• Nenhum resultado encontrado

2. O MOVIMENTO DE MULHERES NO BRASIL E A INSTITUCIONALIZAÇÃO

2.3 A Lei 9.099/95 e a criação dos Juizados Especiais Criminais (JECrims)

Os Juizados Especiais Criminais (JECrims) foram criados no Brasil a partir da entrada em vigor da Lei 9.099/95, no sentido de dar maior agilidade à administração de conflitos pelo Judiciário, de democratizar o acesso aos serviços prestados pelas instituições de justiça e de possibilitar à vítima participar mais ativamente do processo, viabilizando a realização de acordos entre ofendidos e ofensores através da mediação dos conflitos. A implantação deste mecanismo alternativo esteve inserida em uma lógica de informalização da justiça, porém, não significou a renúncia do Estado ao controle de condutas e no alargamento das margens de tolerância, mas a procura de alternativas de controle mais eficazes e menos onerosas. Com a implantação dos JECrims, a administração de conflitos marcados pela prática de delitos com pena máxima de até um ano de detenção, em que os respectivos acusados não fossem reincidentes, deixou de ser realizada pelas varas criminais comuns, as quais puderam passar a dar maior prioridade aos demais casos (Azevedo, 2001).

A partir da promulgação da Lei 9.099/95, passou a ser dispensada a elaboração de inquéritos policiais para a investigação dos tipos penais abarcados pela Lei (denominados crimes de menos potencial ofensivo). Neste processo, as delegacias de polícia passaram realizar os registros policiais acompanhados da lavratura de Termos Circunstanciados (TCs). Após esta etapa, as partes envolvidas passaram a ser imediatamente encaminhadas ao JECrim e (nos casos onde há necessidade) requeridos os exames periciais voltados para a comprovação da materialidade dos fatos12.

A administração dos conflitos motivadores dos processos encaminhados aos JECrims deveriam, de acordo com a legislação em questão, ser orientados por critérios pautados em oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, sendo, sempre que possível, buscada a reparação dos danos sofridos pelas vítimas e a aplicação de penas não privativas de liberdade13. Os JECrims passaram a possibilitar (e priorizar) a realização de acordo entre as partes e, sendo este possível, a extinção de punibilidade pelos delitos motivadores do processo. A não realização de acordo passou a dar à vítima a oportunidade de oferecer a representação14 contra o acusado e, nos casos de representação ou de processos motivados por crimes de ação penal pública incondicionada, possibilitaram ao Ministério Público a       

12 Artigo 69 da Lei 9.099/95. 13 Artigo 62 da Lei 9.099/95. 14 Artigo 75 da Lei 9.099/95.

propositura de transação penal (acompanhada de pena restritiva de direitos e/ou multa)15. Nos casos em que a transação penal não é aceita pelo acusado, a Lei prevê que o Ministério Público ofereça denúncia oral conta o mesmo, passando o processo a seguir o rito sumaríssimo previsto.

Depois de oferecida a denúncia, de acordo com a Lei 9.099/95, a promotoria pode propor a suspensão do processo por dois a quatro anos, nos casos em que o denunciado não estiver sendo processado criminalmente ou não tenha sofrido condenação pela prática de outro delito. A extinção da punibilidade do denunciado passou a ocorrer quando o prazo da suspensão do processo for expirado, havendo revogação da suspensão do processo nos casos em que o denunciado for processado pela prática de outro delito e/ou não cumprir qualquer condição imposta pra a suspensão.

      

Figura 3 – Processamento dos Conflitos Administrados pelos JECrims:

Fonte: VASCONCELLOS, Fernanda. A Lei Maria da Penha e as limitações da administração dos conflitos conjugais violentos através da utilização do Direito Penal, 2015.

Registro Policial e lavratura dos T.C.s

Acordo entre vítima e agressor

Não há acordo entre vítima e agressor

Crime de ação penal pública incondicionada

Transação Penal

Agressor não aceita as condições Extinção da

punibilidade

Agressor aceita as condições

Juizados Especiais Criminais

Ministério Público oferece denúncia contra o agressor Processo é suspenso

condicionalmente por um período de dois a quatro anos

Agressor não cumpre as condições Agressor cumpre as condições

Inicialmente, a implementação dos JECrims parecia configurar-se em uma possibilidade de democratização do atendimento judicial aos casos de violência registrados pelas DEAMs, uma vez que grande parte destes registros não ultrapassava a fase policial e ficava arquivada nas unidades. Neste sentido, a Lei 9.099/95 daria maior visibilidade à violência contra a mulher perpetrada no país, através do processamento dos casos pelo Judiciário e da impossibilidade da filtragem pela autoridade policial.

Alguns dos efeitos resultantes da aplicação da Lei 9.099/95 começaram a ser verificados por pesquisadores alguns anos depois de sua entrada em vigor. Entre os apontamentos realizados, destacam-se a) a entrada e o processamento de outros tipos de conflitos (chamados de menor potencial ofensivo) pelo sistema de justiça; b) a maior visibilização da violência contra a mulher no país; c) a maior vitimização das mulheres nos conflitos administrados pelos juizados; d) a dificuldade de mensuração financeira de grande parte dos danos sofridos pelas vítimas, paralela à banalização da violência de gênero, explicitada pelo processo de materialização da culpa possibilitadas pelo JECrims (Azevedo, 2001, 2000; Oliveira, 2006, Campos, 2002; Kant de Lima, Amorim e Burgos, 2003; Izumino, 2003).

