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2- RE-VISITANDO A VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA

2.6 V IOLÊNCIA E S AÚDE

2.6.2 A Enfermagem e a Violência

No âmbito da Enfermagem, temos buscado compreender sua participação e seu envolvimento com a temática. Estamos perto das pessoas e famílias em seu processo de viver nas interfaces com a saúde e a doença, do nascimento até a morte, em espaços onde podemos encontrar vítimas de violência no contexto familiar.

Esta realidade requer, tanto da Enfermagem como de todas as outras profissões, o compromisso, a lealdade para com o outro, o engajamento, a fim de cuidar das vítimas, bem como prevenir a violência. Assim, sua atuação será preventiva e não apenas quando a violência já se instaurou, trazendo suas vítimas semidestruídas para os serviços de saúde.

Silva e Elsen (1999) examinaram a produção científica de Enfermagem da Região Sul do Brasil sobre a temática, constatando que no período do início de 1990 a julho de 1999, os enfermeiros publicaram 45 trabalhos, entre eles dois (2) livros, um (1) capítulo de livro, quatro (4) dissertações de mestrado, uma (1) tese de doutorado, (1) trabalho completo em periódico e 36 resumos em anais. Essas publicações mostram que o tipo de violência que tem sido mais estudado é o contra a criança e adolescente, e o menos presente nessas investigações é sobre a violência contra o idoso. Segundo as autoras, estes dados, quando comparados a outras temáticas investigadas pela Enfermagem, indicam a necessidade de maior investimento na área.

Em estudo piloto desenvolvido junto a alunos de graduação, observou-se que os mesmos apresentam percepções equivocadas sobre o fenômeno, mostrando-se desejosos em aprofundar os seus conhecimentos, principalmente em como suspeitar de casos de violência, como abordar a família e como denunciar o agressor. Referem ainda encontrar casos de violência durante a realização de suas práticas

assistenciais – dentro do âmbito hospitalar – porém estes não foram por eles cuidados (PEDROZO; VIEIRA E SILVA, 1999).

Outra pesquisa, desenvolvida por Elsen, Grüdtner e Rodrigues (2000), em Florianópolis, com enfermeiros nos serviços de saúde, identificou pelo menos três tipos de resposta do enfermeiro frente à violência familiar:

1. O enfermeiro que não “enxerga” a violência; ou o que tem uma “venda nos olhos” que o impossibilita de reconhecer o fenômeno. O profissional geralmente se encontra “desligado”/alienado do contexto social; não busca maiores conhecimentos sobre o tema e direciona seu trabalho/cuidado dentro de um modelo centrado na patologia da criança/adolescente, o que inviabiliza uma abordagem do ser humano em sua integralidade e como ser de relações; 2. O enfermeiro que se encontra “aprisionado” a certas crenças ou experiências passadas que o impedem de abordar o fenômeno em sua prática profissional. Este, conforme Azevedo e Guerra (1999), apresenta reticências psicológicas.2

3. O enfermeiro “envolvido cientificamente” é o desejoso de aprender, de compreender a violência na família, descobrindo espaços para a atuação da Enfermagem. Busca articular-se com os demais profissionais e se refere à necessidade de participar de grupos de estudos. Compromete-se ética e politicamente, no sentido de manter-se fiel: ao princípio da defesa/proteção da vida humana; ao direito à liberdade e emancipação do ser humano; à solidariedade às vítimas, possibilitando o desenvolvimento de todas as potencialidades do ser humano/grupo, evitando julgamentos e culpabilizações.

Desejando ampliar o horizonte do conhecimento – sobre violência doméstica – que os acadêmicos recebem durante a graduação, Elsen, Grüdtner e Rodrigues (2001) realizaram uma pesquisa em cinco escolas de Enfermagem do Estado de Santa Catarina. Dentre os achados, constatou-se que a maioria dos estudantes

2 As reticências psicológicas são reações que expressam as reticências pessoais ao trato de casos de violência doméstica e

ocorrem, quando você reage com sentimento de ódio, vingança, com crença de que a vítima pediu para ser abusada (em abusos incestuosos), ou então com atitudes de indiferença, descrença, pieguice, ambivalência, ou ainda, com sentimento de incômodo, de mal estar que levam a preferir cortar a questão e/ou fugir do caso (AZEVEDO E GUERRA, 1999, p.9).

despertou para o compromisso social da sua carreira, referente a essa temática, a partir do contato com o instrumento de pesquisa. As entrevistadas ainda desejavam maior preparo, já que durante o curso presenciaram profissionais agirem como se o assunto não lhes dissesse respeito, ao receberem uma vítima de violência doméstica, ou desejavam cuidar, mas não se sentiam preparados.

Todavia, Minayo e Souza (1999, p.8) declaram que “até pouco tempo, porém, o setor saúde olhou para o fenômeno da violência, como mero espectador de eventos e um reparador dos estragos provocados pelos conflitos sociais”. Embora esses aspectos sejam da alçada quase que específica da Enfermagem, sua atuação, no entanto, não se restringe a eles.

Assis e Constantino (2003, p.59), analisando a Tendência da Produção

Científica Brasileira sobre Violência e Acidentes na década de 90, percebem uma

ênfase nos estudos teóricos, visando à sensibilização e capacitação dos profissionais. Esse estudo identifica que a Enfermagem foi à única área a focalizar a violência sob a modalidade negligência.

Rememorando que: a Enfermagem é uma disciplina de prática social; que o atendimento às vítimas de violência intrafamiliar é de caráter interdisciplinar; que ele não se estende apenas à vítima e sim a todos os envolvidos; que o processo é prolongado e exige acompanhamento que inclui o controle, por período que pode chegar a anos, a Enfermagem deve “estar com” a vítima também, enquanto o processo caminhar.

