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4 ELEMENTOS DO CAMPO CIENTÍFICO

4.1 A CONCEPÇÃO DE CAMPO CIENTÍFICO

O conceito de campo científico, adotado nesta dissertação, foi concebido pelo sociológo Pierre Bourdieu. Para o pesquisador, ‘campo’ é um conceito fundamental para o entendimento das relações díspares que constituem o mundo social. Assim como outros conceitos fundamentais que habitam o discurso filosófico e social de Bourdieu (capital, habitus, poder simbólico), o campo é o tópos onde a vida acontece, em suas mais variadas formas e modos de projetar-se no mundo. Na ciência, a vida social do pesquisador projeta-se num campo científico (BOURDIEU, 2004), enquanto nas artes, a vida do agente artístico movimenta-se no campo literário (BOURDIEU, 1996), e assim essa lógica topológica do campo dissemina-se pelos diversos territórios do saber-fazer humano. Deste modo, ao propor uma filosofia da ação prática, Bourdieu afirma que o espaço estratégico onde se dispõe o real é imprescindível para perceber como as relações sociais se constituem nessa topologia de confronto entre forças, quase sempre rivais. Tal local é o campo21.

A conceituação do campo erigiu-se da observação reincidente: as posições ocupadas pelos agentes no campo modelam as formas de interação. Logo, Bourdieu aplica seu “instrumento de pensamento” para descobrir não só as propriedades específicas e singulares de cada campo, mas também “as invariantes reveladas pela comparação dos universos

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Para Giorgio Agamben (2010a), numa concepção nem tão distante, mas também não tão próxima da de Pierre Bourdieu, o campo é o “paradigma biopolítico do moderno”. Essa é uma extensão do conceito de campo em que se correlaciona com o conceito de vida política. Seria essa uma concepção a ser trabalhada em outros textos, não sendo possível nesta dissertação, devido aos propósitos estabelecidos para este texto.

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tratados como ‘casos particulares do possível’.” (BOURDIEU, 1989, p. 66) Levantada a hipótese de que “existem homologias estruturais e funcionais entre todos os campos”, isto é, propriedades comuns a todos eles, Bourdieu desvia o seu caminho das metáforas orientadas por intenções retóricas e afirma que “toda a tradição epistemológica reconhece a analogia22.” (BOURDIEU, 1989, p. 67) Portanto, o conceito de campo pode ser extrapolado aos universos particulares da atividade humana.

Nas palavras de Bourdieu o campo, é lugar de relações de força. É um espaço de concorrência “[...] no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência.” (BOURDIEU, 2004, p. 20) Os campos possuem regras e normas próprias dentro de suas particularidades. Os campos são microcosmos com uma autonomia relativa perante o macrocosmo que é o mundo social. A autonomia relativa é constituída no interior das singularidades dos campos, tendo cada campo um sistema que legitima o saber-fazer próprio do microcosmo. O sistema de regras e normas que anima os campos se constroi através das disputas pelo poder simbólico, sendo o interesse pelo sucesso o que mobiliza essa competição, quase sempre representada pelo êxito do monopólio ou pela centralização do poder em círculos circunscritos de indivíduos ou grupos. Logo, um campo é um tópos estruturado em posições, onde dominantes e dominados lutam pela manutenção ou obtenção do poder distribuído nos postos da estrutura.

É nessa arena de disputas entre forças antagônicas posicionadas em locais estratégicos, possibilitados pela organização hierárquica da estrutura, que acontece o saber-fazer da ciência. O campo científico, assim como todos os outros, caracteriza-se pelas relações de força e dominação entre os agentes que o constituem, “[...] é um campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças.” (BOURDIEU, 2004, p. 22-23) O campo científico pode ser entendido como um espaço de luta concorrencial, possuidor de “relações de força e monopólios”, “lutas e estratégias”, “interesses e lucros” (BOURDIEU, 1983, p. 122). Segundo o autor citado,

É o campo científico, enquanto lugar de luta política pela dominação científica, que designa a cada pesquisador, em função da posição que ele ocupa, seus problemas, indissociavelmente políticos e científicos, e seus métodos, estratégias científicas que, pelo fato de se definirem expressa ou objetivamente pela referência ao sistema de posições políticas e científicas constitutivas do campo científico, são ao mesmo tempo estratégias políticas. (1983, p. 126)

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Na seção que se intitula Paradeigma, será discutido o forte papel da analogia nas formações discursivas do saber epistemológico.

