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2. O MOVIMENTO DE MULHERES NO BRASIL E A INSTITUCIONALIZAÇÃO

2.1. A entrada em cena da mulher no espaço público brasileiro

O desenvolvimento das lutas sociais voltadas para o reconhecimento das mulheres enquanto sujeitos sociais e políticos começa a ser delineado no Brasil a partir do início do século XX. A história dos “movimentos de mulheres”, “movimentos feministas” ou “movimentos sociais com a participação de mulheres” não é contada pelos pesquisadores brasileiros a partir de uma única matriz interpretativa, mas apresenta elementos comuns na grande maioria delas. Neste sentido, a diferença existente entre os textos acadêmicos que versam sobre estes movimentos parece estar muito mais ligada à utilização de diferentes nomenclaturas para descrever um mesmo fenômeno: o desenvolvimento de grupos formados por indivíduos da sociedade civil cujas demandas estiveram vinculadas à promoção da igualdade social e política de fato entre mulheres e homens.

Foi somente a partir do que da segunda onda do feminismo no Brasil, iniciada em meados dos anos 1970 e fortalecida no decorrer dos anos 1980, que o movimento feminista brasileiro ganhou contornos mais uniformes, tendo suas demandas e estratégias de luta desenvolvidas em torno de uma unidade. Ainda assim, posteriores disputas em torno da agenda de participação política do movimento feminista no Brasil acabaram por gerar cisões, caracterizadas pelas diferentes opções de vinculação do movimento com o Estado.

Os primeiros movimentos do que seria o desenvolvimento do feminismo no Brasil puderam ser verificados a partir da luta pelo direito ao voto feminino, iniciada na década de 1910. Esta primeira etapa ocorreu pela união de mulheres que participavam de grupos operários de ideologia marxista e suas atividades estavam voltadas para trazer ao conhecimento da sociedade civil a situação degradante do tratamento dado às mulheres no ambiente fabril (Pinto, 2012).

As demandas específicas das mulheres trabalhadoras não ganharam posição central nas lutas operárias da época, já que a demanda por melhorias nas condições sociais de trabalho como um todo direcionava as estratégias do movimento operário. Este primeiro movimento, assim como ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, perdeu parte de sua forca na década de 1930, voltando a sinalizar sua existência a partir dos anos 1960, muito impulsionado pelo lançamento da obra O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir.

A maior repercussão deste movimento, que pode ser considerado uma segunda onda feminista, ocorreu nos Estados Unidos e Europa e foi marcado pelo nascimento de um debate público acerca das relações desiguais de poder nas relações entre homens e mulheres. As demandas apresentadas pelos grupos feministas da época estavam voltadas para o

reconhecimento das mulheres no mundo de trabalho, no espaço público e na educação, perseguindo, mais especificamente, “liberdade e autonomia para decidir sobre sua vida e seu corpo”(Pinto, 2012, p. 271).

No Brasil, o golpe de 1964 e a instalação de um governo militar impossibilitaram o desenvolvimento de um movimento de mulheres nos moldes verificados na América do Norte e Europa. A inexistência de um cenário propício para o desenvolvimento de movimentos libertários no país e a repressão à luta política, inviabilizaram o fortalecimento dos movimentos de esquerda no espaço público brasileiro, o que levou grande parte de seus membros à clandestinidade, ao exílio e/ou à guerrilha.

Somente a partir do processo prévio de reabertura política nacional ocorrida nos anos 1980, é que os movimentos sociais de defesa dos direitos individuais ganharam voz, momento no qual o movimento feminista também se fortaleceu no contexto brasileiro. Os diversos movimentos de mulheres que foram criados e/ou fortalecidos em todas as regiões brasileiras buscaram a união com setores comunitários para a luta por melhores condições sociais de existência.

Esses grupos se organizavam, algumas vezes, muito próximos dos movimentos populares de mulheres, que se localizavam nos bairros pobres e nas favelas, lutando por educação, saneamento básico, habitação e saúde, fortemente influenciados pelas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. Esse encontro acabou sendo muito importante para ambos os lados, já que o movimento feminista brasileiro – cujas origens residiam na classe média intelectualizada – teve uma interface com as classes populares, que provocou novas percepções, discursos e ações em ambos os movimentos. (PINTO, 2012, p. 273-274).

