• Nenhum resultado encontrado

SEGUNDA PARTE

4.3 As Mulheres Introduzem Novos Elementos ao Campo Político?

Com a maior presença das mulheres no campo da política, e mais recentemente com a adoção de cotas, o debate sobre o gênero da política tem se consolidado mais fortemente. A discussão sobre a entrada das mulheres na arena política, sua representação reivindicada ou sub-representação questionada, tem motivado nos últimos anos novas reflexões teóricas, assim como se tem buscado implementar diferentes ações no sentido de ampliar essa representação. Se a temática da participação política das mulheres não é tão nova, é nos últimos anos que se tem verificado uma efervescência no exame das problemáticas surgidas por esta crescente participação. Ao lado do embate teórico, há os fóruns, conferências, plataformas e protocolos transcorridos no âmbito internacional que visam efetivar medidas efetivas no sentido de superar as desigualdades de gênero, principalmente através da questão da paridade entre os sexos nas instâncias decisórias.

Por causa da pretensa invisibilidade e exclusão das mulheres nas atividades ocorridas no mundo público, são as características masculinas as associadas ao mundo da política, campo de poder e disputas, e também de maior prestígio, resultando na equação que interliga o masculino à política. Diante da presença cada vez mais visível das mulheres na esfera política e sua participação em uma enorme diversidade de contextos e modos de atuação, há um novo questionamento sobre o gênero do/a político/a. A crescente participação política das mulheres introduziria alguma peculiaridade no contexto

político? Ou há implicações desta participação na negociação e transformação das relações de gênero neste campo de disputa?

São várias as justificativas relacionadas ao fato de que as mulheres introduziriam novos elementos ao campo da política. Joan Scott (2001), na análise da luta pela paridade na França, mostra como a presença das mulheres em cargos-chaves e valorizados estimula positivamente o imaginário a respeito das mulheres na política, revertendo em muito pouco tempo posições totalmente contrárias às leis de cotas. Para Maria Betânia Ávila (2002), a presença das mulheres dentro dos partidos altera imediatamente a divisão sexual dos lugares do poder. A chegada ao mundo público também pode produzir um processo de mudança na vida privada.

É interessante o artigo de Luís Miguel (2001) na crítica à postura essencialista de determinadas cientistas políticas feministas na defesa de uma 'política de desvelo' trazidas pelas mulheres ao campo político, em oposição à uma 'política de interesses' masculina. As mulheres, pela associação 'natural' ao seu papel de mãe e dos assuntos relacionados ao universo doméstico-familiar, seriam mais sensíveis e menos egoístas. Por causa da preocupação com aqueles que a cercam, é agente de uma 'política de desvelo', em oposição àquelas características tidas como masculinas da política, a amoralidade e crueza pela disputa de poder. Nesta perspectiva, há uma decorrência direta entre a alteração dos padrões de comportamento na política pela paridade dos sexos nos fóruns decisórios. Outras análises, como a teoria organizacional, invocam igualmente as características associadas ao feminino como vantagens inseridas pelas mulheres no mundo da política, supervalorizando atributos como sensibilidade e intuição nos estilos de gerência e liderança.

Miriam Grossi e Sônia Miguel (2001: 193), ao analisarem a pluralidade de vozes na avaliação das primeiras experiências com a política de cotas no referido Seminário ocorrido na Câmara dos Deputados, denotam a importância da 'sensibilidade' e da 'ética' como atributos femininos valorizados tanto nos discursos dos homens como das mulheres. Dois são os argumentos que justificam a sensibilidade como a diferença central entre a política feita pelos homens e a realizada pelas mulheres. O primeiro, defende-a como algo 'natural' decorrente do exercício da maternidade, o segundo percebe a sensibilidade das mulheres como 'socialmente construída' a partir do cuidado

com os outros, nas atividades de professoras, assistentes sociais, enfermeiras ou médicas. A sensibilidade e a ética da preocupação pelos outros são tidas como vantagens para o exercício do poder e a realização de uma 'política leve'.

Os esforços para caracterizar uma especificidade feminina, portanto, apelam às prerrogativas morais, éticas ou ontológicas das mulheres enquanto mães, para formar a base de um interesse específico legal e político na representação. A recorrência à uma especificidade enquanto mães ora se dá no seu sentido 'natural', ora se invoca a maternidade social como uma situação comum a todas as mulheres. Judith Butler (1998: 24) alerta sobre o fato de que a caracterização da maternidade como uma especificidade das mulheres, seja biológica ou social, pode produzir facções internas ou mesmo uma rejeição no caso do feminismo, pois nem todas as mulheres são mães, algumas podem não sê-los, outras escolhem não sê-lo e, ainda, para algumas que são mães esse não é necessariamente o ponto central de sua politização.

