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2 CENÁRIOS DISCURSIVOS DA PESQUISA

2.1 A escola e a modernidade líquida

Estabelecer um panorama teórico-conceitual que articule o uso da tecnologia na Educação requer um diálogo amplo. São muitas facetas que envolvem tais pontos. Por isso, a discussão aqui efetuada se faz em articulação com a abordagem multirreferencial, muito cara à Educação. Jacques Ardoino (1995), principal referência desse campo, aponta a multirreferencialidade como um assunto de pesquisadores e de práticos também. Considerando que a leitura que tencionamos com esta pesquisa se insere no que Ardoino (1995) defende como uma necessidade de compreensão plural da realidade, é que tomamos como mediação a abordagem multirreferencial em articulação com a perspectiva etnográfica.

Multirreferencialidade é uma resposta à constatação da complexidade das práticas sociais e, num segundo tempo, o esforço para dar conta, de um modo um pouco mais rigoroso, desta mesma complexidade, diversidade e pluralidade. Multirreferencialidade é uma pluralidade de olhares dirigidos a uma realidade e, em segundo lugar, uma pluralidade de linguagens para traduzir esta mesma realidade e os olhares dirigidos a ela. O que sublinha a necessidade da linguagem correspondente para dar conta das especificidades desses olhares. (ARDOINO, 1995, p. 205).

Tomar como referência a abordagem multirreferencial nesta pesquisa implica compreender que a complexidade dos fenômenos sociais processada na escola carece de uma visada contextual, que reconhece o fato de a instituição escolar estar ancorada em um sistema maior, em que vigem as secretarias de Educação e de suas estratégias de ensino, e por sua vez, as políticas públicas organizadas em âmbito nacional, desde o Ministério da Educação, mas, ao mesmo tempo, as ações engendradas no cotidiano escolar, no nível do microcosmo educacional, constituídas pelas práticas pedagógicas e culturais dos docentes, da gestão, dos estudantes e suas famílias.

A compreensão desse movimento de “dentro” (junto ao microcotidiano escolar) e de “fora” (no contexto em que a escola está inserida) se faz necessário. Não se trata de uma perspectiva meramente instrumental de análise do uso do laptop educacional nas práticas escolares e das experiências de multiletramentos, porém, mais do que isso, de entender o

contexto social e cultural como um todo, onde essas experiências mediadas pela tecnologia

se constituem, uma vez que “não se pode entender as partes sem conhecer o todo” (ARDOINO, 1995, p. 26) e, ainda, porque “a compreensão do seu funcionamento se enriquecerá incontestavelmente se for efetivamente levado em consideração a partir de diversas óticas”. (ARDOINO, 1995, p. 33). “A abordagem multirreferencial vai, portanto, se

preocupar em tornar mais legíveis, com esteio em certa qualidade de leituras (plurais), tais fenômenos complexos (processos, situações, práticas sociais etc)”. (ARDOINO, 1998, p. 37).

A abordagem multirreferencial alinha-se à perspectiva etnográfica no sentido de fazer emergir questões subjetivas e seus significados, “documentando o não-documentado” (ANDRÉ, 1995, p. 41) dos fenômenos que necessitam ser observados em “pleno funcionamento”. (MALINOWSKI, 1976, p. 31).

A visada, para perscrutar a realidade da escola, foi ampla e plural. O diálogo compõe-se de contribuições do campo da Sociologia, com Bauman (2001, 2002, 2004) e Maffesoli (2003); da Sociologia da Educação, com Veiga Neto (2002), Penin (1994), Paro (2011), da seara das subjetividades e tecnologias com Santaella (1996, 2007, 2010), Sibilia (2012) e Lemos (2002); do terreno da Pedagogia dos Multiletramentos com Rojo (2012, 2013), Cope e Kalantzis (1996, 2009) e Lemke (2010); e no plano da Sociologia da Infância, com Sarmento (2009), Corea (2013), Kramer (2009), Sampaio (2012).

Bauman (2004) considera que vivemos em uma era da provisoriedade “que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições”. (P. 322).

