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REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E VISIBILIDADE

3.2 A Especificidade da Luta das Mulheres Indígenas

As propostas do I Encontro das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira são assumidas no II Encontro, ocorrido um ano depois. É interessante verificar essas demandas na ocasião do 'I Fórum Permanente dos Povos Indígenas da Amazônia: Políticas Públicas do Estado Brasileiro na visão dos Povos Indígenas', organizado pela COIAB, em 2003 na cidade de Manaus, dias depois do II Encontro de Mulheres. Nesse momento as mulheres estavam presentes ao lado de um grande número de lideranças masculinas de todo o país com intuito de analisar a relação entre povos indígenas e Estado e definir políticas públicas específicas. Para tal propósito, realizaram grupos de trabalhos abrangendo temas como terras indígenas, recursos naturais e biodiversidade; educação e saúde indígena; etnodesenvolvimento; mulheres, jovens e crianças indígenas; política partidária e movimento indígena; alianças e articulações do movimento indígena. Os grupos que tratavam de preocupações gerais do movimento indígena foram coordenados pelos homens, sendo que às mulheres coube apresentarem as propostas do grupo 'mulheres, jovens e crianças indígenas'. A coordenadora do

DMIAB/COIAB apresentou as demandas anteriormente discutidas no II Encontro de Mulheres, inicialmente chamando atenção dos homens para o fato de que:

"o homem precisa mais de conscientização da participação das mulheres nas diversas instâncias, isto foi uma avaliação que foi feita por nós mulheres, como companheiras, como filhas, como esposas, que a maioria aqui são casadas, porque esta conscientização? Porque às vezes, dentro de uma organização regional a gente tem visto que as lideranças, mesmo de base, eles não tem dado muito apoio, eu não sei em que sentido, mas segundo as colocações aqui que as mulheres fizeram, muitas vezes porque as pessoas não entenderam ainda o porquê da nossa organização. Nós sempre dizemos nas nossas colocações que não criamos organizações para separar do movimento indígena, mas sim para fortalecer, mas é específico, porque tem coisas muito pequenas, que deixam de discutir, então estas coisas internas que a gente conversa nestas organizações. Então, queremos que os senhores tenham esta consciência e ajudem a colaborar com estas organizações que são suas mulheres, suas famílias, filhos, parentes que estão nas bases, isto que nós queremos a colaboração dos senhores, como lideranças, lideranças homens".

A preocupação com o reconhecimento de suas demandas no movimento indígena, advém do fato de que "nós aqui [no fórum] falamos das coisas maiores, mas tem que lembrar as coisas mínimas que é mais importante para vocês lá nas bases", ou seja, colocam as mulheres no cerne das preocupações com os problemas cotidianos da vida comunitária ('coisas mínimas') e não somente com as demandas gerais do movimento indígena ('coisas maiores'). Para tal, demonstram a validade das propostas das mulheres ao se referirem ao seu maior envolvimento nas necessidades doméstico-familiares e comunitárias, inclusive pela razão de que no encontro foram as mulheres que trouxeram artesanato para vender.

Ratificando a inclusão de reivindicações específicas, apresentam propostas para as diferentes gerações, sustentando que as organizações indígenas deveriam abrir espaço para participação dos/as jovens. Nesse sentido, reafirmam as demandas do movimento indígena com relação à valorização (e repasse) dos conhecimentos tradicionais e do ensino formal para crianças e jovens. Nos aspectos educacionais, também há a preocupação com o analfabetismo da maior parte das mulheres, que 'querem ler e não sabem dar o preço, não sabe nem quanto custa o seu trabalho'.

O reconhecimento da luta das mulheres por parte das lideranças masculinas é referenciado pelo fortalecimento da autonomia das organizações de mulheres e um

trabalho conjunto com os homens, como explica uma indígena Wapichana: "queremos apoio dos homens porque nós mulheres, não só mulheres indígenas, nós estamos sofrendo um tipo de violência (...) então nós estamos aqui também para ocupar o espaço, para ajudar vocês, não divisão". E, ainda, conforme uma outra indígena esclarece:

