvimento caracteriza o germe da teoria relacional (estilizada) fleckiana, que concebe qualquer descoberta científica como “complemento, desenvolvimento e transformação do estilo de pensamento” (Fleck, [1935] 2010, p. 142).

A teoria comunicacional fleckiana

A apropriação feita por Fleck do conceito de Gestalt poderia facilmente ser interpretada como um exemplo de aplicação da sua formulação sobre as “protoideias”. Isso não deixa de ser significativo para o presente trabalho, que atenta justamente para o amplo desenvolvimento da teoria da Gestalt, amalgamada particularmente pelo conceito que a intitula: Gestalt.80 No entanto, o que talvez seja a contribuição mais original da proposta fleckiana consiste não em identificar protoideias no curso do desenvolvimento histórico e cultural humano, mas refletir sobre os mecanismos associados à sua constante transformação e transmissão. Nesse sentido, a dimensão da linguagem e dos processos comunicativos ocupa posição central. Essa ênfase na linguagem, muito distante daquela calcada em modelos formais e especulativos empreendidos por diversos integrantes do Círculo de Viena, visa identificar os expedientes comunicativos concretos da vida comunitária, em especial, da comunidade científica. A originalidade de Fleck está em compreender a língua não como um corpo axiomático cujo fundamento é inalterado, mas em atentar para a transformação do pensamento humano por meio do ato comunicativo.81

Círculos esotéricos versus círculos exotéricos

Embora não ofereça propriamente uma teorica comunicacional acabada, Fleck concede importância fulcral aos processos comunicativos humanos para compreensão da produção do conhecimento. A própria definição de um coletivo de pensamento é entendida, em seu sentido mais geral, em termos comunicacionais. O mero exercício de conversação entre duas ou mais pessoas já seria suficiente para formar coletivos fortuitos.

80 Retornaremos à problemática concernete ao emprego do conceito de Gestalt parte de Fleck no capítulo V da Segunda Parte deste trabalho.

81 Algo enfatizado por Johannes Fehr no artigo Da circulação de ideias e de palavras e daquilo que se descola (De la circulation des idées et des mots - et de ce qui s'y déplace, 2009): “(...) Fleck nos ensina que a transformação inevitável dos princípios da ciência exposta à circulação de ideias e palavras não deve ser encarada de modo algum como uma degradação ou como simples obstáculo, mas sim como o locus e processo de produção do conhecimento (Fehr, 2009, p. 117).

No entanto, há casos de coletivos estáveis, em que, após certo tempo, “o estilo de pensamento se fixa e ganha uma estrutura formal” (Fleck, [1935] 2010 p. 154). Nesse tipo de coletivo, atua uma força coercitiva muito mais ampla e poderosa que aquela manifesta num coletivo casual. O responsável central por tal força coercitiva reside na interação de um pequeno “círculo esotérico” (esoterischer Kreis) e outro - de natureza mais ampla - denominado “círculo exotérico” (exoterischer Kreis). Para Fleck, tais círculos constituem os dois elementos mais importantes da estrutura formal de todo e qualquer coletivo de pensamento estável.

As ciências naturais atuais, por exemplo, são entendidas como uma sobreposição de muitos desses círculos. Quanto à constituição, um círculo esotérico é caracterizado fundamentalmente pela presença de membros ou profissionais já iniciados ao estilo de pensamento do coletivo; eles são proficientes numa língua mais precisa, participam de polêmicas conceituais e deliberações às quais os demais membros do coletivo não foram introduzidos ou não dominam por completo. O círculo exotérico recebe, por outro lado, uma caracterização mais difusa, com níveis de participação e engajamento variados. Como exemplo, temos os coletivos religiosos, em que é possível “(...) pertencer ao coletivo de pensamento de uma religião sem ter sido aceito formalmente na comunidade” (Fleck, [1935] 2010 p. 158). Há nesse caso um claro distanciamento entre a periferia e o centro do círculo, nesse caso, o círculo esotérico dos líderes espirituais.

Os processos comunicacionais podem gerar resultados distintos a depender do nível em que ocorrem. A circulação de pensamento no interior de um coletivo de pensamento (intrakollektiven Denkverkehr) - principalmente no interior dos círculos exotéricos - atua no sentido de fortalecer as convicções compartilhadas. Por isso, pode-se falar de um certo “sentimento de solidariedade de pensamento”, ou “companheirismo gerado pela atmosfera comum”:

A estrutura geral do coletivo de pensamento faz com que o tráfego intracoletivo de pensamento (...) leve ao fortalecimento das formações de pensamento (Denkgebilde): a confiança nos iniciados, a dependência por parte da opinião pública, a solidariedade intelectual dos pares, que estão