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5. Análise estrutural de quatro sistemas de migração internacional no Brasil

5.4. A emigração de brasileiros para a Guiana Francesa

A Guiana Francesa é um departamento ultramarino pertencente à República da França que, após a Segunda Guerra Mundial, recebeu status político diferenciado da metrópole, aproximando-se mais formalmente da sociedade francesa. Além de o idioma oficial ser o francês, embora a língua comum do cotidiano seja uma forma francófona creolizada, os habitantes da Guiana têm direitos civis e políticos reconhecidos e equiparados pelo Estado francês, inclusive os direitos de aposentadoria no sistema previdenciário oficial (AROUCK, 2001).

Do ponto de vista geopolítico, a Guiana Francesa é um território francês situado no Planalto das Guianas, localizado na parte nordeste do continente sul-americano. Faz fronteira com o Suriname, a oeste, e com o Brasil a leste (pelo rio Oiapoque) e ao sul (pelo maciço Tumucumaque), e ocupa uma área de aproximadamente 90.000 km2. Embora a região de fronteira seja de difícil acesso (matas densas e rios) e pouco vigiada de ambos os lados, a proximidade entre os principais centros urbanos guianenses, Caiena e Kourou, com a região amazônica, especialmente as capitais brasileiras de Belém e Macapá, proporciona aos brasileiros residentes nessas áreas uma estratégia migratória importante no contexto local.

Como relata Ronaldo AROUCK (2001:327-8), “há na região um fenômeno social novo, representado pela significativa saída de amazônidas, especialmente de Macapá e Belém, para as cidades de Caiena e Kourou, na Guiana Francesa, numa emigração não- oficial e desordenada”. E mesmo que os fluxos de emigração, quando ponderados com a emigração brasileira internacional total, não sejam muito significativos, regionalmente o impacto desse sistema de migração internacional é fundamental para o desenvolvimento das comunidades locais de origem e destino.

De fato, segundo dados oficiais do consulado brasileiro em Caiena, existiam em 2000 aproximadamente 10.000 brasileiros residentes fixos cadastrados na Guiana Francesa, além de pelo menos outros 8.000 clandestinos flutuantes (AROUCK, 2001:329). Considere-se que o departamento ultramarino francês possuía, naquele mesmo ano, cerca de 180.000 habitantes, e tem-se que os brasileiros representam uma etnia preponderante de quase 10% da população nativa.

Mais dois aspectos demográficos importantes para a compreensão do contexto regional são: primeiro, o fato dos brasileiros imigrantes viverem concentrados em apenas duas cidades guianenses, a capital, Caiena, e Kourou (cidade onde se situa o Centro Espacial Francês); segundo, a consolidação de uma segunda geração de imigrantes brasileiros, nascidos na Guiana e plenamente adaptados à cultura local, ainda que conservadores da identidade brasileira, devidamente creolizada, têm marcado a trajetória dos brasileiros em direção ao plateau guianense.

Finalmente, o impacto dos fluxos de emigrantes na economia regional de Macapá e Belém, evidencia a importância dos projetos de migração internacional. Embora não haja dados concretos sobre as remessas financeiras nos últimos anos, AROUCK (2001: 334-6) mostra como as diferenças salariais entre o trabalho no Brasil e na Guiana exercem forte atração da mão-de-obra não-especializada da região amazônica. Através das poupanças firmadas e remetidas ao Brasil, com a economia dos salários recebidos em francos e, mais recentemente, em euros, famílias brasileiras têm sobrevivido às agruras da economia nacional, além de reverterem investimentos em empreendimentos locais — como atestam as reportagens freqüentes veiculadas nos principais jornais da região amazônica brasileira (AROUCK, 2001:336-7).

As conexões entre as regiões de Macapá e Belém e a Guiana Francesa, segundo AROUCK (2001), são relativamente antigas e datam do início do século XIX, quando víveres eram transportados das cidades brasileiras para sustento da capital Caiena. Porém, o primeiro grande fluxo emigratório ocorre em 1964, por conta da construção do Centro Espacial Guianense e a cidade-sede de Kourou. “A chegada maciça de brasileiros está estritamente ligada ao volume de empregos assalariados oferecidos durante a construção do Centro Espacial.” (CALMONT, 1994, apud AROUCK, 2001:334). Por meio da intermediação da Office de Migration International (OMI) do governo francês, brasileiros foram recrutados em São Paulo e norte do Brasil — segundo AROUCK, a atração eram os salários e a diferença de câmbio entre as moedas da época, gerando diferencial de 600% a mais num mês de trabalho.

