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CAPÍTULO III. A TRAJETÓRIA DAS FAMÍLIAS

7. A escola no Assentamento

Dentre as principais preocupações das famílias assentadas está a continuidade da escolarização dos filhos. No levantamento de dados junto ao INCRA-AM, este fator foi apontado como um dos principais responsáveis pela desistência das famílias em permanecer

nos lotes, seguido pela falta de incentivos e acompanhamento técnico para a produção e o precário atendimento à saúde na área.

A primeira escola municipal criada no ramal principal do Assentamento atendia inicialmente as séries iniciais. Posteriormente, por solicitação das famílias, através das diversas associações de moradores, houve a implantação de demais séries do ensino fundamental e até o encerramento da pesquisa aguardava-se a implantação do ensino médio em regime modular, com professores de Manaus.

Cabe ressaltar que não constituiu objetivo dessa pesquisa adentrar ao cotidiano de funcionamento da escola, mas investigar junto às famílias assentadas quais são suas representações sobre a escola, a relação que estabelecem com a mesma no que concerne ao acompanhamento da vida escolar dos filhos, bem como apresentar o modo como estes avaliam o ensino.

Nas narrativas, percebe-se a existência de controvérsias quanto à relação estabelecida entre família e escola no que diz respeito às informações prestadas quanto às reuniões de pais e mestres, aos eventos realizados e às comunicações sobre o aproveitamento dos alunos.

“Nunca mais eu fui ao colégio e eles não dizem quase nada. Porque, assim, sempre que tem reunião a diretora diz que sempre tá bom, tá bom...” (Filha/

Família Laranja)

“Eles até que chamam mesmo. Muitos não vão porque às vezes não conseguem. Porque às vezes tem dificuldade, mas eles chamam para reunião, para qualquer evento que tem lá no colégio. Agora parece que já começou..”. (Filha/ Família Farinha)

“Não chamam para outra coisa! Só para reunião com os pais. A diretora manda o aviso e a gente vai.” (Esposa/ Família Açaí)

“O que eu acho lá na escola, como eu te falei... Tá muito devagar quase parando mesmo. Em vez de ele evoluir, é o contrário... Tá é regredindo... Não tá produzindo nada... E outra coisa: nunca comunicam a gente em nada. A coisa rara mesmo é mandarem... Disseram que tudo que acontecesse na escola a gente receberia aviso... Mas é raro... Outra coisa, só convida mesmo para reunião... Às vezes eu chego lá não encontro a Diretora... Nunca vejo. Ela nunca vem para a escola...” (Esposa/ Família

Pé-de-Moleque).

“Elas convidam toda a comunidade para participar... Sempre que tem evento, comemoração, feriado das crianças, pais, mães, tudo isso eles chamam a comunidade e os pais para participarem. Reuniões também eles sempre comunicam as pessoa todinhas e, como eu trabalho lá perto, de vez em quando eu to indo lá, perguntando como é que tão acontecendo as coisas.” (Filha/ Família Hortaliça)

“Eu vou pra reunião dos meninos. Eu não falto reunião... A diretora, ela é ótima. A diretora daí é excelente. A primeira que tinha não era muito legal, mas essa que entrou agora, eu acho ela excelente diretora. Quando é dia das mães ela tem programação... Ela arruma assim, coisa [brindes] que é do dia das mães, quando é natal é uma coisa, dia dos pais... Tudo... Ela é excelente. Para mim ela é dez mesmo!” (Companheira/ Família Banana).

As narrativas apontam para uma relação que ora se estabelece apenas através das reuniões de pais e mestres, dinâmica similar às escolas municipais da sede do município, ora incluem referências à participação dos pais em datas comemorativas, para além das reuniões, o que revela que a escola, apesar de estar localizada dentro da área do Assentamento, não apresenta características próprias à Educação do Campo.

Em âmbito nacional, a Educação do Campo segundo Caldart (2008, p.71)

Nasceu como mobilização/pressão de movimentos sociais por uma política educacional para comunidades camponesas: nasceu da combinação das lutas dos sem-terra pela implantação de escolas públicas na área de reforma agrária com as lutas de resistência de inúmeras organizações e comunidades camponesas para não perderem suas escolas, suas experiências de educação, suas comunidades, seu território, sua identidade. A Educação do Campo nasceu tomando/precisando tomar posição no confronto de projetos de campo: contra a lógica do campo como lugar de negócio, que expulsa as famílias, que não precisa de educação nem de escolas, porque precisa cada vez menos de gente, a firmação da lógica da produção para a sustentação da vida em suas diferentes dimensões, necessidades, formas.

