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Equipe de Saúde e a Violência Intrafamiliar Contra Crianças e

2- RE-VISITANDO A VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA

2.6 V IOLÊNCIA E S AÚDE

2.6.1 Equipe de Saúde e a Violência Intrafamiliar Contra Crianças e

Um fenômeno de multidimensionalidade, com interdependência dos níveis sociais micro e macro, requer ações de enfrentamento multiprofissional (MINAYO; SOUZA, 1999). Conquanto já existam alguns programas na área, o compromisso ainda é muito pequeno diante do vulto do fenômeno. Num passado recente, os profissionais da saúde relutavam em abraçar esta causa por acreditarem que a violência não era do raio da sua ação. Nos dias hodiernos, Minayo (2003, p.30), referindo-se à filosofia popular e à dos filósofos eruditos, salienta que os profissionais da saúde:

cada vez mais se encaminham para reconhecer o que Agudelo vem repetindo em vários de seus estudos ‘a violência representa um risco maior para a realização do processo vital humano’: ameaça a vida, altera a saúde, produz enfermidade e provoca a morte como realidade ou como possibilidade próxima.

Minayo et al. (2003, p.17) são bem enfáticos ao mostrarem o quanto a violência tem relação com a saúde, comparando o setor da saúde “a um tambor de ressonância das resultantes desse fenômeno”, e acrescentando que ele “é uma grande encruzilhada para onde convergem todas as lesões e traumas físicos, emocionais e espirituais produzidos na sociedade”.

Pesquisas mostram que inevitavelmente a(as) violência(violências) tem(têm) impacto sobre a saúde moral, mental, física e espiritual das pessoas (MINAYO et al., 2003). Daí a pertinência de nós, profissionais do setor saúde engajarmo-nos nessa luta também.

Deslandes (2002, p.163), salienta que:

os serviços básicos de saúde, e mesmo os ambulatórios podem atuar como importantes aliados na prevenção das violências domésticas contra crianças, adolescentes e mulheres, seja no pré- natal, no atendimento pediátrico e de ginecologia, seja em atividades dos agentes de saúde, nos grupos comunitários de saúde e nos programas de médicos da família.

O serviço de saúde pode ser o único lugar que uma pessoa vá pedir ajuda, portanto, ela irá esperando receber tal ajuda.

Dessa maneira, quando casos de violência contra criança e adolescente chegam aos serviços de saúde, além dos cuidados específicos desse setor, a vítima precisa de serviços do âmbito psicológico, social e jurídico. Porém, lamentavelmente, nos dias atuais, esses setores ainda encontram-se desarticulados, com capacitação dos profissionais atuantes precária ou inexistente, tornando o atendimento dessas vítimas potenciais riscos de revitimização.

A prática e pesquisas têm comprovado que a crescente conscientização, por parte da população, da ocorrência de vitimização de crianças e adolescentes dentro de seu espaço doméstico, promovida pelos órgãos de proteção, organizações não governamentais (ONGs) e mídia, aumentou o número de denúncias de casos, desvelando uma realidade que até agora se mantinha encoberta (BRASIL, 2004).

Investigações realizadas junto a emergências no Brasil têm demonstrado que o desconhecimento do fenômeno da violência familiar, em suas diferentes modalidades e focos, volta a preocupação dos profissionais apenas para os sinais e sintomas, patologias ou ferimentos. Atitudes como essas têm evitado que casos de violência sejam suspeitados, investigados, registrados, notificados e tratados adequadamente (DESLANDES, 1999); (OMS, 2002).

Entretanto, essa nova realidade tem encontrado pouco envolvimento por parte dos profissionais e, como ressalta Covey (1989, p.155), “sem envolvimento não há compromisso”. A despeito do compromisso de que todos somos investidos para com a proteção do outro, principalmente de quem está incapacitado de se defender, muitos ainda relutam aproximar-se da temática, dado o impacto psicológico que o fenômeno provoca em todas as pessoas. Sendo situações melindrosas, tanto para a vítima quanto para os profissionais, a abordagem precisa ser cuidadosa, para não causar danos maiores àquela (BRASIL, 2002b).

Considerando que o processo de atendimento só é iniciado a partir de uma denúncia formal, a criança ou adolescente que sofre violência dentro da família pode precisar trilhar muitos caminhos desconhecidos e incertos, antes do fenômeno começar a ganhar visibilidade e ser interrompido.