A oposição entre solidez e liquidez configura a diferença entre o que caracterizou a Modernidade nas primeiras décadas do século XX, marcada pela necessidade de destruir a tradição para situar outra no lugar, ainda mais sólida, e a liquidez, como nova marca da condição de ser moderno, daí a expressão “modernidade líquida” para se referir ao modo de vida contemporâneo.

A vida líquida, diz Bauman (2007, p. 8), é uma “vida precária, vivida em condições de incerteza constante”.

A vida líquida é uma vida de consumo. Projeta o mundo e todos os seus fragmentos animados e inanimados como objetos de consumo, ou seja, objetos que perdem a utilidade (e, portanto o viço, a atração, o poder de sedução e o valor) enquanto são usados. (BAUMAN, 2007, p. 17).

Em síntese, defende Bauman (2002), saímos de uma era de sujeitos produtores para sujeitos consumidores, no que concerne à sustentação ética e estética da lógica do capital.

Em contraposição aos “sujeitos consumidores” de Bauman, Canclini (2008, p. 14) propõe a reconceitualização do consumo, “não como simples cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas como espaço que serve para pensar, e no qual se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades”.

Nas reflexões que faz sobre o contexto da modernidade sólida, Bauman cita a escola como espaço do império da ordem, “lugar de formação de sujeitos (racionais, centrados, uniformes) afinados ao projeto da ordem moderna”. (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p. 48).

[...] É ensinar a obedecer [...] A condição que mais importava não era o conhecimento transmitido aos alunos, mas a atmosfera de adestramento, rotina e previsibilidade em que se realizaria a transmissão desse conhecimento. (BAUMAN, 1997, p. 108).

E como se caracteriza a escola da modernidade líquida? Sem a presença do Estado ordenador, característica da modernidade sólida, Almeida, Gomes e Bracht (2009, p. 56) defendem a posição segundo a qual a escola deveria ser um lugar aberto às diversidades.

[...] É a comunicação entre as diferentes tradições que se converteria na grande aposta da pluralidade nos processos educativos de nossa época. [...] Dialogar com as distintas tradições que chegam até ela, sem combatê-las; procurar entendê-las, sem aniquilá-las ou descartá-las como mutantes; fortalecer sua própria perspectiva (a do professor, por exemplo) com o livre recurso à experiências alheias (a dos alunos e suas culturas, por que não?).

Veiga Neto (2008), por sua vez, exprime a ideia de que, enquanto a escola da modernidade sólida estava ancorada no princípio da disciplina, o que identifica a escola da modernidade líquida é o controle. Na concepção de Veiga Neto (2008, p. 146), o termo “controle” se associa “a uma ação continuada, infinita, de registros e armazenamento”.

[...] enquanto que o disciplinamento leva a estados de docilidade duradoura, o controle parece estimular a flexibilidade, pois provoca, naqueles sobre o qual atuam, artimanhas e artifícios de escape [...] Um sujeito flexível é diferente: ele é permanentemente tático. Por isso, na busca de maior eficácia para atingir seus objetivos, o sujeito flexível apresenta comportamentos adaptativos. (VEIGA NETO, 2008, p. 147)

Paula Sibília (2012) considera que a escola no contexto da modernidade líquida vivencia uma crise. Com suporte em um estudo historiográfico, cujo foco está na relação da escola com as mídias, argumenta que a escola como uma tecnologia educacional está obsoleta e, portanto, incompatível em relação aos corpos e subjetividades das crianças contemporâneas.

O ponto de partida da pesquisadora para identificar a crise institucional é o descompasso da escola em relação às mídias, considerando que a cultura audiovisual dos estudantes engendrada pela relação com a TV primeiramente, e, mais recentemente, alargada pelo contato com os dispositivos móveis e os computadores, não encontra correspondência com as práticas escolares.

Sibília (2012, p. 19) argumenta que o estatuto normalizador da escola em seus primórdios ainda prevalece, “ensinava-se a pensar e a agir do modo considerado correto para os parâmetros da época”, ainda que com alguns ajustamentos.

A perda de eficácia no funcionamento bem azeitado das engrenagens disciplinares é, justamente, um dos indícios da crise atual. [...] Assim, a incompatibilidade aqui sugerida – entre a escola como tecnologia de (outra) época e a garotada de hoje – seria um sintoma sumamente eloquente desse desajuste histórico que hoje vivemos. (SIBÍLIA, 2012, p. 25).