Luís Miguel (2001:262) questiona o fato de a maternidade ser efetivamente um exemplo de conduta que se desejaria para a ação política. O 'pensamento maternal', que tanto valoriza as distinções éticas e compassivas próprias das mulheres, no limite, privilegia laços particulares, uma relação de intimidade e exclusividade, e de desigualdade (o filho é subordinado à mãe). A política democrática, ao contrário, exige a igualdade e características opostas à inclusividade. Desse modo, seria ingênuo afirmar que as mulheres praticam uma 'política desinteressada' por causa de seu cuidado dispensado geralmente às crianças e aos mais velhos. A afirmação de uma diferença moral entre homens e mulheres e a busca de uma política mais ética por si não bastam. As vozes das mulheres, conforme ainda o autor (Miguel 2001: 266), são sim 'vozes diferentes' não porque a diferença sexual produza uma singularidade moral, mas porque a organização da sociedade impõe experiências de gênero diferenciadas.

Embora possa parecer legítima a entrada das mulheres no mundo político pela sua posição enquanto mães, e os primeiros protestos das mulheres nos movimentos populares se deram por suas funções enquanto mães ('maternidade militante'), há o perigo destas análises essencializarem os atributos masculinos e femininos, eternizando a divisão sexual do trabalho e naturalizando os papéis de gênero, o que perpetua o destino das mulheres a um espaço menos valorizado socialmente. As problematizações

levantadas pela antropologia do gênero e pelos estudos feministas em torno da dicotomia público/privado, a partir das experiências das mulheres em diferentes sociedades, revelaram que não há uma associação direta entre mulheres e espaço doméstico, homens e espaço público. Mesmo nos locais em que isto ocorre mais freqüentemente e de modo hierárquico, esta associação nada tem de automática, mas é produto das relações sociais em que homens e mulheres estão inseridos. No campo da política o que está em jogo é a reprodução de um modelo de poder e não a polarização entre o 'poder feminino' e o 'poder masculino'.

Alinne Bonetti, em sua pesquisa junto às mulheres inseridas na ONG feminista Themis, revela os conflitos e os sentidos de gênero que constituem o campo político. Na busca de reconhecimento e legitimidade de suas práticas, as promotoras populares negociam e produzem contextualmente os atributos de gênero. A prática política dessas mulheres, vivenciada pelo uso de diferentes códigos e valores, demonstra o caráter conflitivo e dinâmico do domínio político. Através de estratégias reguladoras do prestígio social do masculino e do feminino, empreendidas contextualmente por essas mulheres, há a "desconstrução de uma suposta e nostálgica política no feminino, que seria caracterizada pela cooperação e solidariedade, elementos constituidores de uma irmandade de gênero" (Bonetti 2000: 203).

Em suas casas e na relação conjugal recorrem ao modelo de feminilidade, o que não quer dizer que não precisem negociar com os homens quando passam a atuar no mundo da política. No interior do partido, embora o grupo referido se oponha à identificação com o feminismo, a categoria pode ser usada como estratégia aos propósitos políticos. Diante das mulheres do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (COMDIM) de Porto Alegre, as mesmas mulheres se identificam com categorias de classe, aqui são 'populares' em distinção às 'madames de elite', as feministas do Conselho. Em outro espaço político por elas freqüentado, as assembléias do Orçamento Participativo, na qual a disputa é com sujeitos também populares, há trocas de homenagens públicas entre as mulheres, elemento constituidor de prestígio e honra masculino, e também o recurso à fofoca, elemento controlador da honra feminina. Ao refletir acerca da definição do campo político a partir dos atributos masculinos, a autora (2000:171) explica que se deve abrir mão de uma postura romântica acerca da prática feminina. Ao fazer isto se entende aqueles elementos que fazem parte do jogo político: disputas,

segmentações, busca por reconhecimento e estratégias. As promotoras populares utilizam termos como 'força', 'luta', 'briga', 'bater', 'dar pau' que fazem parte do repertório simbólico associado a elementos culturais do mundo masculino, como a agressividade e a virilidade.

As mudanças no campo político em decorrência da inserção feminina também se baseiam na afirmação de que as mulheres quando assumem os cargos de poder revelam uma maior preocupação com os assuntos 'sociais' em detrimento das hard politics, assuntos tradicionalmente atribuídos aos homens, como administração pública, política econômica, relações exteriores, etc. Contudo, isto pode ocorrer, conforme aponta Luís Miguel (2001:261), pois é o único lugar disponível para elas no campo político. Embora seja legítima a preocupação das mulheres com os assuntos menos valorizados na política, como educação e saúde, entre outras demandas incorporadas na agenda política, estas são questões de menor prestígio do mundo político. Como conseqüência da reprodução desses discursos, corre-se o risco de criar um gueto sem ressonância no mundo masculino, como alertado por Delaine Costa (2001:222). A autora propõe, contra esta prática, a autorização às mulheres de falar de assuntos como economia e dívida externa, assim como o homem de temas como creche e saúde para que outros homens passem a ouvi-lo.

