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6. Finale: presto — à guisa de conclusão

6.1. Do ponto de partida: a natureza dos trajetos

Penso na epígrafe desta tese — aquele texto de Saint-Victor, citado por TODOROV (2003:364), cujo enigma, conservado no jogo de palavras, sentidos e sensações da experiência do deslocamento, inflige coragem e temor a um só tempo: coragem, porque se quer elucidar o mistério, e temor, por se descobrir que, após a solução final do enigma, nada mais resta.

De qualquer modo, gostaria de poder compreender aquela epígrafe como o migrante é, realmente, capaz de compreendê-la. Ao longo desta tese, ao longo de toda a reflexão feita nestes últimos anos, tentei, através não da experiência, mas da imaginação e de uma certa vivência da forma, aproximar minha compreensão daquela conquistada pelo migrante (a quem espero ter sido capaz de nunca impor o grilhão da objetividade alienante à sua condição concreta, de ser humano).

Ao fazer esta reflexão final que considero, pessoalmente, de suma importância, peço licença, paciência e confiança dos leitores para uma trajetória inspirada mais na poética musical de BARTÓK que na “separação objetiva”, demarcada pela “navalha de OCKHAM”.

Assim, inicio este item com um diálogo imaginário, relatado pelo escritor italiano Italo CALVINO (1995:28-9):

“Marco Polo imaginava responder (ou Kublai imaginava a sua resposta) que, quanto mais se perdia em bairros desconhecidos de cidades distantes, melhor compreendia as outras cidades que havia atravessado para chegar até lá, e reconstituía as etapas de suas viagens, e aprendia a conhecer o porto de onde havia zarpado, e os lugares familiares de sua juventude, e os arredores de casa, e uma pracinha de Veneza em que corria quando era criança.

Neste ponto, Kublai Khan o interrompia ou imaginava interrompê-lo ou Marco Polo imaginava ser interrompido com uma pergunta como:

— Você avança com a cabeça voltada para trás? — ou então: — O que você vê está sempre às suas costas? — ou melhor: — A sua viagem só se dá no passado?

Tudo isso para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar explicar ou ser imaginado explicando ou finalmente conseguir explicar a si mesmo que aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos.

Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça que vive uma vida ou um instante que poderiam ser seus; ele podia estar no lugar daquele homem se tivesse parado no tempo tanto tempo atrás, ou então se tanto tempo atrás numa encruzilhada tivesse tomado uma estrada em vez de outra e depois de uma longa viagem se encontrasse no lugar daquele homem e naquela praça.

Agora, desse passado real ou hipotético, ele está excluído; não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.

— Você viaja para reviver o seu passado? — era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: — Você viaja para reencontrar o seu futuro?

E a resposta de Marco:

— Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.”

Este diálogo merece uma reflexão profunda. Em primeiro lugar, se trocássemos o termo “viajante” por “migrante” e pensássemos como poderíamos percorrer novamente aquelas linhas imaginárias, em especial a última frase: “O migrante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.”

Em segundo lugar, o contexto do diálogo entre Kublai Khan e Marco Polo pode ser resumido da seguinte maneira: o Grande Khan está velho e cansado, não confia e não gosta das narrativas de seus vassalos sobre a administração das cidades do Império, que parece se esfacelar. Nesse encontro fictício, Marco Polo é como Sheherazade, a bela princesa que seduz o Sultão através das paradoxais representações contidas em seu discurso — o discurso de Marco, o discurso do migrante, é, de fato, um simulacro (SAYAD, 1998).

Então, o Khan é seduzido pelas narrativas cheias de descrições paradoxais e de intensa sensibilidade de Marco Polo (como se este tivesse sido capaz de vivenciar todas as cidades do Império — e, quanto a nós, só poderemos imaginar se ele esteve ou não em todas as cidades no final do livro, pois CALVINO nunca oferece uma resposta objetiva). Assim, Polo vai conquistando e cativando cada vez mais seu Imperador, e este vai redescobrindo e reinterpretando as bases do seu reino, as riquezas, suas fronteiras e enigmas, sob a perspectiva distante, mas ao mesmo tempo viva, esboçada por seu interlocutor.

Porém, há um confronto interminável, pois, de um lado, o Khan deseja que suas cidades sejam apreendidas e objetivadas à sua maneira, deseja o controle sobre todas elas, quer estipular a ordem e o procedimento de como criá-las em sua própria imaginação (e, como se não bastasse, também deseja impor tal ordem à imaginação do veneziano). De outro lado, Marco Polo conduz sua trajetória de maneira dinâmica, por vezes caótica (em especial, para a percepção do Imperador), e privilegia a sensibilidade intuitiva do explorador que possui o dom da ubiqüidade (!).

