• Nenhum resultado encontrado

1.2. Modernidade Recente e Desenvolvimento do Estado Regulativo

1.2.1 O Desenvolvimento do Estado Regulativo e o Populismo Punitivo

 

A utilização de instrumentos regulativos não configura-se em uma prática nova. Na verdade, a prática foi utilizada a partir da depressão econômica ocorrida nos anos 1930, pela necessidade de regulação do sistema econômico, quando o governo norte-americano orientou- se para políticas de correção e restauração das próprias regras do mercado. Esta onda de regulação econômica configurou-se em um suporte considerado fundamental para o posterior período de prosperidade vivido pela sociedade norte-americana, o que acabou por gerar o apoio social ao intervencionismo econômico estatal naquele país. Como consequência da legitimidade social dada a este processo, ocorreu um crescimento exponencial das práticas estatais intervencionistas e, a partir da década de 1960, uma nova onda de intervenção estatal, então voltada para a regulação do bem estar físico, estético e moral dos cidadãos americanos foi iniciada.

O processo de regulação social desenvolveu-se através da atividade intervencionista estatal, direcionada para fins de proteção à saúde e à segurança; meio ambiente; proteção diante de novos riscos tecnológicos e naturais; superação das discriminações na educação, no emprego e no acesso à moradia. A regulação social por meio da intervenção estatal buscava “proteger” os cidadãos estabelecendo padrões de comportamento que se tornariam obrigatórios para todos os cidadãos, que passaram a ter suas ações, ocorridas no espaço público e privado, submetidas ao controle público permanente. A regulação social aproxima- se do fenômeno mais geral da legislação compulsória e promocional do welfare state, assim como o Direito Regulativo associa-se ao seu desenvolvimento (Calvo Garcia, 2007, p. 16-19). Ainda que o processo de regulação social pela intervenção estatal tenha gerado um alto rendimento político, o Estado passou ser obrigado a multiplicar o crescimento de sua estrutura regulativa: as demandas sociais estiveram voltadas para a que o Estado assumisse funções assistenciais de modo a garantir condições mínimas para o bem-estar social e políticas sociais gestadas direta ou indiretamente pelo Estado. Paralelamente a este processo, a estrutura jurídica também teve de ser ampliada, uma vez que o Direito passa a ser cada vez mais utilizado como instrumento para a promoção de valores e interesses sociais.

Cada vez são mais os preceitos que não apenas buscam proteger ou garantir mediante normas proibitivas as regras “espontâneas” do jogo social e, desdobrando uma lógica normativa nova, procuram fomentar, promover e assegurar certos valores e interesses sociais mediante o estabelecimento de obrigações para os poderes públicos e a legalização das relações sociais. (CALVO GARCIA, 2007, p. 8).

A utilização do Direito com fins de regulação social teve como consequência, para além da ampliação de mecanismos penais tradicionais, a crescente utilização de mecanismos de intervenção preventiva, os quais buscam atuar sobre as causas geradoras do risco social. Neste sentido, as políticas de segurança acabam por ampliar as prerrogativas do sistema de controle tradicional, o qual é desdobrado em novos instrumentos regulativos de controle, relacionados a uma dinâmica de intervenção preventiva articulada a partir de definições bastante variadas de risco.

O endurecimento ou a ampliação dos espaços de controle tradicional costuma apoiar-se em situações de alarme social – reais ou fictícios -, nos quais obtém sua fonte de legitimação. No caso espanhol, inicialmente, foi o terrorismo. Posteriormente, a droga e as políticas de imigração jogaram um papel equivalente na construção de “riscos sociais” orientados a legitimar o endurecimento das políticas de segurança e controle social que, pouco a pouco, tendem a se generalizar e a se separar das causas que justificaram seu excepcional desdobramento. (CALVO GARCIA, 2007, p. 11)

A realização de políticas de intervenção e promoção de valores e normas sociais através da utilização do Direito leva o sistema jurídico a uma abertura que possibilita a sua produção através de uma racionalidade político-burocrática, que tem como consequência primeira a inauguração de um processo de explosão legislativa. Com a ampliação de normas criadas, passa a ser necessária (segunda consequência) a ampliação significativa de mecanismos burocráticos responsáveis pela realização do Direito Regulativo. A necessidade de criação de normas que regulamentem o desenvolvimento das atividades da estrutura burocrática criada para colocar em prática o Direito Regulativo apresenta-se como o próximo estágio do processo.

