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Um galo sozinho não tece uma manhã: Ele precisará sempre de outros galos. João Cabral de Melo Neto

Debruçando-se sobre a semântica das palavras epistemologia e social, chega-se a duas acepções de cada termo. Segundo Abbagnano (2007), epistemologia significa: I) sinônimo de gnosiologia ou teoria do conhecimento e II) filosofia da ciência. As duas acepções de epistemologia estão interligadas, pois tratam do problema do conhecimento. Já a palavra social remete: I) ao que pertence à sociedade ou tem em vista a sua estrutura ou condições; II) análise ou estudo da sociedade. Assim, a síntese semântica para o entendimento desse termo composto, epistemologia social, dar-se-ia através da relação entre a teoria do conhecimento e a filosofia da ciência, interpretadas dentro de um contexto social, ou seja, pensar o conhecimento a partir da configuração social, histórica e temporal da realidade; desta maneira, pode-se dizer que a realidade é uma construção social. (BERGER; LUCKMANN, 2009)

A aplicação teórica do termo Epistemologia Social apresenta-se no bojo de dois movimentos da atividade científica: a epistemologia pós-positivista e os estudos sociais da

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ciência. O primeiro movimento se refere a uma corrente da filosofia da ciência que rompeu com os pressupostos de compreensão da ciência promovidos pelos neopositivistas e popperianos. Esta corrente filosófica foi representada de forma emblemática por Thomas Kuhn, Imre Lakatos e Paul Feyerabend. A seguir, estão listadas algumas características fundamentais para o entendimento da ciência proposta pelo pensamento pós-positivista:

a) Consciência do caráter humano e histórico-temporal da ciência;

b) Atenção aos aspectos concretos (e não somente lógico-abstratos) do saber científico;

c) A ideia segundo a qual a filosofia da ciência, sem a história da ciência, é “vazia”;

d) Tendência a enraizar as teorias nas estruturas conceituais mais amplas, que são os “paradigmas” (KUHN, 2007) ou os “programas de pesquisa” (LAKATOS, 1999);

e) Mentalidade holística e rejeição às dicotomias entre ciência e metafísica, contexto de justificação e contexto de descoberta, linguagem teórica e linguagem observacional etc.;

f) Negação de um suposto “método” (fixo) do saber e de qualquer “demarcação” (rígida) entre a ciência e as outras atividades humanas (FEYERABEND, 2007);

g) Interpretação “forte” do caráter teórico (theory ladeness) e da exclusão de uma base empírica neutra capaz de funcionar como critério de “verificabilidade” ou “falsificabilidade” das teorias;

h) Propensão a considerar as teorias não em termos de “verdade”, mas de “consenso”;

i) Rejeição à tradicional ideia de progresso científico, seja na forma positivista de acúmulo de certezas, seja na forma popperiana de aproximação gradual da verdade. (ABBAGNANO, 2007, p. 393-394)

O segundo movimento referente à Epistemologia Social são os estudos sociais da ciência, um ramo de estudo dentro da Sociologia do Conhecimento. Seus precursores foram Ludwik Fleck com a obra Gênese e desenvolvimento de um fato científico (2010), lançada em 1935, e Robert King Merton, com Sociologia: teoria e estrutura (1970), lançada em 1949. Outros autores como, por exemplo, Thomas Kuhn (2007), Michel Foucault (2009), Pierre Bourdieu (2008), David Bloor (2009) e Bruno Latour (1997) ampliaram a compreensão acerca dos estudos sociais da ciência durante as décadas de 1960 a 1980. Mencionam-se a seguir algumas concepções deste movimento:

a) A ciência é uma atividade humana como qualquer outra, sendo social e historicamente determinada;

b) A ciência, enquanto fenômeno cultural, deve ser compreendida em relação aos contextos em que ocorre;

c) O produto da ciência afeta a sociedade na mesma medida em que é por ela afetado;

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d) O que chamamos de conhecimento científico é um produto socialmente construído, negociado e aplicado;

e) As investigações sobre a ciência devem levar em conta, simultaneamente, suas formas institucionais, seus usos sociais, suas práticas e também seu conteúdo;

f) A sociologia da ciência deve ser imparcial, ou seja, deve tomar como objeto a ser explicado, tanto o que se julga ser verdadeiro, quanto o que se crê ser falso, tanto o racional quanto o irracional;

g) A sociologia da ciência deve oferecer aos fenômenos que observa explicações simétricas, ou seja, que esclareçam tanto os seus aspectos positivos quanto os negativos;

h) A sociologia da ciência deve ser reflexiva, ou seja, os padrões de explicação que ela adota para seus objetos devem, identicamente, ser aplicados a ela própria. (BARNES; BLOOR; HENRY, 1996, p. viii).

A Epistemologia Social remete às interações entre os seres humanos e seu mutante meio social, enfatizando em especial a influência dessas (inter)ações sobre a atividade intelectual e a constituição do saber. Este contato do humano com o seu meio, num sentido lato, pode ser denominado ecologia. Numa perspectiva científica, que considera a materialidade do saber e sua natureza coletiva e distribuída, uma ecologia sociotécnica.