"o movimento de mulheres é para somar a luta do movimento indígena junto com os homens, a gente está vendo que alguns homens estão já meio apavorados, achando que nós queremos tomar o espaço deles, não é isto não. O que a gente precisa discutir é a relação de gênero entre o movimento, porque a gente percebe muito ainda o machismo dentro do nosso trabalho e a gente precisa, cada vez mais, ir conquistando o espaço junto com os homens, para a gente dar conta das nossas especificidades, da saúde, da educação, do auto sustento, quer dizer, tem muita coisa que vocês não estão dando conta, então a gente precisa ajudar essas coisas acontecerem, é por isto que a gente está aqui e precisou criar este Departamento para realmente cuidar destas especificidades, porque senão acaba a gente querendo sempre melhoria para o movimento indígena, mas tem uma parte muito especial que é a nossa, a questão da mulher, o relacionamento entre as famílias, isto é muito importante, também para ser discutido entre as famílias nas aldeias, e é isto que a gente quer garantir neste momento, que a gente não quer dividir, que a gente não quer tomar o espaço dos homens, mas a gente quer somar, a gente quer cada vez mais fortalecer o nosso movimento indígena para a gente conquistar os nossos direitos em pé de igualdade".

Pelo fato desse encontro contar com expressiva representação masculina, as mulheres vêm este momento como oportuno para se referir às suas especificidades de gênero, exigindo maior apoio de seus companheiros. Para elas, o enfrentamento de questões de caráter locais - o relacionamento entre as famílias, a preocupação com a educação das crianças e jovens, o desenvolvimento sustentável e a revitalização da cultura, entre outras - tem correlação e interferem no âmbito das reivindicações indígenas gerais, e os homens, em suas palavras, não estão dando conta de conquistar tais reivindicações. Quer dizer, os problemas básicos são muitos e elas estão dispostas a fortalecer o movimento, a colaborar nesta empreitada 'em união com os homens'.

A problemática da violência, embora tenha sido levantada no II Encontro do DMIAB/ COIAB, não foi apresentada no Fórum, o que fez com que um líder Macuxi chamasse atenção para 'as violências sexuais causadas às mulheres indígenas, violentadas por militares e também pelos parentes indígenas'. Ele sugere assessoria jurídica e amparo às crianças 'que ficam abandonados aí, sem casa e sem família'. Essa fala masculina em relação à questão da violência pode advir do fato de que esta é uma das bandeiras de

luta mais significativas das mulheres no Estado de Roraima, local de origem de tal liderança, fato que não permite a generalização da existência do 'machismo' e resistência por parte dos homens em relação às reivindicações das mulheres.

Ao mesmo tempo que determinados homens cooperaram com as mulheres, 'lembrando' de temas como a violência, houve insinuações jocosas no momento da apresentação de suas propostas à platéia. Nessa ocasião determinados homens aclamavam que 'está tudo aprovado', não havendo abertura para discussões maiores como as ocorridas com as outras temáticas do evento. Assim, não se pode desconsiderar a difícil relação com as lideranças masculinas, tradicionais/locais ou coordenadores das organizações e militantes do movimento indígena, sendo um dos pontos enfatizados pelas mulheres como entraves ao seu processo organizativo. O Fórum foi um momento expressivo desse embate porque demonstrou pela primeira vez a representação formal das mulheres através do Departamento, abrindo um espaço ritualizado da presença feminina na colocação de demandas específicas. Por trás dos embates entre mulheres e líderes homens das organizações e comunidades, está a problemática da especificidade ou não da luta das mulheres dentro do movimento indígena e também do movimento de mulheres não indígenas. Conforme sustenta o depoimento de uma liderança feminina:

"o movimento de mulheres é para fortalecer o movimento em geral, a discussão é unânime, a política dos povos indígenas é única, só que tem uma diferença, que a organização de mulheres tem uma questão específica que tem que ser discutida dentro do movimento de mulheres (...). Então a gente está vendo a nível nacional, a nível internacional, a mulher tem sua especificidade, a gente não pode deixar isto de lado e creio que as mulheres indígenas tem que saber ir buscar, se capacitar".

Para ela, há diferença entre as lutas do movimento indígena, que "vê a parte política, demarcação das terras, invasão de terra, reivindicar saúde, educação, uma parte geral", enquanto o movimento das mulheres:

"tem coisas específicas mulher, tem a violência intrafamiliar, a violência da criança e do adolescente, tem o estupro, tem a bebida, assassinatos, é problema que tem que ser discutido especificamente mulher, o caso do abandono, separação de casais, não é o movimento maior que vai discutir uma coisa específica mulher".

