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2. Estudo de caso: da Rússia à Geórgia

2.4. A eminência da eclosão do conflito

Vistos que estão alguns apontamentos históricos referentes à Geórgia, à Abecásia e à Ossétia do Sul, importa, neste momento, salientar alguns dos fatores que, de forma mais imediata, tiveram um impacto suficiente para serem também responsáveis pelo conflito que se viria a registar no ano de 2008.

No que concerne a uma análise mais ampla dos acontecimentos, foquemo-nos na posição russa. Importa começar por referenciar que o crescimento do institucionalismo europeu e atlântico em regiões historicamente afetas à antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é sempre algo acolhido com alguma suspeição por parte de Moscovo. Referimo-nos, em concreto, ao ano de 2004, no qual a União Europeia realizou o quinto alargamento da sua história, passando, a partir de então, a contar com: Malta, Chipre, República Checa, Hungria, Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, Eslovénia e Eslováquia (Europa, s. d.). Nesse mesmo ano, também a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, no acrónimo em inglês) realizou uma grande ampliação dos seus Estados-membros, estendendo-se, então, à Bulgária, Estónia, Letónia, Lituânia, Roménia, Eslováquia e Eslovénia (NATO, s. d.). Ainda que o Kremlin veja a União Europeia como um parceiro, algumas vezes, e como uma entidade competidora, noutras ocasiões, o mesmo não sucede em relação à Aliança Atlântica15. Isto é, na visão dos dirigentes russos, os alargamentos da Organização do Tratado do Atlântico Norte sobre as antigas possessões soviéticas representam uma ingerência numa esfera de influência sobre a qual Moscovo tenta recuperar alguma da preponderância que há algumas décadas atrás era inteiramente sua, encarando esse fenómeno de expansão ocidental com uma grande desconfiança. Por outras palavras, é visível que o difícil quadro de relacionamento entre os dois atores tem causado feridas aos interesses nacionais russos, colidindo com as visões de política externa, defesa e segurança preconizadas por Vladimir Putin e também por Dmitri Medvedev (Fânzeres, 2014: 126-131).

Serve esta contextualização para clarificar as dinâmicas de poder que se iam alterando no espaço pós-soviético e que faziam com que a Rússia se sentisse cada vez mais encurralada, mais cercada, pelos seus vizinhos e ex-parceiros. Nesse sentido, foi com uma preocupação acrescida que o Kremlin viu Mikheil Saakashvili subir ao poder com uma agenda pró-europeia, pró-atlântica, de liberalização económica e de edificação

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institucional, em suma, com um programa de governo todo ele de matriz ocidental (Cornell e Nilsson, 2009: 253).

Nesse sentido, a conexão entre a chegada à presidência de Mikheil Saakashvili e um novo período de intensificação das tensões regionais, quer entre Tbilisi e Moscovo, quer entre Tbilisi, Sukhumi e Tskhinvali, não se trata de uma coincidência. É, isso sim, o reflexo da ambição da reunificação do território georgiano, do desejo de reincorporação da Abecásia e da Ossétia do Sul à alçada georgiana por parte de um novo executivo que chegava ao poder galvanizado e legitimado por um contundente resultado de 96% no sufrágio de janeiro de 2004 (Rayfield, 2012: 392).

No que se refere à Abecásia, o expoente dessa prioridade política deu-se em 2006. Neste ano, o executivo de Mikheil Saakashvili ordenou uma operação policial para retomar o controlo do vale de Kodori, tendo sido esse o resultado obtido (Ramírez, 2013: 107). Esta constituiu uma das principais afrontas dos georgianos sobre os abecásios, o que acabaria por redundar num ressurgimento dos antagonismos que, como já pudemos verificar, marcaram ao longo do tempo a relação entre o povo de Sukhumi e de Tbilisi.

Quanto à Ossétia do Sul, também neste território secessionista se fez sentir uma renovada onda de turbulência aquando da chegada de Mikheil Saakashvili à liderança do governo georgiano. Entre os episódios mais significativos dessa retoma de tensões, regista-se o dia 3 de junho de 2004, quando a Geórgia enviou para Tskhinvali um grande número de carros de combate, veículos armados, mísseis e agentes de manutenção de paz, tendo também operacionais destacados nas imediações da capital osseta. Outra ocorrência que marcou este período deu-se em maio de 2006, quando forças armadas russas ligadas à Força Conjunta de Manutenção de Paz atravessaram o túnel de Roki (que liga a Ossétia do Norte, na Rússia, à Ossétia do Sul) para renderem outros operacionais no terreno. A Geórgia acolheu esta movimentação como desafiadora e provocatória, por considerar que Moscovo estava a usar essa justificação para encobrir o grande reforço do contingente presente no local. A partir de então, a Geórgia acusou a Rússia de ter realizado ataques aéreos no seu território, a Ossétia do Sul denunciou uma ofensiva armada de Tbilisi sobre Tskhinvali e a escalada das tensões foi-se prolongando com a perigosidade das ocorrências a agravar-se dia após dia (Sputnik, 2008).

Posto isto, vale a pena debruçarmo-nos um pouco mais sobre a visão russa. Numa primeira fase, o Kremlin não tinha a possibilidade de tensão interétnica entre georgianos e abecásios e ossetas e subsequente evolução para um conflito armado no topo da sua agenda. No entanto, um conjunto de fatores acabou por contribuir para que Moscovo

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acabasse por seguir uma outra linha de ação, a saber-se: a deterioração das relações com a Geórgia (por conta da progressiva ocidentalização política e económica conduzida pelo executivo de Mikheil Saakashvili), a retoma da preponderância russa sobre o espaço pós- soviético e o apoio do ocidente à independência do Kosovo16. Sendo certo que o envolvimento russo junto dos movimentos secessionistas osseta e abecásio era já considerado como uma espécie de “mão invisível” que patrocinava e incentivava estas causas, a partir de meados de 2008 o apoio russo clarificou-se, tornando-se direto e declarado (Aphrasidze e Siroky, 2010: 133).

No verão desse ano, cada uma das partes envolvidas acusava a outra de ter iniciado a sucessão de hostilidades e violência acima referida e o cenário de conflito armado estava cada vez mais eminente num horizonte temporal próximo.