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Das Assembléias de Tuxauas à criação do Conselho Indígena de Roraima

ORGANIZAÇÃO DE MULHERES INDÍGENAS DE RORAIMA

1.1 Das Assembléias de Tuxauas à criação do Conselho Indígena de Roraima

Neste capítulo pretendo esboçar a história do contato dos povos indígenas de Roraima, com intuito de oferecer um panorama geral desse processo para apreender o período do surgimento de uma nova geração de lideranças e a criação de uma organização representativa dos vários povos indígenas nesse Estado.7 Concomitante a isso, a intenção é elucidar aspectos da sociabilidade indígena e o contexto em que atuam as mulheres, mesmo que nos primeiros relatos sobre esses povos elas não tenham ganhado visibilidade relevante se comparadas aos homens e as prerrogativas a eles conferidas como agentes privilegiados de interlocução com a sociedade nacional. Esses fatores, contudo, não invalidam a posição desempenhada pelas mulheres no âmbito doméstico- familiar e sua participação nos assuntos da comunidade,8 as quais conferem as bases do 'movimento de mulheres indígenas em Roraima' e a consolidação de uma organização específica que expande o universo de ação feminino. Apontar as especificidades desse movimento organizativo é a principal intenção aqui.

Os campos do vale do Rio Branco se caracterizam por uma ocupação tardia em fins do século XIX. A partir disso, o processo de colonização se dá de maneira sistemática com a instalação de uma frente de expansão pecuarista. No início do século XX, há o estabelecimento de duas agências indigenistas: o Sistema de Proteção aos Índios (SPI) e a missão evangelizadora beneditina. A consolidação da ocupação pecuarista e a exploração do garimpo de ouro marcam a ocupação nos anos de 1940/1950. Nessa década, há a criação do então Território Federal de Roraima, desmembrado do Estado do Amazonas; ao mesmo tempo que ocorre a extinção da Missão Beneditina e do SPI (posteriormente substituídos pela Ordem da Consolata e FUNAI, respectivamente),

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A partir deste propósito, as referências principais das quais faço extenso uso são as etnografias de Paulo Santilli (1994, 2001).

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Utilizo o termo 'maloca' ou 'comunidade' tal como empregado em Roraima. Muito provavelmente comunidade tenha sido utilizada em substituição à maloca, sob a influência da Igreja Católica com o projeto de organização dos grupos locais nos moldes das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

fatores que propiciam o início de um novo processo da história de contato entre povos indígenas roraimenses e a sociedade nacional.

As relações envolvendo essas diversas agências de intervenção e povos indígenas baseavam-se, fundamentalmente, na ocupação das terras e exploração da mão-de-obra indígena. Não foram poucos os conflitos envolvendo fazendeiros, missionários e órgão oficial indigenista pelo acesso à população indígena. O 'padrão clientelista', no entanto, ganha contornos específicos de uma instituição à outra. Os regionais buscavam o consentimento e colaboração dos índios para ocupar os campos adjacentes às terras indígenas, oferecendo em troca bens industrializados. Sob o manto de uma relação de compadrio, também havia o "recrutamento de crianças indígenas para serem criadas junto às famílias 'civilizadas', para 'aprenderem' a lidar com o gado" (Santilli 2001: 39). As agências indigenistas, embora não visassem a posse das terras habitadas pelos índios, tinham como motivo conquistá-los para o 'processo civilizador'. O SPI, ao sobrepor as fronteiras nacionais às fronteiras étnicas, pretendia transformar os indígenas em 'trabalhadores nacionais', a missão religiosa, para alargar as fronteiras do catolicismo até as fronteiras nacionais, objetivava converter os índios em famílias cristãs (Santilli 1994: 55).

A condição das crianças indígenas recrutadas pelos regionais como filhos adotivos e mão-de-obra em serviços domésticos e na pecuária, foi alvo de denúncias por parte da Igreja e do SPI como forma de controle à formação dessa mão-de-obra. E as crianças novamente se tornam o alvo dos principais investimentos, só que desta vez através de um novo princípio, o da educação escolar. A primeira escola nasceu sob a forma de um internato para meninos índios em 1909, funcionando até 1912 na missão Surumu, transferida posteriormente para o sul de Boa Vista onde permaneceu até 1947. A partir de 1922 as irmãs beneditinas fundam o internato feminino. Contrapondo-se a esse regime, em 1919 o SPI cria a Escola Agrícola Indígena Theophilo Leal, na Fazenda São Marcos, fundando em 1924 mais quatro escolas nas comunidades. A prática indigenista, portanto, volta-se para a educação da população indígena como meio de colonização (Santilli 1994: 56-60).

As relações dos povos indígenas com as diversas agências de contato atingiram sobretudo sua estrutura política. Indigenistas e regionais, todos investiram na construção

de intermediários políticos indígenas para buscar legitimação e atingir as várias finalidades da colonização. A figura de um chefe, o tuxaua,9 assume o papel da liderança política tradicional, entre os Macuxi "uma posição apenas proeminente, assumida por um indivíduo na articulação do grupo local ou aldeia, diante da violência do contato com os regionais nos primeiros anos do século XX" (Santilli 2001: 40). As demandas dos diferentes atores do campo interétnico passam agora a confluir sobre a figura do tuxaua, liderança mediadora entre as reivindicações indígenas e dos demais agentes.