Considerando a proximidade do Assentamento em relação à capital, percebe-se que a preocupação dos pais refere-se especificamente à garantia da escola para os filhos. A realidade dos assentamentos em âmbito nacional exige uma escola que contemple o perfil da população do campo valorizando seu meio de vida e seus valores. Em seus estudos Caldart (2008, p. 74) destaca que

Os sujeitos que trabalham e vivem do campo e seus processos de formação pelo trabalho, pela produção de cultura, pelas lutas sociais, não têm entrado como parâmetros na construção da teoria pedagógica e muitas vezes são tratados de modo preconceituoso, discriminatório. A realidade desses sujeitos não costuma ser considerada quando se projeta um desenho de escola. [...] E há um detalhe muito importante no entendimento da Educação do Campo: o campo não é qualquer particularidade, nem uma particularidade menor. Ela diz respeito a uma boa parte da população do país. Não é possível pensar um projeto de país, de nação, sem pensar um projeto de campo, um lugar social para seus sujeitos concretos, para seus projetos produtivos, de trabalho, de cultura, de educação.

O interesse das famílias pelo que acontece na rotina escolar dos filhos é grande, como se nota nas falas abaixo:

“Essa menina daqui [neta] até que cuida de ir atrás... Sempre tá atrás de trabalho para fazer. Aí a professora passa o que é para ela fazer... Quando ela chega, ela faz. Eu acho que tá sendo bom porque tem professor que não passa nada para o aluno. Eu sempre pergunto para ela: - E lá como é que tá? Ela responde: - Tá bom...” (Esposa/ Família Farinha)

“Eu acho que teria que melhorar a escola também por causa de professores, porque é difícil encontrar professor que queira vir dar aula na zona rural, não é? Então acho que teria que melhorar com professores mais qualificados.” (Filha/ Família Açaí)

“Um dos meus netos tem essa sede de querer aprender e eu acho muito lento mesmo. Mesmo que tenha o método eu acho muito lento. A gente conhece pelo meu outro neto que tá muito atrasado...” (Esposa/ Pé-de-Moleque) “Eles tão tendo estudo. Não aquele estudo assim que a gente acha que é mesmo... Porque geralmente, esse ano pelo menos o que eu observei nas poucas vezes que eu fui à escola, que não tava tendo tanta aula como era para ter... Estavam tendo mais brincadeira, diversão, do que aquela aula mesmo que era para ter. Mas se eles acham que é uma maneira também das crianças participarem das atividades. Se não tiver paciência para ensinar, então tá difícil... Eu dou assim muito valor à educação e ao ensinamento porque é uma coisa que eu acho que a gente tem que dar muito valor mesmo. Porque é uma coisa que a gente leva para a vida inteira da gente. E é a única coisa que a gente pode deixar para os filhos...” (Filha/ Família

Hortaliça)

“Os professores vêm de Manaus. Às vezes não vem... Era para ter outro professor... Deviam avisar quando o professor faltasse para gente ficar mais tempo com as nossas crianças...” (Marido/ Família Banana)

Na percepção dos pais a direção escolar deveria propor atividades complementares ao ensino ministrado, realizar atividades conjuntas com a comunidade extraescolar, bem como zelar pelo patrimônio da escola.

“Eu acho que deveria ser uma escola aberta, tanto para os alunos, quanto para a comunidade. Por exemplo: Tem um bom laboratório de computadores e esses computadores tão lá, mofando... Não são usados... Foi montado e era para funcionar desde o ano passado... Os alunos não usam, nem a comunidade usa... Tá lá trancada, só mofando.” (Filha/ Família

Laranja)

“Tá um pouco atrasado A gente só estuda na sala e não faz curso de nada... Então quando terminar os estudos não tem experiência de nada...” (Filha/

Família Açaí)

“Eu acho que para essas crianças, deveria ter mais uma dedicação dos professores que tem que saber o ensinar, porque tem uns professores que

vieram de Manaus que estão se dedicando mais às crianças.” (Esposa/

Família Hortaliça).