Deste modo, novas problemáticas têm sido pleiteadas pelas mulheres, o que aponta para a singularidade de seu movimento em relação aos movimentos indígena e de mulheres não indígenas. As demandas de gênero demonstram a consciência das mulheres com as necessidades (inter)comunitárias e sua correlação com demais reivindicações indígenas. Temas gerais e específicos aparecem imbricados, como na fala de uma indígena quando intenta requerer, através das atividades do artesanato, a estrutura econômica para sua organização para conseguir solucionar os demais problemas: "a parte do artesanato que a gente tem que lutar para ter uma estrutura própria, é mais para buscar apoio, dar apoio às mulheres que precisam, por exemplo, lá existe muito estupro, prostituição".

As mulheres indígenas confirmam a unidade de suas lutas com a de seus povos, ao mesmo tempo em que estabelecem o fortalecimento de espaços organizativos próprios. Contudo, o reconhecimento das especificidades das mulheres é fator divergente entre as próprias mulheres, verificado em seus discursos e práticas políticas, fazendo da temática uma das ambivalências do seu processo organizativo. O tema das relações entre homens e mulheres elucida a posição das mulheres, até então de não participantes diretas das questões políticas dos povos indígenas. Além disso, o contato e maior interação com a sociedade não indígena têm provocado significativas reflexões sobre quais aspectos da organização social devem ou não ser preservados, dado que determinadas particularidades da cultura tradicional ainda vigentes não tem mais respaldo devido às modificações na própria organização social. Essas transformações têm conseqüências nas relações de gênero, interferindo no âmbito doméstico e nas concepções do masculino e feminino nos diferentes povos.

As próprias mulheres, com exemplos concretos, reavaliam este contexto. Como é o caso de uma liderança que expressa o fato de que em sua etnia as opiniões femininas sobre os assuntos comunitários são manifestadas por parte de seus maridos, por causa da proibição de falarem nas reuniões coletivas. Determinadas mulheres têm questionado este tipo de interlocução e recusa em ouvir diretamente a voz feminina. A falta de apoio por parte dos homens para que possam participar mais freqüentemente das atividades tanto no espaço comunitário como para além dele, chega a interferir diretamente no bom andamento do seu processo organizativo, pois muitas mulheres desistem de freqüentar espaços próprios por causa das ameaças e/ou proibições de seus maridos. Os comportamentos dos gêneros no tempo antigo têm implicações nos dias atuais e

precisam ser contextualizados, não só no tempo como também nos novos espaços em que ocorrem, nas organizações e cidades. Nas organizações indígenas em que há departamentos de mulheres, uma coordenadora expressa que a conquista de espaços femininos é feita mediante 'muita conversa' com os coordenadores para execução de um plano conjunto entre mulheres e homens, explicitando que essa luta depende dos esforços das próprias mulheres:

"nós como mulheres enfrentamos vários problemas também, então no início nós fomos vistas como se nós quiséssemos separar o trabalho dos diretores com o Departamento, com a coordenação, tanto assim que nós trabalhamos dois anos voluntariamente. Então, isto foi nossa luta e hoje em dia de tanto nós conversar, fazer com que eles entendam que nós mulheres não queremos separar o trabalho do homem e da mulher, não queremos ser melhor que eles, mas trabalhar em parceria. Então, depois de várias reivindicações que nós fizemos (...) nós conseguimos o nosso objetivo que é fazer com que as três [mulheres] do Departamento, ganhassem também igual a eles, então isto nós conseguimos. Eles já nos vê como parceiras, então eu acho que primeiramente depende de nós mulheres mesmo fazer com que eles entendam, que seja conscientizado de ver as mulheres como parceiras (...) depende muito de nós mesmo, lutar pelos nossos ideais, pelos nossos interesses".