A construção da cidade-sede de Kourou se estendeu e intensificou-se durante a década de 1980. Situada a 78km de distância de Caiena e vizinha à base espacial, Kourou visava abrigar uma infra-estrutura de serviços necessários à acomodação de cientistas e

técnicos franceses responsáveis pelos projetos de lançamento de foguetes. Desse modo, o novo assentamento urbano gerou grande demanda por mão-de-obra não especializada, especialmente para a construção civil, favorecendo a contratação de trabalhadores brasileiros.

“No período inicial e mais intenso da construção das instalações e serviços infra- estruturais em Kourou e Caiena para a implantação do complexo de lançamentos, chegou- se a perceber a presença de cerca de 25.000 brasileiros.” A forma de contratação da mão- de-obra imigrante, através de empreiteiras e sub-empreiteiras,

“permitia um pagamento muito abaixo do salário mínimo normalmente praticado para trabalhadores formalmente regulamentados [em torno de 900 dólares]. Esta arregimentação, entretanto, dava-se de maneira informal, ou seja, de forma clandestina, uma vez que as exigências para contratação de um trabalhador estrangeiro na Guiana Francesa são as mesmas que se procedem na metrópole” (AROUCK, 2001:336-7).

Portanto, excetuando-se uma minoria de trabalhadores legalizados pelas empreiteiras oficiais que organizaram a construção de Kourou, a maior parte dos imigrantes brasileiros na Guiana eram, e são, imigrantes clandestinos, reforçando os mecanismos intermediários ilegais e obscuros, especialmente as ações sistemáticas de sub-empreiteiros, brokers e retornados. Como relata AROUCK (2001:335),

“os primeiros brasileiros que chegaram, contratados de forma regular e documentados, perceberam a oportunidade e se transformaram em sub-empreiteiros das empresas contratantes. Para diminuírem seus custos e auferirem ganhos bem maiores, contratavam brasileiros, arregimentando-os nos subúrbios de Macapá e Belém, pagando metade do salário que efetivamente ganhariam caso documentados fossem”. Embora as ofertas de trabalho tenham escasseado na década de 1990, os fluxos migratórios permaneceram, sustentados por uma rede informal (clandestina) entre familiares e amigos emigrados há mais tempo e emigrantes potenciais em busca de novas oportunidades de vida.

Segundo AROUCK (2001:337-8),

“o acesso brasileiro a Caiena dá-se, preferencialmente, via marítima, em embarcações pequenas, a motor de centro, do tipo amazônica, feitas em madeira, impróprias, portanto, para a navegação em mar aberto ou noturna. As saídas podem ser feitas de Macapá ou pelo rio Oiapoque. Em ambas as situações os atravessadores, como são conhecidos aqueles que realizam as travessias marítimas, cobram em média 600 reais

por pessoa adulta, sem, é claro, qualquer garantia de chegada ao destino: a foz do rio Mahury, onde os passageiros são literalmente abandonados no lodaçal (...). Já na praia contam com a solidariedade de alguns brasileiros que se fixaram naquele litoral”. A travessia é totalmente clandestina e, além disso, o autor ressalta que a maioria dos brasileiros viaja sem qualquer documento de identidade ou passaporte, tornando-os imediatamente imigrantes ilegais no destino. Atualmente, há um grande contingente de imigrantes residentes (em torno de 10.000), a maioria já legalizada através da incorporação no mercado de trabalho local — graças ao suporte de uma rede étnica que facilita a aquisição de trabalho e documentação necessária para a carte de séjour (documento oficial que garante o trabalho regulamentado ao estrangeiro e inclusão no sistema previdenciário francês).