Minha interpretação pessoal sobre este embate de juízos e representações é uma leitura que faço a partir das reflexões de CALVINO — tendo sido também ele um migrante. Em vários de seus livros esta temática aparece de um modo ou de outro. Em Seis propostas para o próximo milênio (2003), o autor expressa claramente seu fascínio pela batalha “intelectual” entre a representação do cristal e da chama. De um lado, a constância absoluta, a rigidez, frieza e objetividade contidas nas formas invariantes do cristal — metáfora para o racionalismo na sua versão mais exacerbada, cartesiana. De outro lado, a inconstância absoluta, a dinâmica, a complexidade e a imprevisibilidade das curvas da chama que nunca se apaga — metáfora para o romantismo na sua versão mais intensa, simbolista.

Gosto de pensar particularmente que, no final, Marco Polo é o vencedor da contenda. Se é que existe ou deva mesmo existir um vencedor, e se esse fosse o objetivo de CALVINO — e não creio que tenha sido. Na realidade o autor parece desejar a celebração da grandeza e da necessidade das duas perspectivas. De fato, o ponto de contato que faz uma perspectiva se sustentar e depender da outra para a composição de todo o conjunto — nessa leitura possível, ao final de toda a estória, Marco Polo e Kublai Khan seriam a mesma pessoa, o mesmo ser, inconcebíveis isoladamente.

Quanto à migração, exige-se também uma reflexão atenta, pois poderíamos pensar aqui na junção da chama e do cristal. Isto é, o migrante seria esse “deslocado-viajante”, o ser em perpétuo movimento, que segue de cidade em cidade, revive seu passado, reencontra seu futuro e, em negativo, reconhece-se a si mesmo naquilo que nunca teve e nunca terá — tal o efeito de dissimulação imposto ao deslocamento e evocado por SAYAD (1998).

Esse movimento, ao mesmo tempo em que é o projeto e o processo (uma experiência) concreto, “calculado” e intencionado pelo indivíduo, é também completamente aleatório, imprevisto, dinâmico e incomensurável. Portanto, ao final, não é possível dizer que o imigrante, por mais racional que ele seja, emigrou um dia porque pesou na balança os prós e contras. Não apenas por isto, pois ele emigrou um dia porque sentiu um desejo incontrolável e subterrâneo de se confrontar consigo e com a coletividade à qual pertence, de descobrir a si mesmo da maneira mais contundente possível.... porque nessa via não há retorno (SAYAD, 2000).

No desenvolvimento do segundo capítulo desta tese, perfazendo o trajeto das representações (os conceitos) sobre a migração, preocupei-me essencialmente em caracterizar essa duplicidade (da forma e do conteúdo, fato e representação, unidade e diversidade, inércia e movimento, ausência e presença) própria da natureza da categoria, da migração como conceito analítico. Não porque seja uma característica particular da migração, em seu sentido fenomênico, mas, sobretudo, porque tal duplicidade subsiste na tradição especulativa do pensamento ocidental sobre a realidade na qual vivemos (RUSSELL, 2000).

Embora a utilização de termos correlatos — em especial, deslocamento, trajeto e migração — para o mesmo fenômeno terem sido evocados aqui e ali, às vezes, sem uma ordem ou motivo aparentes, o meu desejo foi simplesmente tornar o conceito de migração um problema real para o analista, tanto quanto é também um problema para o migrante. Ou, como diria BOURDIEU (2003:27), uma prevenção saudável do espírito “contra o fetichismo dos conceitos e da ‘teoria’, que nasce da propensão para considerar os instrumentos ‘teóricos’(...) em si mesmos, em vez de os fazer funcionar, de os pôr em ação”.

Muitas vezes nos esquecemos que a migração é um fenômeno vinculado a um conceito, a uma idéia, a um olhar. Como procurei mostrar no primeiro capítulo, e também

nos diversos estudos de caso dos capítulos 3 e 4, o fenômeno muda, não apenas pela força dos fatos e da experiência humana, tão diversa no tempo e no espaço. O fenômeno também muda pela força de uma nova idéia, de um novo conceito, como aqueles propostos por SMITH, RICARDO e MALTHUS, e que, em larga medida, determinaram a “conversão do olhar” histórico e científico sobre a migração (e não apenas ela) nos últimos 250 anos.

Entendo que colocar o conceito de migração em ação implica pensá-lo relacionalmente, isto é, refletir de forma crítica sobre a representação do movimento humano, o deslocamento ou o trajeto. Enfim, colocar-se ao mesmo tempo na perspectiva de quem observa e pensa e, por meio daquilo que não se tem, de quem vivencia e sofre pelas escolhas e medidas concretas.

Nesse sentido, os termos deslocamento e trajeto apenas correspondem à conversão do olhar sobre a migração: sem subtrair-lhe os fatos, chama a atenção para as relações dinâmicas e constantes que determinam as variações do fenômeno em cada contexto singular — e assim, presta o devido reconhecimento e respeito a que todo migrante faz jus.