A ideia de Epistemologia Social aflorada por Margaret Egan e Jesse Shera (1952), em sentido stricto, referia-se a uma disciplina que seria o fundamento científico da Biblioteconomia, da Bibliografia e da Comunicação. Tal concepção, que se refere à instituição de um fundamento científico para os três campos acima citados, é um problema que já habitava há muito tempo o imaginário de outros pesquisadores desses campos, como é nítido na passagem de Paul Otlet segundo Jonathan Furner (2002, p. 18): “We need a general theory of the Book and the Document”. Tal estatuto de fundamento é atribuído por Otlet à Bibliologia, mas possui raízes mais antigas, como, por exemplo, na teoria da Bibliopsychology de Nicholas Rubakin, historicamente desenvolvida entre as décadas de 1910 e 1920, como considera Simsova (1969) e reitera Furner (2002).

Segundo Shera, a Epistemologia Social é “um corpo de conhecimentos sobre o próprio conhecimento [...], sobre as forças intelectuais que modelam as estruturas e as instituições sociais.” (1972, p. 111-112) Deste modo, esta pesquisa está inserida no contexto da epistemologia social, o livro enquanto materialidade do conhecimento que diz sobre si mesmo nas teses, estando eles interrelacionados como forças intelectuais diante da instituição social da Ciência da Informação e do sistema que modela a estrutura da ciência nacional, a CAPES. Continuando, Shera pormenoriza e argumenta que “a Epistemologia Social seria uma nova disciplina cujo foco estaria na produção, fluxo, integração e consumo de todas as formas de

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pensamento comunicado por toda a estrutura social.” (SHERA, 1973, p. 89) Este navegar narrado por Shera delineia-se na pesquisa, não em todas as formas de pensamento comunicado, mas nos livros e teses, nem em toda estrutura social, mas na estrutura do campo científico da Ciência da Informação.

A Epistemologia Social busca focar o seu corpo de conhecimentos teórico- metodológicos sobre o conhecimento comunicado. Para adquirir a qualidade de conhecer é necessário comunicar-se. Desta forma, o “[...] poder de comunicar se torna não uma feliz e fortuita invenção, mas uma necessidade essencial e inevitável à sobrevivência humana.” (SHERA, 1977, p. 10) Para conhecer é preciso comunicar e para comunicar é preciso a utilização de uma linguagem, logo “[...] conhecimento e linguagem são inseparáveis, pois a linguagem é a estruturação simbólica do conhecimento em forma comunicável.20” (SHERA, 1977, p. 10) Entendendo esta relação necessária de linguagem, comunicação e conhecimento, a ciência constroi as suas tramas como um ramo do saber humano. Assim como não há conhecimento sem comunicação, também “não há ciência sem comunicação.” (TARGINO, 2000, p. 41)

O conhecimento comunicado pode ser entendido como produto intelectual que possui seus ciclos de produção, circulação e uso, entendidos como ciclo documentário. Num ambiente científico, a produção, a circulação e o uso referenciam o conhecimento científico comunicado, ou seja, aos produtos intelectuais, como exemplo, o livro. Desta forma se dá a compreensão da materialidade do saber e da sua natureza coletiva e distribuída que está representada pela intervenção do social no saber científico.

Conforme descrita por Nanci Oddone (2007, p. 112), a “Epistemologia Social transforma-se, atualiza-se, passando a constituir um corpo de conhecimentos sobre a dinâmica social da atividade intelectual dos coletivos humanos”. Esta teoria também pode ser pensada através da sua práxis. (BUDD, 2002) O termo práxis era comumente utilizado, na Grécia Antiga, para designar a ação que se realizava no âmbito das relações entre as pessoas, à ação intersubjetiva. (KONDER, 1992, p. 97) A ação intersubjetiva é essencial para a constituição dos fundamentos da Epistemologia Social e da compreensão do trabalho intelectual na comunicação científica. Como Paulo Freire (1983, p. 66) manifestou solenemente,

[...] o sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto.

20 Esta passagem de Shera assemelha-se ao que já foi dito no segundo parágrafo do tópico, Bíblion, um sinal para

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Não há um “penso”, mas um “pensamos”. É o “pensamos” que estabelece o “penso” e não o contrário.

A ciência em sua práxis epistêmica se dá em sociedade, num processo naturalmente coletivo e distribuído, pois “[...] o conhecimento partilha sua força com todos os artefatos que o materializam e que disciplinam o pensamento.” (ODDONE, 2007, p. 121)

Portanto, a caracterização da natureza do conhecimento científico depende do corpo de negociações e associações colocadas em prática pelo campo científico. Pensar a problemática da produção do conhecimento através da Epistemologia Social conduz a um entendimento cada vez mais próprio acerca do que seriam os fundamentos epistemológicos da Ciência da Informação. Quando aplicada às atividades que integram o ciclo documentário da comunicação científica e do trabalho intelectual colaborativo, a Epistemologia Social oferece um quadro conceitual consistente, que auxilia na compreensão do campo científico dos fenômenos e dos produtos documentários e/ou informacionais. Enfim, esta concepção da Epistemologia Social juntamente com o que já foi exposto, abre um espaço dialógico de conversação com a ciência documental, unindo as dimensões práticas e teóricas de ambas, em prol do fortalecimento da contemporânea Ciência da Informação.

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Os conflitos epistemológicos são sempre, inseparavelmente, conflitos políticos. Pierre Bourdieu

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