Figura 1 – Estrutura de Reprodução do Direito Regulativo:

Fonte: VASCONCELLOS, Fernanda. A Lei Maria da Penha e as limitações da administração dos conflitos conjugais violentos através da utilização do Direito Penal, 2015.

A partir do processo de abertura do sistema jurídico a uma racionalidade político- burocrática, as normas proibitivas deixam de ser o único instrumento utilizado pelo sistema e surgem, concomitantemente, novas formas de controle que promovem a transformação na estrutura do Direito. Esta transformação é produzida pela descentralização dos ordenamentos atuais para o Direito Administrativo, acompanhado da substituição da dinâmica de adjudicação tradicional do sistema jurídico pela realização de políticas regulativas.

A “regulação” converte-se na expressão paradigmática desse novo Direito cuja realização efetiva exige a concorrência das vontades políticas e dos meios materiais, normativos e institucionais adequados para alcançar os fins e objetivos estabelecidos regulativamente. O Direito orientado para fins introduz no sistema jurídico a flexibilidade característica das formas modernas de organização, o qual vai supor o enfraquecimento da autoridade e a rigidez formal das normas jurídicas a favor de um importante incremento da discricionariedade e as aberturas do Direito para todo o tipo de pressões sociais e políticas e, em geral, aos critérios de oportunidade. (CALVO GARCIA, 2007, p. 21-22).

De acordo com Calvo Garcia, o Direito Regulativo converteu-se no tipo predominante nos Estados Contemporâneos, sendo influenciado por critérios de tipo material, econômico, político, técnico, etc, e isso determina o aumento da complexidade regulativa e das dinâmicas

Explosão  Legislativa 

Criação de estrutura burocrática para a realização do Direito

Regulativo

Necessidade de normas que regulamentem o desenvolvimento das

atividades da estrutura burocrática criada para colocar em prática o Direito

Regulativo Criação de novas normas

jurídicas. Essa influência implica na complexidade dos problemas regulamentados, bem como dos fins perseguidos pelo Direito Regulativo, fazendo com que seja necessária a incorporação de outros saberes técnicos ao conteúdo jurídico. A existência de conteúdos não jurídicos nos problemas regulamentados/administrados pelo Direito Regulativo, incompreensíveis ao conhecimento dos juristas, implica numa perda substancial de autonomia do campo jurídico ao mesmo tempo em que dá a ele a capacidade de “assumir a existência de espaços de “não- Direito” e dimensões informais nas dinâmicas jurídicas atuais”. (Calvo Garcia, 2007, p. 35).

O controle social na modernidade recente também passou por um processo de transformação: a complexificação da sociedade, a partir da modificação de estruturas sociais e das dinâmicas em que os laços sociais são constituídos, impôs a necessidade do desenvolvimento de novos modelos de controle social. Neste movimento, a adoção de uma postura atuarial, consequência do aumento expressivo dos riscos sociais para indivíduos e coletividades, demonstra a opção tomada pelos Estados Contemporâneos voltada para a redução dos riscos. O Atuarialismo reflete o momento em que a modernidade recente volta suas preocupações mais para a redução de danos do que para a produção da justiça (Young, 2002; Beiras e Lazo, 2005).

