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1. Introdução: o trajeto das reflexões e da análise

2.3. Considerações finais: uma ordem dos indícios demográficos sobre os

Ao longo deste capítulo, procurei traçar as conexões entre os fatos empíricos dos deslocamentos humanos no espaço e as representações (mentais) coletivas das sociedades. A interpretação do fato empírico não é gratuita e mecânica, pois ela deve seguir os constrangimentos e as facilidades disponibilizadas num campo cognitivo definido pela tradição cultural historicamente concebida. A ciência, de maneira geral, seria um campo de representações possíveis que exprimem, segundo um método particular, os vínculos entre fatos e significados — os seres humanos, para se relacionarem com o mundo real, buscam (ou elaboram) as conexões entre os fatos e aqueles significados que sejam inteligíveis (objetivos) nas interações com outros (BOURDIEU, 2001, 2003).

Portanto, como procurei mostrar, os fatos empíricos passados (e datados histórica e geograficamente) não podem ser diretamente conectados aos significados atribuídos a fenômenos concretos semelhantes da nossa realidade contemporânea. O deslocamento de pessoas durante o neolítico poderia, certamente, ser mensurado por técnicas objetivas adequadas, tanto quanto os deslocamentos atuais. Contudo, a compreensão e avaliação apropriada dos impactos sociais, demográficos e ecológicos, proporcionados naquele contexto, não poderiam ser alcançadas através das mesmas suposições e percepções

adotadas para fenômenos semelhantes na atualidade. Não é porque para o ser humano atual (trabalhador) faça sentido se deslocar no espaço em busca de melhores condições econômicas (alocação mais vantajosa no mercado) que, também, fará sentido (o mesmo sentido) tal estratégia de deslocamento para o ser humano do neolítico (não o trabalhador, porém o chefe de uma linhagem, por exemplo).

Bem entendido, o deslocamento pode ocorrer, tecnicamente, da mesma forma, mas a interpretação (e objetividade auferida) da estratégia do movimento pode variar completamente, configurando diferentes causalidades e efeitos de mecanismo para fenômenos empíricos aparentemente idênticos.

Nosso cotidiano se constitui da sobreposição de estruturas diversas (culturais, políticas, econômicas, demográficas, psicológicas etc.) que nos inscrevem no mundo real e, tamanha é nossa imersão nesse cotidiano que, na maioria das vezes, não nos damos conta de que os fatos nem sempre foram percebidos, interpretados e vivenciados da mesma maneira que hoje. Certamente, o mesmo parece ocorrer no campo científico e, assim, optei por “desconstruir” a categoria “migração”, em seus componentes empírico (os deslocamentos humanos ao longo da história) e discursivo (o campo das representações científicas e político-ideológicas).

Do processo de desconstrução do conceito ao traçado sistemático de sua genealogia (a arqueologia do conhecimento científico a respeito dos deslocamentos), podemos constatar que as suposições e assertivas que animam a categoria “migração” também correspondem a contextos específicos das sociedades humanas. Além disso, há o problema recorrente de não podermos traçar o desenvolvimento paralelo e ajustado dos fatos empíricos e suas interpretações contextualizadas, devido à simples falta de registros acurados do campo das representações possíveis (nem informações sobre o que seria a ciência do homem do neolítico, tampouco sua política cotidiana).

Sumariamente, tentei levar adiante a estratégia indiciária que procura identificar as conexões entre detalhes aparentemente isolados ou absurdamente ligados, que se referem a um sistema de posições internamente coerentes (GINZBURG, 2003). Em outras palavras, a investigação dos fatos empíricos, através de seus detalhes (como a particularidade dos deslocamentos em diferentes épocas e regiões) imbricados nas análises científicas (também elas investigadas através dos detalhes de suas representações — como o processo de

consolidação do “indivíduo” como força autônoma e racional no discurso científico), parece-me ter permitido uma reflexão mais pormenorizada e criteriosa sobre o fenômeno da migração, contribuindo para uma melhor compreensão das forças objetivas que atuam sobre o deslocamento em diferentes contextos.

Como procurei evidenciar, o conceito de migração se consolida na análise científica no mesmo momento em que o projeto moderno (Iluminista) se instala no campo da ciência e se estabelece como representação possível e dominante (FOUCAULT, 2002). Nesse sentido, os pressupostos da racionalidade e instrumentalidade dos atores na migração, além da sobreposição das estruturas demográficas e econômicas (crescimento populacional e mercado de trabalho, por exemplo) como determinante dos deslocamentos humanos devem ser devidamente relativizados e compreendidos em seus contextos apropriados — nestes domínios deve haver espaço para as generalizações e a construção de modelos sofisticados.