Para a professora Marisa Vorraber Costa (2007, p. 113), a escola e os estudantes estão situados em tempos diferenciados:

A escola não entende esse fenômeno da proeminência das tecnologias como objeto de aprendizagens importantes para as crianças e jovens de hoje. A visão predominante que se tem é de que essas são as “coisas” do contemporâneo que atrapalham a educação. E isso não é incorporado por não ser reconhecido como saber válido. Por sua vez, as crianças e jovens vivem e experimentam intensamente esse cotidiano contemporâneo inundado pelas tecnologias.

A instituição escola, nestas perspectivas, embora revele ter dificuldades de estabelecer diálogo com as outras aprendizagens que acontecem fora do seu ambiente se mostra aberta para outros projetos narrativos, em que ações cotidianas como ler e escrever se ampliam pelo contato cada vez mais intenso com outros suportes que não mais somente os livros impressos. E reconhece, como legítimas, outras estratégias de leitura e escrita solicitadas quando em contato com as tecnologias digitais, seja nas ações de pesquisa de conteúdos, seja nas conversas promovidas através das redes sociais, por exemplo.

Essas mudanças operadas processualmente reconhecem a noção de gênero textual como fenômeno social e histórico, daí por que o estudo de Marcuschi (2009) sobre os gêneros textuais emergentes no contexto da web aponta a existência de 12 gêneros, tais como o e-mail, o chat em aberto, chat reservado, chat agendado, chat privado, entrevista com convidado, e-

mail educacional, aula-chat, videoconferência interativa, lista de discussão, endereço

eletrônico e blogs.

O autor realiza uma mostra, que não se propõe conclusiva, em que aponta como uma característica comum dessa diversidade de gêneros, no contexto da web, o fato de que a escrita está cada vez mais solicitada, reforçando a noção de que a relação entre leitura e escrita é condição para atuar no campo das comunicações digitais.

Esses novos modos de ser das gerações, cada vez mais conectadas, seja em contato com os jogos eletrônicos, com as séries ou as redes sociais, precisam ser incorporadas nas estratégias de ensino e aprendizagem.

Por isso os usuários desses meios encarnam uma subjetividade que não se constitui lendo, como costumava acontecer com as crianças-alunos de algumas décadas atrás, mas se gera na interface desses diferentes suportes. Esse novo tipo de leitura

transmídia exige que o indivíduo elabore estratégias para habitar o fluxo de

informações, entre as quais se inclui a tentativa de se vincular aos outros para dar coesão à experiência. (SIBÍLIA, 2012, p. 76).

Entendemos transmídia como a disponibilidade de um conteúdo em múltiplas plataformas de mídia de forma autônoma. Assim, cabe ao usuário fazer a articulação entre tais plataformas, dando-lhes sentido, “com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo” (JENKINS, 2009, p. 138). “Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos” (JENKINS, 2009, p. 138). Gosciola (2011, p. 3) considera que “mais que um conceito, [narrativa transmídia] é um processo verificado em algumas áreas da comunicação, seja no entretenimento, no jornalismo, no meio corporativo e até mesmo na área da educação”.

A experiência de acesso a conteúdos em múltiplas plataformas configura a concepção de um novo tipo de leitor. Assim, essas novas subjetividades juvenis engendradas pelo contato intensivo com as mídias requerem práticas docentes que levem em conta essas outras aprendizagens e as novas habilidades proporcionadas pelo convívio intenso com as tecnologias de informação e comunicação, como defendem Cope e Kalantzis (1996, 2009), dois autores de referência da Pedagogia dos Multiletramentos.

E o que dizer dessas crianças e jovens contemporâneos quando estão na escola? A infância contemporânea é estudada amplamente por diversas áreas do conhecimento, ora buscando entendê-la, ora tentando enquadrá-la como exclusiva de determinado campo científico. Esta pesquisa assume a necessidade de um diálogo interdisciplinar com a Sociologia, a Psicologia, a História, a Educação e a Comunicação, como enseja a multirreferencialidade, para dizer o que é ser criança na segunda metade do século XXI.