A tendência contemporânea de gestão dos riscos sociais através de cálculos probabilistos, ou atuariais, supõe uma mudança de paradigma que abandona o discurso correcionalista próprio do welfare state e desconsidera os modelos anteriores de controle do delito8. O paradigma atuarial abandona o projeto disciplinar da penalização, considerado incapaz de promover a prevenção da criminalidade, cuja responsabilidade deixa de ser colocada na sociedade e passa a ser individualmente atribuída. “A eliminação das causas sociais do delito restaura a responsabilidade do individuo sobre seus atos e isso produz também efeitos sobre o castigo” (Beiras e Lazo, 2005, p. 233).

O modelo atuarial de gestão de riscos também produz efeitos no sistema de justiça criminal: passa a ser dada mais atenção para elementos que determinem o pertencimento do individuo a um determinado grupo social, considerado perigoso, do que para elementos mais concretos em torno da culpabilidade individual. Assim, as penas aplicadas passam a ser acrescidas por elementos referentes à pertença a determinados grupos sociais, caracterizados como promotores de risco.

      

8 “A maioria das teorias sociológicas sobre as causas do desvio pressupunham a transformação do individuo se fossem aplicadas as modalidades de intervenção oportunas. O objetivo desta intervenção sobre o indivíduo era justamente o de corrigir, tratar e modificar o comportamento do delinquente para evitar que ele delinquisse no futuro. Era o auge das teorias de reabilitação ou de reinserção”. (Beiras e Lazo, 2005, p. 231) (tradução livre).

Assim como as demais instituições que fazem parte do sistema de controle à criminalidade, a justiça atuarial necessita da legitimidade social para a prática de suas atividades. A principal estratégia utilizada para fins de legitimação social está configurada na produção de um discurso acerca de taxas de vulnerabilidades de vitimização a partir de elementos baseados na existência de grupos perigosos, locais arriscados, etc. A esta estratégia discursiva dá-se o nome de populismo punitivo (Santos, 2006; Garland, 2005; Beiras e Lazo, 2005; Lea, 2004; Young, 2002).

A difusão das informações, possibilitada pelo desenvolvimento dos diferentes meios de comunicação e pela acessibilidade de uma parcela substancialmente maior aos mesmos, teve entre suas consequências o nascimento de uma opinião pública com medo do crime. A dinâmica de legitimação da justiça penal (baseada em critérios atuariais) ocorre a partir desta mesma opinião pública, a qual acredita ter de desempenhar ações de prevenção à criminalidade nos espaços comunitários. A comunidade passa, então, a adotar um rol de medidas de manejo do risco e este processo produz a descentralização do modelo moderno de controle do delito. Esta descentralização é consequência da distribuição das responsabilidades sociais do Estado após o desmantelamento do welfare state.

A participação comunitária ativa no movimento que acredita ser o de prevenção da criminalidade não se dá apenas através da adesão ao populismo punitivo. As atividades voltadas para o combate à criminalidade em nível comunitário também podem ser verificadas pela contratação de serviços de vigilância privada, pela utilização de mecanismos de segurança (como alarmes, grades e trancas) e através da prática de técnicas baseadas no patrulhamento comunitário.

A figura abaixo procura demonstrar, de modo resumido, o processo de desenvolvimento social contemporâneo até aqui mencionado, que tem como uma das suas características mais marcantes a adoção do populismo punitivo e utilização de uma legislação que busca regular as relações interindividuais e prevenir os riscos.

Figura 2 - Processo de Desenvolvimento da Sociedade Moderno-Recente e do Direito Regulativo :

Fonte: VASCONCELLOS, Fernanda. A Lei Maria da Penha e as limitações da administração dos conflitos conjugais violentos através da utilização do Direito Penal, 2015.

Individualização e transformação

dos laços sociais Aumento do risco social

Crescimento da demanda social por endurecimento da legislação penal e criminalização de condutas Elaboração legislativa para a

prevenção de riscos sociais

Necessidade de criação de normas que regulamentem o desenvolvimento de atividade das

estruturas burocráticas administrativa e de execução Criação de estrutura burocrática

para efetivação do Direito Regulativo

2. O Movimento de Mulheres no Brasil e a Institucionalização de