DAVIS (1989:259) conclui que a migração se debate

“com muitos aspectos do comportamento humano que têm fraca conexão lógica uns com os outros. Diferentemente da fecundidade ou mortalidade, a imigração, virtualmente, não sofre constrangimentos biológicos. Em graus excepcionais é a

criatura de políticas e de regras acidentais ou arbitrárias. Tentativas de formular teorias

sobre o comportamento migratório — esforços no sentido de encontrar leis da migração, por exemplo — produzem pouco mais do que regras triviais. De maneira semelhante, tentativas de usar o raciocínio econômico na apreensão do comportamento migratório, freqüentemente trata o migrante em si mesmo como a unidade decisória, e ignora os interesses particulares envolvidos das sociedades expulsoras e receptoras. O migrante não é sempre um trabalhador, nem seu papel na sociedade é completamente dependente de seu trabalho”.

Cabe, então, questionar por que tais tentativas de interpretação e manipulação do fenômeno persistem no discurso científico e são também legitimadas no discurso político dos Estados.

Uma primeira conclusão a respeito, como afirmado anteriormente, vem do fato cotidiano e trivial de assumirmos nossa condição humana presente como dada naturalmente em um sistema de referências (representações) não problemático (ou pelo menos, onde a

problematização é sistematicamente evitável, tanto no plano da vida cotidiana, quanto no plano dos discursos científicos e políticos).22

Um segundo ponto, igualmente relevante, diz respeito à ocorrência dos fenômenos empíricos que exercem uma pressão arbitrária sobre o campo das representações (científicas e políticas, por exemplo) e geram, assim, interpretações e explicações legitimadas no campo social (BOURDIEU, 2003).

Por exemplo, ao longo do século XX, dado o crescimento populacional, o adensamento dos centros urbanos em todos os continentes, a aceleração da produção industrial sem precedentes, os avanços tecnológicos e o encurtamento das distâncias, ocorreu o desenvolvimento ideológico fundamentado nas crenças gerais do progresso humano — leia-se “progresso das sociedades capitalistas ocidentais, industrializadas e dominantes”. Quanto a isto, Immanuel WALLERSTEIN (2001:38) sugere que

“a maioria das populações do mundo esteja — objetiva e subjetivamente — em piores condições materiais do que nos sistemas históricos anteriores. (...) Estamos tão imbuídos da ideologia autojustificada do progresso, forjada por esse sistema histórico [o capitalismo], que temos dificuldade em reconhecer seus enormes malogros históricos”.

Essa “ideologia do progresso” que se consolidou particularmente no século XX, no deflagrado processo de “ocidentalização”, se fez presente especialmente no campo das representações científicas e políticas — era preciso explicar (pela ciência) e legitimar (pela política dos Estados) as transformações sociais, econômicas e ecológicas advindas do progresso, como a urbanização, o desenvolvimento econômico e a consolidação das democracias.

Particularmente sensível aos ditames da “ocidentalização”, também chamada “modernização” — e seus desdobramentos mais recentes com a chamada globalização —, o campo da análise demográfica se viu inundado por teorizações e avaliações técnicas sobre os fatos de população, que logo se referenciavam e se justificavam pelos processos de modernização das estruturas sociais, econômicas, demográficas etc. Um exemplo clássico pode ser encontrado no desenvolvimento das teorias da transição demográfica que

22 Cabe aqui apenas ressaltar que o uso do termo “políticas”, nos sentidos aqui adotados, dizem respeito às

políticas de planejamento concebidas e empreendidas pelo Estado e suas instituições oficiais — como no inglês, policy.

incorporaram aquilo que WALLERSTEIN chamou de “ideologia do progresso”, através das pressões da “modernização” (CALDWELL, 1996; KIRK, 1996).

No caso das migrações não é diferente. Como escreve DAVIS (1989:250),

“a perspectiva liberal sobre as migrações persiste entre os intelectuais com notável tenacidade. A despeito de milhares de refugiados e pessoas deslocadas compulsoriamente depois de duas Grandes Guerras, a despeito de disputas crônicas entre grupos étnicos e religiosos, a despeito do bloqueio das fronteiras e trocas forçadas de minorias, a teoria predominante trata a migração como o resultado de indivíduos livres (os migrantes) perseguindo seus próprios interesses econômicos”. Conseqüentemente, perguntaríamos que progresso ou modernização seria capaz de dar sentido aos milhares de deslocados e imigrantes que se encontram em uma “zona morta”, onde não deixaram de ser ainda estrangeiros e já perderam os vínculos que os identificam como nativos de suas terras natais? (SAYAD, 2000).