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Portanto, “o que é percebido como importante e interessante é o que tem chances de ser reconhecido como importante e interessante pelos outros.” (BOURDIEU, 1983, p. 125) Assim, Bourdieu explicita que o “campo científico produz e supõe uma forma específica de interesse” (1983, p. 123), onde os peritos mais hábeis em suas estratégias político- epistemológicas conseguem, diante das relações de força do campo, o poder de “produzir, impor e inculcar a representação legítima” (1983, p. 148).

No contexto desta pesquisa, a produção que chega aos registros documentais dos Cadernos de Indicadores da Ciência da Informação na CAPES, posição estratégica da estrutura social da ciência brasileira, possui um poder simbólico de impor e inculcar nos agentes uma visão da realidade legitimada pelo campo. Além disso, para intensificar esse poder de instituir o dito, outra variável entra em questão: o documento em que a produção está disposta. A ciência é uma produção cultural (BOURDIEU, 2004, p. 20) e no sistema simbólico da cultura científica o documento-livro é possuidor de um grande “capital cultural objetivado” (BOURDIEU, 2011, p. 213). Por isso, o poder de instituir o dito através da capitalização da imagem do livro se expande e se alastra, tornando-se o poder de “inculcar a representação legítima”, confirmando o que pensam Bourdieu e Roger Chartier (2001, p. 113), quando este último diz que o livro é um artefato que detém poder23.

Segundo Bourdieu (2011, p. 165) “a sistematicidade [do campo] está no opus operatum [...]”; ou seja, o campo científico, enquanto estrutura estruturante (modus operandi), possui em seus produtos estruturados (opus operatum) aquilo que sistematiza as suas práticas. A dialética encontra-se no conjunto dos produtos que rodeiam os grupos e na manifestação das práticas pelos agentes. Por exemplo, as teses e as práticas simbólicas que envolvem o significado e o saber-fazer deste opus operatum, sistematizado no corpo do campo, ou ainda, os artigos científicos e as práticas de reputação que envolve essas publicações no sistema de organização do campo, assim como, os livros e o valor simbólico acumulado que este possui na sistematicidade das práticas, em especial, das ciências sociais e humanas, são produtos estruturados que giram e fazem girar o envolto da estrutura estruturante do campo científico.

O livro, como produto estruturado que rodeia o campo científico, garante a sua sistematicidade e se manifesta nas práticas dos pesquisadores (agentes), a exemplo do exercício mimético da citação desses artefatos em outros produtos produzidos pelo campo, como as teses.

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O livro é um objeto poderoso, mas não em si mesmo, em seu valor de uso. O poder que detém o livro é concedido pelo modus operandi, não pelo opus operatum. Num processo dialético, são indistintos, mas o poder está na disposição da estrutura, no seu espaço de relações, não especificamente em seus produtos, ainda que sejam estes produtos, como o livro, transformadores da estrutura. Por isso a relação é dialética.

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Portanto, o livro consiste num produto cultural de forte imposição simbólica, pois é para a cultura ocidental um artefato de “gosto constituído” (BOURDIEU, 2011, p. 213), que está no habitus dos círculos acadêmicos24 desde a sua idade mais tenra (FEBVRE; MARTIN, 1992), especialmente nos campos científicos que estudam o homem em seu mundo social; no campo científico, ele auxilia e fortalece, com suas propriedades, os agentes em suas lutas pelo objetivo primaz, o monopólio da autoridade científica, diretamente ligada à acumulação daquilo que Pierre Bourdieu chama de capital científico.