O conhecimento da sociedade nacional e uma ampla rede de relações de parentesco na comunidade é que conferiam legitimidade aos tuxauas. As fontes do século XIX referem-se às casas comunais, e a literatura sobre os povos guianenses explicita a uxorilocalidade e o modo de residência matrilocal (Rivière 1984). Desse modo, as filhas após o casamento preferem construir suas casas próximas à família paterna. O marido, por sua vez, deve prestar serviços à família da mulher até o casal poder sustentar sua própria roça. A figura do líder-sogro aponta para o nexo entre residência e parentesco, de cuja articulação deriva a chefia (Santilli 2001: 32-3). Entre os Macuxi, o vínculo entre as esferas política e ritual são atributos necessários à chefia. Sem o respaldo ritual, a chefia parece derivar legitimidade, em grande parte, das relações externas. Nesse caso, a história do contato e a organização indígena mais ampla são fatores intervenientes. (idem: 35-8).

Santilli (1994: 81-4) argumenta que no espaço criado entre as demandas do grupo e as demandas indigenistas, ou seja, de intermediação, abriu-se o espaço para o projeto político dos próprios chefes. Enquanto os agentes indigenistas encontram no chefe um meio de recrutar a população indígena, os chefes encontram nas agências um instrumento para ampliá-las. E aí reside a contradição, decorrente da discrepância entre o cargo de chefe, outorgado pela concessão de títulos honoríficos, que se presumia permanente, e a posição de chefe tradicional cuja existência implicava na reafirmação constante do grupo. Os limites de atuação da chefia na intermediação, portanto,

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A concessão de títulos honoríficos, por parte do Estado, às lideranças indígenas era uma prática do período colonial. 'Tuxaua', 'cacique', 'capitão' ou 'chefe', são designações usadas pelos não indígenas e têm origem nessa época. 'Cacique', por exemplo, vem da língua taino das Antilhas, enquanto 'capitão' passou a ser usado a partir de meados do século XVIII na era pombalina (Schroder 1999: 246).

deveriam ser acompanhados de formas próprias de lidar com as demandas que pudessem manter e/ou reproduzir o prestígio político do chefe.

A partir da década de 1970 diversos fatores intensificam e ampliam o contato interétnico. A política desenvolvimentista do regime militar consolidava a ocupação fundiária de Roraima, assim o avanço da ocupação pecuarista e a exploração garimpeira fazem com que aldeias praticamente intocadas passem a ser objeto de recrutamento de mão-de-obra e influxo de artigos manufaturados. Ao mesmo tempo, se torna sistemática a presença da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) (com o SPI extinto na década de 1960 em meio às acusações de corrupções), da missão católica, da rede escolar e agências assistencialistas governamentais (Santilli 2001: 41). As agências indigenistas a partir desse momento modificam as relações com os povos indígenas. A atuação da Igreja Católica deve ser entendida em dois momentos. O primeiro, desenvolvido de 1909 a 1948, pela Ordem dos Beneditinos através da 'Pastoral da Desobriga', a qual consistia na propagação do batismo, casamento e celebração de missas. A partir da década de 1950,10 instalam-se os missionários do Instituto da Consolata que passam a atuar através da nova orientação da Igreja Católica, a Teoria da Libertação. O novo discurso, principalmente depois da década de 1970, transforma a relação com os povos indígenas, quando a Igreja se posiciona a favor de seus interesses.

A disputa entre regionais e agências indigenistas pelo acesso à população indígena, fez com que a missão católica, e depois o órgão oficial indigenista, estabelecessem estratégias para findar com os vínculos clientelistas que a ligava aos regionais. Foi dessa maneira que os povos indígenas a partir de 1975, com apoio da Diocese de Roraima, começam a se reunir nas Assembléias dos Tuxauas. Nessas reuniões se discutia o acesso aos bens dos diversos projetos comunitários criados na tentativa de minar a obtenção dos produtos industrializados dos regionais, os quais agora seriam conseguidos pelo próprio trabalho na produção agrícola ou garimpo, convertido em moeda na região. É relevante frisar que a área de maior influência da missão católica foi a região das serras (em oposição ao lavrado), pelo fato do contato ser menos intenso e mais provável da

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Nesse momento também se estabelece a missão evangélica Meva, priorizando a tradução da bíblia e formação de agente de saúde. A partir de meados da década de 1980, aliada ao governo, atua em oposição aos missionários católicos.

igreja exercer sua influência. Os projetos e os tuxauas presentes nas assembléias eram prioritariamente dessa região (Santilli 2001: 42-3).