Assim, segundo AROUCK, dada a consolidação das redes de parentesco e amizade em solo guianense, muitos brasileiros, recentemente, têm conseguido emigrar e se fixar mais facilmente. Eles permanecem um tempo relativo na clandestinidade, fazem trabalhos temporários e não-especializados, retornam ao Brasil (em geral, em intervalos semestrais) e, numa última etapa, conseguem regularizar sua situação de trabalho junto ao governo departamental com o auxílio de suas redes pessoais. O resultado desse processo migratório é a fixação de uma minoria étnica na sociedade guianense, o reforço dos laços étnicos através da segunda geração (filhos dos primeiros imigrantes) e a consolidação de um nicho étnico no mercado de trabalho local que, por sua vez, continua a alimentar a perspectiva emigratória de brasileiros em Macapá e Belém.

Podemos sintetizar as posições estruturais desse sistema de migração internacional da seguinte maneira: 1. emigrantes brasileiros (que partem de Macapá e Belém); 2. famílias e amigos (na origem); 3. famílias e amigos de brasileiros fixados na Guiana; 4. agentes de empreiteiras (e outras empresas guianenses); 5. empreiteiros (empresários guianenses e brasileiros residentes na Guiana); 6. atravessadores (que promovem a travessia clandestina); 7. agentes retornados (no Brasil); 8. agentes retornados (na Guiana, brasileiros com experiência migratória temporária); 9. agência governamental (OMI).

Em linhas gerais as estratégias adotadas pelos emigrantes poderiam ser as seguintes (ver sociograma da Figura 5.3): 1. se o emigrante fosse para a Guiana, como inicialmente, através da contratação oficial da OMI, então ele poderia contatar diretamente a agência governamental ou, também, contatá-la através de um agente intermediário; 2. se o

emigrante tivesse uma rede pessoal extensa e bem consolidada em território guianense, então poderia migrar diretamente ou através dos contatos familiares no Brasil; 3. o emigrante poderia ainda utilizar estratégias totalmente clandestinas, através de agentes especializados (brokers), retornados ou não, responsáveis pela travessia e contatos na Guiana com empreiteiros e familiares. Aliás, este tipo de estratégia, segundo os relatos de AROUCK (2001), parece ser o mais utilizado pelos emigrantes na atualidade.

Quanto à análise das propriedades estruturais desse sistema de migração, observamos que tem a característica marcante de fortíssima coesão interna (0.412) e alta densidade (0.306). As distâncias geodésicas são baixas, em média 1.6, sendo o diâmetro (maior distância entre duas posições estruturais) de apenas 3 passos.

Em princípio, seria de se esperar um sistema bastante controlado, por instituições governamentais ou pelas redes pessoais, e muito homogêneo — por conseqüência, de reduzida flexibilidade e competitividade entre os intermediários.

Contudo, analisando-se as demais propriedades percebe-se que, semelhante ao caso dos dekasseguis, o sistema de emigração para a Guiana Francesa, também equilibra a força de coesão e solidariedade dos laços familiares e de amizade, tanto na Guiana quanto no Brasil, através de elevado grau de centralização e tendências moderadas de aglomeração (0.323) e intermediação de fluxos (9%).

Os graus de centralidade de entrada (50%) e saída (36%) garantem ao sistema maior concentração sobre posições estruturais específicas. Sobressaem com essa propriedade a rede familiar residente na Guiana Francesa e os agentes recrutadores (brokers), já delineando as duas posições intermediárias mais fortes e inseridas (embedded) no sistema.

Figura 5.3: Modelo estrutural do sistema de emigração brasileira para a Guiana Francesa

Obs.: Dados pesquisados e organizados por Dimitri FAZITO, 2005.

Ao analisar em maior detalhe esses intermediários, verificamos que para o sistema foi detectado um grau moderado de centralização dos fluxos, isto é, intermediação em 14%. Isto sugere um sistema com menos posições intermediárias formalmente ativas, ou seja, intermediação mais concentrada sobre poucas posições estruturais — em especial, a rede familiar na Guiana Francesa (17%) e os agentes (15%) apresentam índices bem maiores, o que reforça a força do caráter estrutural dessas posições no sistema.