Os movimentos de mulheres brasileiros ressurgiram na cena pública no país nos anos 1970 e foram fortalecidos a partir da redemocratização. Possuíam como ativistas mulheres pertencentes às classes médias formadas por profissionais altamente escolarizadas, as quais, em algum momento de sua trajetória, já haviam sido expostas aos movimentos feministas internacionais. A militância pelo fim da ditadura militar contou com a participação ativa destas feministas, que estiveram unidas aos movimentos pela redemocratização política nacional e, posteriormente, vincularam-se aos grupos voltados para a reconstrução política do país.

Esta experiência histórica de participação foi responsável pelo direcionamento deste movimento para uma luta sensível às questões de desigualdades sociais, de modo diverso ao que ocorreu nos Estados Unidos e Europa. A pauta do movimento feminista brasileiro,

centrada nos problemas com maior dificuldade de enfrentamento vivenciados pelas mulheres das camadas populares e trabalhadoras (violência, saúde e trabalho) resultou na criação da agenda de reivindicações ao Estado brasileiro no período democrático (Côrrea, 2001, Moraes e Sorj, 2009, Pinto, 2014).

A criação da agenda de reivindicações do movimento feminista brasileiro não seguiu a mesma trajetória vivenciada pelos países de tradição liberal e democrática, nos quais as lutas realizadas estiveram voltadas para a conquista de direitos individuais das mulheres decidirem sobre seus corpos. O processo de fortalecimento dos direitos individuais das mulheres através da validação de seus direitos sexuais foi recebido, tanto por setores mais conservadores, ligados, em sua maioria, à Igreja Católica, como por alguns setores de esquerda e também do próprio movimento feminista, com resistências no Brasil. Neste sentido, para estes grupos, responsáveis pela reconstrução política brasileira,

(...) o reconhecimento das profundas carências que marcam as condições de vida da maioria das mulheres brasileiras pareceu mais importante do que a afirmação do livre arbítrio das mulheres sobre o seu corpo. Decorreu desta formulação um conjunto de políticas sociais que visaram, sobretudo, à garantia ao acesso a serviços públicos na área da violência e dos direitos reprodutivos, como o acompanhamento pré-natal, o acesso aos métodos anticonceptivos e à saúde integral da mulher. (MORAES, SORJ, 2009, p. 13).

A militância feminista no Brasil permaneceu unida até o início dos anos 1980, quando a luta contra a oposição política ainda configurava-se em um elemento que promovia a união da mesma para um fim comum. Com a promoção da abertura democrática, fortalecida com a formulação da Constituição Federal de 1988, verifica-se o desenvolvimento de um processo de cisão ideológica da militância em duas principais tendências, existentes desde os anos 1970, distintas pela discussão acerca das formas de articulação dos movimentos com a sociedade civil e o espaço privado. A primeira, voltada para a atuação pública das mulheres, concentrou sua organização política em questões relativas ao trabalho, direito, saúde e redistribuição do poder entre os sexos. Esta corrente, posteriormente, buscou influenciar os processos de criação de políticas públicas, através da utilização de canais institucionais criados dentro do próprio Estado. A segunda corrente proveniente da cisão centrou sua atuação em discussões sobre subjetividade, relações interpessoais, vinculadas com o espaço privado (Farah, 2004; Sarti, 2004).

A questão acerca dos conflitos violentos contra as mulheres só passou a ser discutida politicamente no Brasil a partir do início dos anos 1980. A crítica realizada pelos movimentos

feministas em relação ao descaso com que as mulheres vítimas de violência eram tratadas pelas instituições de segurança e judiciário, impulsionou o debate e pressionou o Estado para a criação de mecanismos institucionais especializados para a administração destes conflitos. As dinâmicas ocorridas a partir de então propiciaram a implementação das Delegacias Especializadas para o Atendimento de Mulheres (DEAMs) e posterior criação da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha).