• Nenhum resultado encontrado

A escolarização e sua missão civilizadora: processos de diferenciação e

CAPÍTULO 2 INFÂNCIA, DIFERENÇA E EDUCAÇÃO: INTERSECÇÕES

2.1 A escolarização e sua missão civilizadora: processos de diferenciação e

Como discutimos no primeiro capítulo, o processo civilizador foi decisivo nos processos de constituição dos Estados-nação, e também deu sustentação ao discurso colonial, justificando a colonização, exploração e “missão civilizadora” junto aos povos não europeus. Neste subtópico, veremos como a escolarização foi utilizada como uma das principais estratégias e práticas na busca pela civilização tanto na Europa como nas colônias.

Para a sociedade europeia ocidental, o início da modernidade foi um momento de contato com a alteridade. Houve a descoberta externa de um novo mundo e a descoberta interna das crianças. O processo das navegações apontou para a descoberta do diferente e, juntamente com ele, constituiu-se a crença acelerada da superioridade dos iguais. Nesse processo de afirmação de sua identidade, os europeus investiram em desqualificar os diferentes. Toda construção do outro é feita comparando os demais com o padrão europeu, tido como o normal, o certo. Pretendia-se transformar todos os seres humanos em clones dos europeus, assim como transformar as paisagens americanas em lugares parecidos com a Europa [...]. Já o processo de construção da infância fez o caminho inverso, pois tentou transformar iguais em diferentes, isto é, passar da ideia das crianças como miniatura dos adultos para a construção de um outro diferente do adulto. Em ambos os processos, está presente o debate entre o eu e o outro, a alteridade (BARBOSA, 2006, p. 51, grifos no original).

A autora aponta a construção da ideia moderna da infância e a expansão do processo colonial como processos simultâneos. Quando se remete a infância ser construída como o outro da fase adulta, há uma relação com o fato de que antes disso não havia distinção entre o mundo adulto e o mundo infantil. Através das colocações de Barbosa, também podemos perceber como o processo civilizador teve como principal alvo – após a classe burguesa ter concluído tal processo – o Outro da Europa, os povos colonizados, e o Outro do mundo adulto: a infância. A autora ressalta o termo muito utilizado para designar essas duas categorias:

Os outros recém-descobertos foram denominados bárbaros. Essa palavra provém da Antiguidade Clássica, uma vez que os gregos denominavam barbarói os balbuciantes ou todos aqueles que não sabiam falar a sua língua. E como os que balbuciam são os que não têm fala (infans), barbarói é uma palavra que serve para denominar tanto os estrangeiros como as crianças. (BARBOSA, 2006, p. 51).

Então, após a consolidação do modelo de civilização europeu entre seus adultos, era hora de expandir o processo para os bárbaros, que nesse caso, eram tanto os povos do “Novo Mundo”, quanto as crianças. Barbosa salienta essa missão civilizadora, apontando a

importância da cristandade na sua disseminação. No caso do Brasil, os primeiros educadores foram os jesuítas. Nesse contexto:

As semelhanças entre os nativos e as crianças estavam calcadas nas mesmas ambiguidades, pois tanto uns quanto outros eram vistos como o bem e o mal, o inocente e o pecador, e deveriam ficar sob a tutela de professores naturais (adultos, masculinos e brancos) até estarem educados e chegarem à idade da razão. Disciplinar a parte instintiva, emocional, corporal que regia os nativos do Novo Mundo e as crianças tornou-se uma obrigação cristã (BARBOSA, 2006, grifos no original).

Diante do exposto, é possível compreender como as instituições escolares tiveram um lugar central no processo civilizatório empreendido pelos povos europeus na busca pela universalização da sua cultura e forma de ordenar o mundo.

Em seus primórdios, o atendimento escolar se dá de forma indiferenciada entre crianças e adultos na Idade Média, isso ocorre porque a própria ideia de infância ainda estava por se desenvolver. Dessa forma, de início o atendimento se dava no sentido de instrução religiosa e posteriormente leiga, a meninos e homens entre seis e vinte anos, sem distinção de idade na organização da escola (ARIÈS, 2011). Nesse primeiro momento, a escolarização como dispositivo (VEIGA, 2002) terá na escola um elemento diferenciador que excluiu as crianças menores, as crianças pobres e as meninas.

A partir do século XVI, a escola passa a dividir estudantes em classes, inicialmente diferenciados por graus de desenvolvimento cognitivo, não importando a sua idade, e posteriormente a divisão se dá através da idade, assim, “Essa distinção das classes indicava portanto uma conscientização da particularidade da infância ou da juventude, e do sentimento de que no interior dessa infância ou dessa juventude existiam várias categorias” (ARIÈS, 2011, p. 112).

Os dados apontados por Ariès acerca da constituição histórica da escola moderna corroboram com a afirmação de Louro (2003) de que a escola não apenas entende de diferenças, mas que ela produz diferenças. Tendo em vista que inicialmente a escola já se configura num espaço que diferencia os sujeitos que a ela tiveram acesso (pelo sexo, idade, classe social) dos que dela foram excluídos – crianças pobres, crianças menores, meninas, determinados grupos étnicos, etc..

Veiga, partindo das contribuições de Foucault e Elias, discute que a escolarização como dispositivo implica processos de visibilidade e ocultamento através de uma rede heterogênea de elementos, rede esta que envolve os discursos, as ideias, o currículo, o espaço escolar, materiais pedagógicos, procedimentos administrativos etc.. Ou seja, elementos em

suas formas discursivas e não-discursivas, fizeram da escola um espaço essencial para a consolidação do projeto civilizador iniciado com a constituição do Estado moderno na Europa (VEIGA, 2002).

Como vimos, na sua constituição inicial a escola excluiu as diferenças, onde as crianças do sexo feminino, menores de seis anos, pobres e as pertencentes a determinados grupos étnico-raciais ficaram de fora; nesse processo ela produziu uma segunda diferenciação para esses grupos – os não escolarizados.

No entanto, após sua consolidação como instituição educacional onde a escolarização, como estratégia de poder, possibilitou a instituição de determinados comportamentos como civilizados e a legitimidade de determinados saberes culturais, sentiu-se a necessidade de expandir o processo civilizador para o aprimoramento do Estado-nação. Isso porque: “Alguns setores das elites se dão conta de que a civilização não é apenas um estado, mas um processo que deve prosseguir. Assim, civilização passa a referir-se a um padrão universal de moral e costumes” (VEIGA, 2002, p. 96).

Nesse sentido, a educação escolarizada figurou como importante estratégia para dar cabo ao processo civilizatório, pois:

A monopolização do saber pelo Estado e a universalização da instrução ampliou para toda a população os modelos de autocoerção, o domínio das emoções, os sensos de vergonha e pudor, disseminando outra configuração de sociedade ao inventar a educação escolarizada como categoria da atividade social (VEIGA, 2002, p. 98).

Com isso, inicia-se o movimento para que todos tivessem acesso à escolarização, no sentido de se concluir o processo civilizatório através da homogeneização das relações sociais, partindo-se do pressuposto de que as relações se davam de forma diferenciadas de acordo com as formações sociais presentes nas relações de gênero, etnias, classes e geração.

Para Veiga, consequentemente, a escola homogeneizou as relações de gênero, com o intuito de se estabelecer uma cultura masculina, também as categorias referentes à geração foram socializadas nas escolas, criando-se modelos de infância e adolescência: a criança inteligente e bem comportada e o jovem responsável como norma civilizada dessas categorias. A autora ainda chama atenção para a questão da homogeneização cultural:

Ainda se socializou na escola uma perspectiva branqueada da cultura: as referências de civilidade estiveram de acordo com o predomínio dos valores de uma etnia, de uma raça. Mas também a escolarização disseminou uma cultura de classe, ao difundir as regras de ser bem-sucedido na sociedade, por meio da competitividade dos talentos e da meritocracia. (VEIGA, 2002, p. 100).

Assim, paralelo ao processo de inclusão “dos diferentes”, há um processo de homogeneização da diferença, através do estabelecimento da norma a partir da cultura branca- masculina-burguesa-europeia. Através do qual onde crianças e jovens serão incentivados a aprender e se comportar de acordo com a norma na busca de constituírem-se de acordo com o modelo de criança inteligente e bem comportada, e de jovem responsável para alcançarem o status de civilizados, embora para tanto a escola tenha silenciado seus diferentes pertencimentos culturais.

No Brasil, a educação escolarizada começa a ser instituída no período colonial, constituindo-se a partir do colonialismo imperial como uma educação ocidental, baseada nos conhecimentos europeus, onde a razão ocidental indicou os saberes válidos. Porquanto “Uma das realizações da razão imperial foi a de afirmar-se como uma identidade superior ao construir construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero), e de expeli- los para fora da esfera normativa do ‘real’” (MIGNOLO, 2008, p. 291). Deste ponto de vista, podemos afirmar que a educação escolarizada no Brasil herda da razão imperial a forma de classificar e hierarquizar sujeitos e conhecimentos.

Em relação ao papel da educação no contexto da colonização, podemos citar Larrosa ao fazer uma crítica aos objetivos da educação que foi posta a serviço da colonização, afirmando que, nesse contexto, “A educação aparecia como uma ‘missão civilizadora’ e a ‘causa nobre’ a que os pedagogos dedicavam seus melhores esforços não era outra que a de oferecer aos povos de civilização ‘inferior’ os ‘dons’ da nossa ciência, nossa cultura e nossa forma de viver.” (LARROSA, 2002, p. 72, tradução nossa).

Podemos perceber na afirmação de Larrosa que, no contexto da educação realizada nos países que foram colonizados, a escolarização apresenta outro sentido de processo civilizatório. O sentido de transformar os povos não civilizados ou de civilização inferior, em povos que se “aproximam” da civilização ocidental através dos processos civilizatórios produzidos na escola, para tanto, os saberes ensinados são os saberes da cultura ocidental e sua forma de viver.

Para Gusmão (1999, p. 44), “O processo colonial e seu legado de que somos todos herdeiros já ensinou que aos que são menos, que são diferentes resta-lhes se fazer à imagem e semelhança do EU, para serem aceitos e poderem existir num mundo em que a diferença não tem lugar”. As colocações da autora nos mostram como o processo colonial e sua missão civilizadora impuseram processos de homogeneização a partir da hierarquização das diferenças.

Considerando que a escolarização em diversos momentos foi utilizada como estratégia do poder normalizador, poder este que teve no conceito ocidental de sujeito civilizado a sua norma, é possível compreender como o processo de normalização, baseado na civilização como norma, operou paradoxalmente processos de homogeneização e diferenciação.

Uma das operações que esse duplo processo promove é a gradação das diferenças individuais, pois “Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro da homogeneidade, que é regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação de diferenças individuais” (FOUCAULT, 2012c, p. 177).

Diante do exposto, podemos dizer que na missão civilizadora desempenhada, especialmente a partir dos processos de escolarização, dois processos foram primordiais: o processo de diferenciação e o processo de homogeneização. A busca pela homogeneidade se deu justamente na identificação da diferença, diferença entre os civilizados e os não civilizados, entre as classes sociais, gênero, raça, comportamento etc., e através de uma escolarização pautada nas ideias da elite europeia. Assim, processos de homogeneização foram postos em ação na escolarização moderna.

No entanto, o próprio processo de homogeneização opera novos processos de diferenciação, seja através da produção de toda uma gradação de diferenças individuais, como ressalta Foucault (2012c). Seja através de uma inclusão diferenciada nesse processo, posto que tais processos de homogeneização não foram implantados de forma igualitária, como veremos a seguir analisando especificamente o caso do atendimento às crianças no Brasil, isso porque, como vimos, processos de homogeneização se atrelam a processos de diferenciação.

2.2 Situando historicamente o atendimento às crianças: a intersecção classe, raça e