Não obstante os índices de intermediação sugerirem esses dois intermediários mais centrais, devemos estar atentos para o fato desse sistema de migração não possuir um vértice-obstáculo formal, assemelhando-se ao sistema de migração internacional da África do Sul descrito por TAYLOR (1990). Também naquele caso, o bloco estrutural capaz de desconectar o sistema em dois subcomponentes isolados (origem e destino) seria apenas a unidade de todos as posições intermediárias, como podemos observar na simulação do segundo sociograma da Figura 5.3. Nesse caso, aponta-se um sistema com frágeis posições formais de intermediação, já que todas são capazes de conectar quase que igualmente os emigrantes ao seu destino final.

Assim, como foi discutido para o caso analisado por TAYLOR, a ausência de vértices-obstáculo formais e mesmo um bloco estrutural efetivo (visto que a supressão de todos os intermediários seria uma situação limite que, por conseqüência, tornaria a análise da hipótese 4 inviável ou por demais trivial) nos permite concluir que nesses sistemas deve existir uma coesão e uma homogeneidade interna empiricamente forte e sobredeterminante às posições estruturais formais.

Em outras palavras, a meu ver, a avaliação das hipóteses aqui não deve ser inutilizada a priori, pois, se por um lado nesses sistemas não se encontram blocos estruturais formais (o que vai contra o estabelecido em especial pela hipótese 4, sobre a presença de blocos estruturais de intermediação nos sistemas em geral), a análise estrutural relacional revelada pela interpretação dos índices (que dizem respeito à estrutura formal do sistema) aponta para a existência de posições intermediárias concretas mais fortes que outras (confirmando as hipóteses 3 e 5, sobre a avaliação objetiva da força estrutural exercida pelos atores que ocupam posições estruturais intermediárias).

Portanto, mesmo que não existam posições estruturais formais de intermediação (ou blocos), esta constatação deve ser entendida como uma indicação da força estrutural do sistema, distribuída segundo uma disposição topológica (formal) e empírica dos atores e suas posições relativas. Desse modo, pode-se dizer que o conjunto de hipóteses utilizado até agora pode bem organizar uma espécie de escala graduada, do menor ao maior grau de força estrutural pertencente às posições e atores em uma combinação (ou sobreposição) da topologia do sistema e suas relações empíricas.

Apenas no sentido de deixar claro este ponto, comparando-se os dois casos em questão, TAYLOR (1990) e AROUCK (2001), verifica-se que ambos os sistemas de migração são muito coesos, homogêneos e densos. No caso estudado por AROUCK encontramos um sistema fortemente controlado pelas redes familiares e de amizade, assemelhando-se ao tipo de controle exercido pelo Estado sul-africano (através de sua agência oficial, TEBA). Para uma possível interpretação desses casos, pode-se dizer que, nesses sistemas, os atores que ocupam determinadas posições adquirem maior poder de intermediação devido à sua ação prática em relação aos demais atores do sistema. Isto é, mais que o constrangimento formal das posições relativas, seria a constituição concreta dos atores e sua ação prática cotidiana, no contexto social da migração, a maior responsável pela organização e consolidação dos fluxos — visto que nesses sistemas muito coesos e homogêneos, onde todos podem contatar quaisquer outros sem necessidade de um intermediário, o contexto histórico e social da migração é mais relevante para explicar a força estrutural relativa de cada ator concreto.

No caso da emigração internacional de brasileiros para a Guiana Francesa, como vimos, a rede pessoal (composta de familiares, amigos e retornados) é preponderante para o projeto migratório, mais pela sua consolidação histórica do que pela topologia mesma do sistema.

Finalmente, ao se observar o índice de intermediação de fluxos, embora este seja relativamente baixo (9%), mais uma vez a recorrência dos agentes (11%) e rede familiar na Guiana Francesa (6%), seguidos pelos retornados brasileiros (4%), atesta a preponderância estrutural dessas posições na intermediação dos fluxos de emigrantes, mesmo que não se tenha detectado qualquer vértice-obstáculo ideal no sociograma acima.

Em última análise, o sistema é equilibrado e estável — especialmente em torno da rede pessoal de familiares e amigos residentes na Guiana Francesa—, embora permita leve concentração (ou mesmo monopólio) dos fluxos, na prática, sobre duas posições estruturais quase que exclusivas. Portanto, a sustentação dos fluxos nesse sistema migratório, depende, em larga medida, da capacidade (prática) operacional dos agentes em conjunto com a rede pessoal do imigrante presente na Guiana.