Apesar da introdução de novos itens na agenda política como conseqüência da presença das mulheres no poder, há outros mecanismos em jogo para a efetivação dessas políticas. Pode ocorrer, conforme Grossi e Miguel (2001: 194), que as retóricas das plataformas eleitorais das mulheres a favor do privilégio do social quando assumem o executivo não sejam colocadas em prática no centro da política, devido a sua sub- representação no interior dos próprios partidos ou coligações. As mulheres devem suas posições aos partidos e não às outras mulheres (Htun 2001: 229), e os partidos ainda não adotaram uma política interna efetiva de inclusão das mulheres em cargos de direção (Grossi e Miguel idem). Além da fidelidade partidária ou discriminação sofrida dentro do partido, dentre as mulheres há divergências de interesses e experiências. O fato delas estarem no cerne do poder não significa que vão ser implementadas políticas a favor das mulheres e que suas prioridades necessariamente incluam as questões de gênero.

* * *

Esta breve exposição acerca de temas e categorias de análise do campo político serve de base à investigação da problemática da 'participação política das mulheres indígenas'. A inserção das mulheres no espaço político faz com que haja uma reformulação desse espaço, como demonstrado nos estudos. O significado do termo 'política/o' passa a ser entendido não somente no seu sentido estrito, mas numa ampliação do conceito que visa compreender, entre outros fatores, as representações 'nativas' e o espaço do cotidiano. A entrada das mulheres nesse universo se dá pela sua participação em protestos, movimentos sociais, atividades comunitárias (clubes de mães, por exemplo), etc. O que elas buscam é a saída de uma situação de 'opressão' e a luta por direitos básicos, mas também um desejo próprio por outros modos de expressão e vias de esclarecimento, conseguidos através das relações que passam a travar no rol de suas atividades.

Em comum com as mulheres que militam nos movimentos urbanos, as indígenas lutam a partir de sua experiência cotidiana na inferência de políticas. A prática política coletiva pode provocar não somente uma 'alteração de consciência' por parte das mulheres como redefinir temas tradicionais e complicados no interior de suas comunidades e culturas. A busca de seus direitos (ou 'carências') se dá através da sua posição como mães, o que resulta na denominada 'maternidade militante'. O fato de pertencer à uma organização também ajuda na conquista de direitos específicos e de seus povos, e muitas líderes locais passam a freqüentar espaços fora de suas comunidades a partir do processo organizativo.

A entrada das mulheres no mundo da política coloca em questão vários fatores, como as qualidades e os efeitos simbólicos que elas podem acrescentar a este campo, o grau de organização, a própria elaboração do político enquanto 'modelo branco' e masculino, e as dificuldades dos homens em lidarem com as demandas das mulheres e as reconhecerem como atuantes politicamente. As mulheres devem aprender as regras do jogo, as 'tecnologias do poder', entre estas, o uso de uma linguagem específica. Além das prerrogativas habituais que são exigidas para a entrada no mundo político, há exigências específicas às mulheres. No caso indígena, o cumprimento de seus papéis de mães e esposas e o fato de serem 'exemplos' em suas comunidades. Além disso, há outros entraves à participação política feminina, como a divisão do trabalho por gênero

tal como está concebida, a falta de recursos financeiros, o 'machismo' de seus pares, a renúncia a projetos pessoais, o exercício de papéis tradicionalmente atribuídos aos homens e as críticas resultantes dessa nova representação das mulheres.

As mulheres indígenas, e também outras 'minorias étnicas', estão submetidas a determinados 'paradoxos', para usar a formulação de Joan Scott, na conquista de direitos de seus povos e os enquanto mulheres. O que conduz às reinterpretações acerca da noção de identidade individual e de grupo. A diversidade de experiências entre mulheres, e entre homens e mulheres, demonstra como a noção de identidade não dá conta por si mesma de sustentar a luta por direitos, pois cada indivíduo leva consigo uma série de identidades (raciais/étnicas, de gênero, religiosa, etc.) e uma vez que uma delas é acionada pode haver facções, rupturas e dificuldades de alianças. Ao mesmo tempo, é preciso assumir uma suposta identidade genérica na busca de tais direitos. Se a desigualdade de intervenção política não é somente das mulheres, há que se lutar por 'demandas comuns' dos grupos excluídos dos locais onde se produzem as políticas, e não apenas por reivindicações das mulheres enquanto mulheres. Isto posto, há a discussão da singularidade da entrada das mulheres no mundo da política. Essa participação assegura necessariamente demandas de mulheres e/ou de gênero? Quais são os atributos de gênero que as mulheres indígenas assumem na busca de seus direitos? Se as políticas com perspectiva de gênero em relação às mulheres indígenas interferem na reordenação dos modelos tradicionais de gênero, como as mulheres lidam com tais questões no interior de seus povos? Tento responder estas indagações nos próximos capítulos.

CAPÍTULO V

DESENVOLVIMENTO, POLÍTICAS PÚBLICAS