Influenciar e conscientizar os homens da relevância do associativismo das mulheres é, portanto, uma estratégia das mulheres à frente das organizações, conforme também sustenta a indígena de Roraima:

"como a companheira falou que não podia vir porque o marido não deixava, mas nós a gente procura conquistar as lideranças da comunidade, quem são? É o tuxaua, os professores, os agentes de saúde, os catequistas (...) porque quem se preocupa mais com a vida? Somos nós mulheres quem se preocupa mais com a vida, com a nossa saúde. Então sempre coloco assim para os homens, para as lideranças, e na reunião que a gente faz a gente convida os homens para participar junto, para ouvir o que a gente está falando mesmo, do que a gente está falando, porque uma desconfiança que eles tem, de sair, mandar a esposa para a reunião (...). Sempre coloco assim, olha nós tem que ser igual, assim como você tem conhecimento, ela tem que ter conhecimento também, agora se você não confia na sua esposa para viajar só, então acompanha, acompanha ela, quem sabe você vai aprender lá com nós também".

Além das divergências com as lideranças masculinas locais e o fato dos coordenadores poderem não considerar a importância de suas demandas, pode ocorrer que as mulheres ao ocuparem cargos nas organizações mistas apenas exerçam a função de secretariado, tendo pouca ou nenhuma influência nas tomadas de decisão. Ao mesmo tempo, a

presença das mulheres nesses postos e no movimento indígena não assegura que estejam lutando por demandas de gênero, nem pelos direitos das mulheres. Esses pontos serão discutidos com maior profundidade (cf. Capítulos Quarto e Sexto).

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Os encontros são momentos por excelência de troca de experiências entre as mulheres indígenas de povos e tradições diferentes, que as colocam a par das várias problemáticas indígenas, além do fortalecimento mútuo de seus processos organizativos. Os eventos organizados pelo DMIAB/COIAB demonstram não somente as dificuldades enfrentadas pelo Departamento em si, mas questões gerais referentes ao processo organizativo das mulheres indígenas da Amazônia Brasileira. É a partir da atuação das mulheres em suas comunidades que podem elaborar propostas aos problemas enfrentados nas áreas de educação, saúde, alternativas de produção econômica, participação política e processo organizativo, violência, alcoolismo, migração dos jovens para as cidades, entre outros. O que resulta nos esforços de união das mulheres com os homens de seus povos para concretização de suas demandas nas atividades comunitárias, na maior participação associativa das mulheres nos locais em que o processo organizativo ainda se encontra de modo incipiente, na necessidade de capacitação e realização de cursos diversos, e na busca de parceira com não indígenas para conquista desses objetivos.

É demonstrada explicitamente a especificidade da luta das mulheres em relação ao movimento indígena. Junto aos homens pleiteiam 'somar' e 'fortalecer' a luta conjunta. As mulheres discutem a necessidade de ocuparem espaços e enfatizam temáticas até então 'esquecidas' pelo movimento maior, como a denúncia da violência contra a mulher e assuntos referentes ao universo familiar. A especificidade de suas lutas é garantida pelo papel que ocupam na esfera comunitária, como mães e responsáveis pelo bem-estar coletivo dos parentes próximos. É na denominação de um modelo de liderança próprio que as mulheres demonstram como sua participação política é importante nos mais diversos âmbitos em que atuam.

Ao se inserirem nas organizações, novas atividades e funções são atribuídas às mulheres. É nos momentos em que se reúnem em espaços maiores e com outras etnias que elas apresentam as dificuldades até então enfrentadas no cargo de representantes de

organizações, a nível local, regional e/ou estadual, e nacional. Agora estão infiltradas em processos burocráticos até então inusitados, requerendo maior capacitação em todos os aspectos. Há um interesse pela qualidade das atividades de subsistência, seja para consumo próprio como para geração de renda. Nos aspectos educacionais e de saúde, reafirmam as demandas de seus povos, introduzindo sua participação também nos diversos Conselhos em que se discutem tais questões e através dos quais podem concretizar suas ações nesses campos. A violência sofrida pelas mulheres é igualmente alvo de suas prioridades. Para conseguir seus objetivos demandam não somente serem capacitadas, mas a maior participação política a nível local e no espaço político propriamente dito. O que faz da problemática da representatividade das mulheres no âmbito nacional questão continuamente debatida, e recentemente resultado em ações concretas como a criação da comissão provisória para essa articulação. O trabalho por elas empreendido é repleto de dificuldades e sua inserção no processo organizativo, portanto, denota problemas internos, nas suas comunidades, mas também nas organizações e na relação travada com diversas agências através dos apoios recebidos para suas atividades.