Este "estar com" é um cuidado subjetivo, difícil ainda hoje de ser reconhecido como do arsenal da Enfermagem, ainda muito preso ao fazer utilitarista. O atendimento interdisciplinar, porém, pressupõe que cada área tem ações próprias e, quais são as específicas da Enfermagem, tem sido a indagação maior de muitas enfermeiras.

Apesar de já se encontrar algum conhecimento produzido, no que tange ao cuidado de Enfermagem à criança e ao adolescente vítimas de violência intrafamiliar, como os estudos de Moura (2002); Cunha (1998); Morais (1999), procurando enfocar o atendimento a essas vítimas, contudo, as ações da Enfermagem têm-se diluído no roldão das ações multiprofissionais, resultando na

hesitação, dúvida e insegurança de que a Enfermagem não tem o que fazer e, se tem, ainda não reconheceu a peculiaridade de sua atuação.

Referente à criança internada, Jungblut (1999) preocupou-se em trabalhar com a equipe de Enfermagem no sentido de sensibilizá-la para não impor a vitimização institucionalizada e, capacitando a mesma para lidar com essas crianças durante seu tratamento hospitalar. Almoarqueg; Junblut e Issi (1999), por sua vez, propõem um projeto numa unidade de internação pediátrica, também em caráter interdisciplinar, voltado para o atendimento da criança vítima de violência na família, durante a hospitalização, como compromisso para a defesa da infância.

Porém, sendo um fenômeno complexo, resoluções segmentadas podem continuar a expor a vítima a repetições dos episódios. Neste estudo, as enfermeiras relatam que gostariam muito de atender, de descobrir o que houve, de resolver a problemática da vítima, porém, não dispõem de instrumentos que as façam sentirem-se habilitadas para tal atuação. É comum ouvir-se que a enfermeira não foi preparada na escola para isso, que a literatura sobre o tema para a Enfermagem ainda é bastante rara e que, portanto, é urgente se construir tal conhecimento.

No entanto, o que existe é falta de envolvimento com a temática, modéstia em considerar que aqueles atos que algumas delas realizam têm sua importância, só se forem tomados como parte de um conjunto de medidas, visando a proteção e defesa da vítima, isto é, num atendimento interdisciplinar. Mas, isoladamente, nenhum efeito teria sobre o fenômeno, e a criança ou adolescente estaria sujeito a continuar sendo vitimizado, continuando na condição de risco.

O afã de querer saber como atuar tem levado algumas enfermeiras a quererem diagnosticar a violência intrafamiliar contra criança e adolescente, e a só denunciarem se tiverem certeza, outras a acreditarem que o envolvimento com a agilização da vinda do órgão de proteção não significa cuidado, e outras a que a abordagem da família, incluindo nela o agressor sexual, não são de sua responsabilidade.

Portanto, é mister que a Enfermagem adote a visão de cooperação, para não cair no que Azevedo e Guerra chamam de “tentação do individualismo e da onipotência” (1998, p.39), mas aprender a atuar transdisciplinarmente, onde “as várias intervenções ocorrem mediante uma coordenação dos agentes sem confusão

dos papéis” (p.55), possível através de uma cuidadosa articulação das ações de cada um dos envolvidos.

As enfermeiras precisam estar alertas, pois quando uma criança, vítima de violência intrafamiliar, é atendida por profissionais incompetentes, descompromissados ou não livres de reticências psicológicas, muitas coisas podem ocorrer, ou deixar de ocorrer. Por exemplo, pode faltar a notificação, ou pode haver demora excessiva em proteger a criança, ou esta pode irresponsavelmente permanecer junto do(a) agressor(a). Como resultante dessa atuação profissional inadequada, a criança pode ter agravados seus sofrimentos físicos e psicológicos (AZEVEDO e GUERRA 1998, p.43).

As autoras apresentam algumas diretrizes mínimas para uma intervenção profissional para com vítimas de violência intrafamiliar contra criança e adolescente. O primeiro passo seria o profissional planejar a abordagem; o segundo deve ser a identificação, que pode ser a sumária – em casos de urgências – e a aprofundada, através do diagnóstico multiprofissional. Como terceiro passo vem o atendimento, que deve envolver como parceiros: profissionais atuando em instituições judiciárias, de proteção social, de saúde (física e mental), entre outros. Esse planejamento é específico para cada caso, porém há algumas estratégias básicas que são comuns a todos. Azevedo e Guerra (1998, p.72) alertam que “Sem acompanhamento e controle o Programa de Intervenção pode vir a ser um exercício de papel e não uma verdadeira intervenção na e para a família violenta”.

Conquanto um escopo mínimo seja necessário para se cuidar dessas vítimas, é preciso lembrar das peculiaridades de cada situação. Cada intervenção também irá depender do referencial utilizado pela enfermeira, do contexto de atuação e dos parceiros com que puder contar, diante de tais situações.

Além disso, como dizem Azevedo e Guerra (1998, p.9), a enfermeira, ao “quebrar a lei do silêncio”, estará sendo uma defensora da criança e uma cuidadora amorosa, despertando esperança na vítima e apontando possibilidades para que ela possa vir a ser um adulto maduro e responsável. Um adulto que rompeu com o passado pelo caminho da resiliência, e cujo processo de ruptura só será iniciado se a enfermeira se dispuser a oferecer um cuidado comprometido e amoroso, para que a cadeia da violência intrafamiliar não seja perpetrada às futuras gerações.

2.6.3 Conseqüências da Violência Intrafamiliar Contra Crianças e