Como afirma SAYAD (1998:21), “não se pode escrever inocentemente sobre a imigração e sobre os imigrantes; não se pode escrever sem se perguntar o que significa escrever sobre esse objeto ou, o que é o mesmo, sem interrogar-se acerca do estatuto social e científico desse mesmo objeto”. Por isto, procurei estabelecer os vínculos de significado dos eventos vitais (deslocamentos) inscritos no campo social e cognitivo; conhecer as diversas vestimentas a que foram direcionados os fenômenos da migração, desconstruí-las e referenciá-las para, posteriormente, tal qual o migrante, elaborar “o próprio modelo do mecanismo segundo o qual se reproduz a emigração e no qual a experiência alienada e mistificada da emigração preenche uma função essencial” (SAYAD, 1998:44), função essa que pode ser a mediação de necessidades econômicas no atual sistema histórico, ou necessidades políticas e de obrigações familiares no sistema histórico dos caçadores coletores, por exemplo.

A principal motivação deste estudo foi a necessidade de uma compreensão mais profunda do fenômeno migratório, que investigasse, especificamente, os mecanismos de intermediação dos fluxos de deslocamentos entre origem e destino — ou a “trajetória” propriamente dita. Tais aspectos fundamentais dos sistemas migratórios, que aqui se convencionou chamar de “mecanismos intermediários”, como foi observado ao longo deste capítulo, são freqüentemente negligenciados nos estudos de migração, indistintamente quanto à área de pesquisa — a negligência ocorre, mesmo quando se parte de uma

perspectiva necessariamente relacional e dinâmica, como as análises estruturais das redes sociais na migração.

Em geral, as análises da migração, inclusive aquelas mais recentes, ditas “análises sistêmicas” (KRITZ et al., 1992), focalizam ou a emigração nos territórios de origem, ou a imigração nos territórios de destino. Além disso, quando se propõe uma análise sistêmica mais completa, considera-se origem e destino sem, contudo, se aprofundar a compreensão sobre os mecanismos que possibilitam as conexões e trocas entre os dois pontos no espaço e no tempo — em outras palavras, não se considera a trajetória concreta de indivíduos ou coletividades que conferem sentido à existência de uma “origem” e um “destino”.

As análises sistêmicas nos estudos de migração, em geral, caracterizam-se por um enfoque parcial, destacando as configurações de origem e destino, embora proponham uma abordagem processual e integrada. O melhor exemplo desta parcialidade analítica é a restrição freqüente ao papel dos agentes intermediários. Isto é, ao mesmo tempo em que se propõe uma análise processual e dinâmica do sistema migratório, apenas se observam os pontos estáticos no espaço e no tempo, ou seja, origem e destino (não raro, isoladamente).

Como vimos, esse parece ser o caso da perspectiva sistêmico-estruturalista das redes sociais em MASSEY et al. (1987), onde se consideram apenas as redes na origem ou no destino, como laços comunitários, e não propriamente como mecanismos formais que facilitam a realização de um trajeto concreto. Para MASSEY e seus colegas, as redes sociais desempenham o papel de difusores de um “projeto” migratório, no sentido de ampliarem o conhecimento dos indivíduos sobre os laços, destinos e trabalhos mais disponíveis para o sucesso do deslocamento. Nesse sentido, as redes são tratadas como mecanismos difusores de informações e bens materiais e simbólicos, em vez de se constituírem efetivamente como mecanismos de intermediação de pessoas (embora possam sê-lo, eventualmente).

Na perspectiva adotada nesta tese, como veremos a partir do capítulo seguinte, considera-se as redes sociais como estruturas sociais constituídas de diferentes mecanismos (posições e papéis, formais e concretos), inclusive de mecanismos de intermediação. Aqui, por limitações técnicas no tratamento dos dados, desenvolveu-se uma análise sincrônica da participação dessas redes sociais de migração e seus mecanismos intermediários — algo distinto do estudo de MASSEY e seus colegas.

Enfim, procuro focalizar, exatamente, aqueles aspectos menos explorados nos sistemas migratórios, ou seja, os mecanismos intermediários. Pois, tanto origem e destino, quanto o trajeto que conecta ambos são partes essenciais de um sistema de migração. E, de fato, ao se considerar os mecanismos intermediários que possibilitam os deslocamentos, torna-se necessário levar também em consideração os pólos orientadores dos fluxos e trajetórias.

Portanto, aqui, a análise sistêmica é uma conseqüência evidente dos princípios assumidos teórica e conceitualmente, como procurei sustentar neste capítulo: a migração deve ser entendida como deslocamento, ou seja, um evento vital que se inscreve na estrutura social e conecta pessoas, instituições e lugares através de uma trajetória singular.

Através da genealogia conceitual da migração, espero ter evidenciado que, talvez, o que nos possibilite “converter o olhar” sobre os deslocamentos humanos, tornados objetos de análise e reflexão, seja a compreensão da “trajetória” de diferentes atores (individuais e coletivos) nos seus projetos migratórios. Enfim, os diversos mecanismos, estruturas, objetos, pessoas e forças que operam entre dois pólos, devem ser investigados sistematicamente e, se possível, formalizados, para que possamos aprofundar nosso entendimento sobre os deslocamentos humanos.

3. Análise estrutural dos sistemas de migração: algumas considerações