Rech (2005, p.19) assim retrata a trilha que a vítima muitas vezes caminha, antes de receber ajuda:

a denúncia: pode ser comparada a um mapa, cujas informações costumam se apresentar distorcidas e confusas, precisando ser traduzidas num esforço para interpretá-las. Tanto mais claras e melhor apuradas estas informações, maiores e melhores serão as possibilidades de desvelamento da violência e das práticas interventivas de proteção e defesa de crianças e adolescentes vítimas, e mais rápida será a responsabilização dos agressores.

O percorrer destes caminhos pode significar os “aspectos desastrosos” mencionados por Rech (2005), pelo tempo que pode aumentar de exposição da vítima, uma vez que só a partir da denúncia ao órgão competente para a averiguação, é que medidas para sua proteção poderão ser tomadas.

Influenciados ainda por uma cultura apoiada na idéia de que intervenção junto a famílias – vigente durante séculos – era vista como uma forma indevida de invasão de privacidade, os profissionais de hoje hesitam em ocupar seu papel de defensor e também responsável pela segurança das crianças e adolescentes. Muitos ainda desconhecem que o status de pai/chefe perdeu sua condição natural e que hoje precisa ser endossada pela adequação de seu desempenho como pai (BRASIL, 2002b).

O Laboratório de Estudos da Criança – LACRI – editou o livro de bolso Com

licença, vamos à luta, contendo alguns mandamentos para o atendimento às vítimas.

À parte seu aparente aspecto prescritivo, o mesmo consiste num fio condutor pertinente a situações de violência intrafamiliar, quer em relação ao papel do profissional, ou ao do cidadão comum. Rezam eles que o profissionalismo no atendimento a esses casos exige que os envolvidos:

1 Acreditem sempre na criança num primeiro momento e continuem a acreditar até que evidências muitos fortes o desaconselhem;

2 Tenham como compromisso fundamental proteger a criança ou adolescente-vítima e todas as demais crianças e/ou adolescentes eventualmente na família violenta;

3 Compreendam que a eficácia de sua atuação para interromper o ciclo de violência doméstica deve ter como alvo a família em sua dinâmica interna e externa;

4 Não deixem que suas próprias cognições e emoções distorçam o processo de atendimento;

5 Saibam atuar cooperativamente evitando cair nas tentações de individualismo e da onipotência (AZEVEDO e GUERRA, 1998, p.39).

O tom firme dessas diretrizes se justifica diante de uma situação de violência intrafamiliar, pois ela própria se configura num emaranhado de eventos que, aos olhos de profissionais menos atentos, poderia distanciar a possibilidade de a vítima ou a própria família receber ajuda.

A violência intrafamiliar contra criança ou adolescente é algo que pode passar invisível, silente e impune para o observador externo. Entretanto, a vítima, refém de si mesma, reluta em buscar ajuda por uma série de fatores, como um vínculo bipolar com o agressor, o qual embota sua percepção do permitido e do reprovável. A ausência de intervenção poderá levar à perpetração da violência por continuar contida num círculo de silêncio, significando muitas vezes a transmissão a outras gerações dessa forma de relacionamento entre as pessoas na família.

Sendo um fenômeno multicausal, a violência intrafamiliar contra criança e adolescente também requer um olhar filosófico, político e teórico, para sua compreensão. Mais presente no cotidiano da sociedade contemporânea, a violência exige dos profissionais de saúde habilidades em manejar tal situação, na forma de referenciais metodológicos que permitam oferecer às vítimas um cuidado que las tire do labirinto de sofrimento.

Por ser um fenômeno multifacetado, seu manejo ainda requer atuação de profissionais de diferentes setores, como o jurídico, legal, saúde, social, entre outros. A equipe constitui a união de forças para atacar o inimigo em diferentes flancos. Mas não é apenas para a vítima ou família que esse enfrentamento é difícil. O estresse vivido no cuidado de crianças e adolescentes, vítimas de violência intrafamiliar, ressalta a necessidade de especial suporte para a equipe, destacando a importância do cuidado de si que os profissionais devem ter.

Dessa maneira, o cuidado de vítimas firma-se sobre o tripé do conhecimento, atuar em equipe e coesão desta última, para não correr o risco do cuidar individual,

onipotente e solitário que, embora possa parecer virtuoso, é ineficaz e perigoso para todos os envolvidos, mas principalmente porque não resolve a situação da vítima e pode acabar, às vezes, com o fio de esperança que lhe resta.