“O ensino médio ia começar em março. Quando foi, acho que foi em março que a gente foi fazer a inscrição para cá, o professor falou comigo que o Eduardo Braga [governador] tava querendo abranger todos os municípios e, dentro desses municípios iria chegar ao Assentamento. Aí tava tudo certo para começar em maio. Quando chegou maio, já passou para junho. Aí de junho passou para julho e depois para agosto. Quando ía começar, disseram que roubaram todo o equipamento. Aí ficou aquele corre-corre para cá e para lá e a gente tá esperando até agora.” (Filha/ Família Hortaliça)

Quanto à merenda escolar, as famílias e principalmente os filhos demonstram insatisfação quanto a variedade e a sua qualidade. Os pais acreditam que esse atendimento deve melhorar, considerando o tempo de permanência dos filhos na escola e no transporte até chegarem em casa.

“Pelo que eles falam se alimentam apenas de sopa... Eu acho que não tá bom.” (Filha/ Família Laranja)

“Um dia é sopa. Foi anteontem, eu perguntei [para a sobrinha]: - O quê que tu comeste hoje? Às vezes é mingau, às vezes é arroz com ovo, às vezes é frango... É variado... Não é só uma coisa não.” (Filha/ Família Farinha) “Eu acho que deveria ter mais fruta, não só mingau como tem... Fazer uma vez ou outra salada. Tem dia que a merenda é muito doce, tem dia que não tem açúcar...” (Filha/ Família Açaí)

“Eles vivem reclamando que a merenda não é suficiente para eles...”

(Marido/ Família Açaí)

“Meu neto levava merenda todo dia para a escola porque ele não come as coisas de lá. Sempre que eu vou lá é mingau mesmo, ou então é o nescau, super gelado,chega é sem gosto... E aquela bolachinha dura mana... A minha filha disse então: - Mamãe vou mandar refrigerante e bolachinha. Meu neto dizia : Vovó me roubaram... Não comi... Ano passado eu fui, levei uma garrafinha de água porque não sei se já ajeitaram aquele poço de lá. Eu mesma fui beber água lá era pura ferrugem... Imunda mesmo...”

(Esposa/ Família Pé-de-Moleque)

“A única reclamação que eu tenho é a merenda. Misericórdia... Mingau, bolacha...” (Filha/ Família Hortaliça).

“Eu acho que para melhorar para essas crianças, que eu não sei se é o prefeito que não manda mesmo ou se é a merendeira que não tá fazendo direito, porque eu não tenho acesso a eles lá.” (Esposa/ Família Hortaliça) “Às vezes eu merendo mingau de bolinha [sagu]... Aí às vezes a gente merenda suco com pão. O suco que servem é de goiaba, cupuaçu, manga. São esses três... Aí hoje foi um peixe desfiado com arroz e uma banana. A bolacha édura. Gostaria que tivesse sopa com carne dentro, com verdura...

Deveria ter mais suco de fruta e fruta tipo maçã, mamão, banana...” (Filho

mais novo/ Família Banana)

O perfil da organização pedagógica da escola municipal localizada no ramal de acesso ao Projeto de Assentamento, onde estudam as crianças e adolescentes das famílias, constitui uma realidade diferente em relação às de outros assentamentos do país. Essa diferença se estabelece à medida em que há ausência de representação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no estado do Amazonas, cuja mobilização, organização e articulação política em outros estados do país, exigem do Estado uma Educação do Campo que propicie superação rumo a um projeto que engendre outra concepção de campo, de sociedade, de relação campo/cidade, de educação de escola, ou seja, uma perspectiva de transformação social e emancipação humana.

A relação das famílias com a escola não se constitui em uma relação orgânica, participativa. Nesse contexto, o Projeto de Assentamento tem uma escola, enquanto espaço de aprendizagem, mas que em nada se diferencia das demais escolas denominadas tradicionalmente como “rurais” na esfera de Manaus, que afirmam desenvolver a concepção de Educação no Campo no texto da legislação em vigor, mas no cotidiano escolar não praticam tal proposta.