Dentre as ideias que impulsionaram a criação dos JECrims, a possibilidade de desafogar as varas criminais através da utilização deste novo mecanismo parecia ser um efeito esperado com a entrada em vigor da Lei. Porém, ao invés de retirar do sistema formal os casos de menor potencial ofensivo16, a Lei 9.099/95 acabou por incluir estes casos no seu sistema, ainda que o tenha feito através de mecanismo informalizante.

Com o fim da obrigatoriedade de realização de inquéritos policiais para os crimes abarcados pelos JECrims, a polícia civil perdeu a prerrogativa de selecionar os casos considerados mais importantes, os quais deveriam ser encaminhados para um processamento pelo Judiciário. Logicamente, o índice de arquivamento para delitos de menor potencial ofensivo nas delegacias sofreu uma grande queda, porém, verificou-se que a estrutura do Poder Judiciário não estava adequada para o recebimento desta nova demanda, que passou a representar quase 90% do movimento processual criminal (Azevedo, 2001).

No que se refere ao público atendido pelas novas instâncias de administração de conflitos criadas, estudos realizados em diferentes estados do país apontaram, simultaneamente, que a maior parte dos acusados era do sexo masculino, assim como a       

16

As infrações de menor potencial ofensivo são aquelas consideradas pela legislação como menos graves e, a Lei 9.099/95 utiliza este conceito para dar conta de 1) contravenções penais e 2) crimes com pena máxima não superior a um ano (Grinover et al, 1997).

maioria das vítimas era do sexo feminino. Além disso, os pesquisadores verificaram a maior parte dos processos como sendo motivados por lesões corporais leves e ameaças (Kant de Lima, Amorim e Burgos, 2003; Izumino, 2003; Campos, 2002; Azevedo, 2001). De acordo com os dados levantados pelas pesquisas acadêmicas realizadas, foi possível observar um processo de publicização de muitos casos de violência doméstica contra a mulher, os quais historicamente estiveram presentes na sociedade brasileira, mas que, em um momento anterior à criação dos JECrims, eram filtrados na fase policial.

A entrada massiva deste “novos” conflitos no sistema formal também demonstrou o deslocamento da atividade de conciliação realizada anteriormente nas DEAMs (de modo informal) para os JECrims. Antes da entrada em vigor da Lei 9.099/95, as delegacias acabavam por filtrar os casos que seriam encaminhados ao Poder Judiciário, bem como aqueles que seriam arquivados e/ou mediados entre as partes envolvidas. Assim, ainda que de maneira informal, os agressores eram pressionados pelos agentes de polícia no sentido de não voltarem a praticar novas violências, sendo demonstrada a possibilidade de punição eminente e caracterizando a violência perpetrada como crime. É bem verdade que a Lei permitiu que grande parte dos conflitos transpusesse a fase policial, porém a busca por celeridade e retirada dos conflitos do rito penal acabou por gerar uma dinâmica de invisibilização da violência praticada contra as mulheres por indivíduos com os quais as mesmas tivessem relações de familiaridade ou domesticidade (Debert e Oliveira, 2007, Oliveira, 2006).

Partindo de uma percepção geral acerca dos conflitos abarcados pela Lei 9.099/95, o encontro entre as partes possibilitaria o diálogo sobre o conflito vivenciado e, como consequência, influenciaria um processo de mudança de atitudes dos sujeitos acusados de praticar agressões, uma vez que estes assumiriam a responsabilidade por seu comportamento. Além disso, a possibilidade da vítima recuperar sua capacidade de fala durante o processamento do caso, configurar-se-ia em um importante avanço trazido pela Lei. Porém, a especificidade dos conflitos domésticos violentos contra a mulher produziu um resultado bastante perverso, quando estes casos passaram a ser administrados a partir da lógica desenvolvida pelos JECrims.

A tentativa inicial de propiciar um acordo entre as partes para a reposição do dano sofrido, a qual obrigatoriamente coloca os envolvidos no conflito em igualdade de condições, mostrou-se contraditória em relação à realidade experimentada em casos de violência doméstica, onde as partes apresentam-se em disparidade. Neste sentido, é razoável dizer que as relações de poder que permeiam estes conflitos funcionam como mecanismos impeditivos às relações de igualdade, pressuposto primordial para a possibilidade de estabelecimento de

acordo previsto pela Lei 9.099/95. Além disso, a voz é dada à parte lesada somente no sentido da elaboração do acordo entre os envolvidos no conflito: não existindo acordo e sendo oferecida a transação penal, a vítima deixa de ser consultada e sua opinião sobre as condições impostas ao agressor não é solicitada. A consequência resultante desta dinâmica foi a verificação da incapacidade das condições impostas de fazerem cessar as violências sofridas pelas mulheres vítimas de conflitos domésticos violentos e, logicamente, de prevenir novos conflitos (Campos e Carvalho, 2006).

Dentre os procedimentos adotados pelos JECrims na administração dos casos de violência doméstica, a transação penal possivelmente foi o mais criticado pelo movimento feminista brasileiro. A proposta de transação penal é dada ao acusado nos casos em que não foi possível realizar a um acordo de conciliação entre as partes e que a vítima pretende realizar a representação criminal contra o agressor. O que foi verificado na experiência de atuação dos JECrims para a administração dos processos motivados por violência doméstica contra a mulher é que, grosso modo, para não ser sentenciado a uma pena, o agressor recebia como alternativa o pagamento de cestas básicas para instituições de caridade. Ao utilizar essa situação como referência, é bastante pertinente afirmar que a experiência dos perpetradores de violência doméstica nos JECrims aponte para a ideia de que não é errado bater em mulher, desde que se pague financeiramente pelo ato.