Um dos projetos que teve relativo êxito foi o de gado, criado na década de 1980. Sob o lema 'uma vaca para um índio', os recursos angariados nas regiões de origem da Ordem da Consolata eram investidos na aquisição de rebanhos bovinos, os quais eram cedidos a determinada comunidade por um período de cinco anos. A idéia de tornar os índios pecuaristas foi depois seguida pela FUNAI. A experiência dos projetos comunitários (de cantina, roça comunitária, entre outros), no entanto, criou muitos conflitos entre as lideranças locais. Para facilitar sua implementação e atuar nas relações com os agentes externos, instauraram-se os Conselhos Regionais em 1984 - nas regiões de Amajari, Raposa, Serra da Lua, Serras, Surumu, Taiano e Catrimani. Conforme Santilli (2001: 43), inicialmente apenas o Conselho das Serras atuou mais efetivamente, por exemplo, no encaminhando de denúncias às autoridades governamentais, os outros ganharam impulso com o projeto de gado gerido até hoje.

Se os projetos em geral fracassaram, as Assembléias dos Tuxauas abrangem cada vez mais a participação de um grande número de lideranças ao longo dos anos 1980, sustentando o fortalecimento e consolidação de uma instância representativa. Como resultado dos Conselhos formou-se uma coordenação geral sediada em Boa Vista e, em 1987, numa Assembléia em Surumu, é fundado o Conselho Indígena do Território de Roraima (CINTER) que, em 1990, passa a ser denominado Conselho Indígena de Roraima (CIR). Criado a partir de instâncias de representação nas bases, a eleição para a coordenação é feita mediante indicação dos tuxauas nas Assembléias, para então os candidatos serem escolhidos pelos coordenadores regionais na 'reunião ampliada'. O CIR atua como canal de interlocução representativo dos povos indígenas roraimenses - Macuxi, Wapishana, Ingarikó, Taurepang, Patamona, Sapará, Ye'kuana, Wai-Wai, Yanomami e Waimiri-Atroari, embora os últimos não tenham ainda participado das atividades da organização.

O Conselho depende de financiamentos externos para suas atividades, vindos dos missionários católicos, FUNAI e cooperação internacional. A dependência desses recursos, como sustenta Santilli (2001: 45), revela uma questão crucial para o entendimento do sistema político: a legitimidade dada aos intermediários no plano

comunitário e não ao contrário. Subseqüentemente, tornam-se compreensíveis as trajetórias políticas inconstantes das lideranças locais ou a diversidade das articulações dos atores locais com agentes externos, situados em posições antagônicas.11 Diante da ausência do CIR não há um canal de interlocução externo, ao mesmo tempo a organização política local se confronta, muitas vezes, com a representatividade através do Conselho. Para o autor (2001:134) fica o paradoxo: a organização supra-aldeã como caminho para se obter legitimidade e interlocução com o Estado e a sociedade nacional, com o objetivo de manter sua política interna.

A Invisibilidade Feminina

Nos relatos de viajantes e naturalistas, relatórios oficiais e etnográficos, as mulheres estão ausentes ou é explicitada a subordinada posição feminina nas relações com a sociedade não indígena. Há também referências ao seu papel na divisão sexual do trabalho, como em Koch-Grunberg ([1917-1924]1979-1982), um dos únicos autores que descreve a importância das mulheres na vida comunitária e lhes confere um espaço próprio, referindo-se às suas múltiplas funções e às cargas pesadas que suportavam.12 A divisão do trabalho possibilita apreender os significados sobre os quais se constróem as identidades de gênero, além de oferecer um espaço privilegiado para observar a forma como são estruturadas as relações conjugais. No caso dos povos indígenas de Roraima, as mulheres ocupam um papel central na economia de subsistência, são elas que participam da colheita e preparo dos alimentos e da fabricação das bebidas fermentadas da mandioca (como o caxiri e o pajuaru13). Apesar disso, Arantes (2000: 94-5) refere-se à omissão nos primeiros relatos sobre esses povos sobre a responsabilidade das mulheres na produção da farinha, alimento primordial da dieta desses povos.

A importância das mulheres na (re) produção de suas sociedades é interdependente e complementar às prerrogativas conferidas aos homens de seus povos. A caça e a pesca

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Para Santilli (2001:45) essa questão paradoxal revela-se no ingresso das lideranças na estrutura administrativa da FUNAI, nos postos de saúde instalados pelas prefeituras municipais, no contingente de professores indígenas contratados pela rede oficial de ensino, na participação político-eleitoral e no alistamento militar.

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Outros autores, como Rice ([1928]1949) e mais recentemente Diniz (1972), também se referem à importância das mulheres na divisão sexual do trabalho.

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Caxiri é a bebida fermentada preparada pelas mulheres. O pajuaru é uma bebida tradicional como o caxiri, só que com um processo maior de fermentação, daí seu maior teor alcóolico.

são atividades exercidas tradicionalmente pelos homens, as quais são trazidas às suas mães/esposas e repartidas entre seus consangüíneos/co-residentes. As tarefas masculinas, no entanto, estão sujeitas às variações sazonais, conforme Santilli (2001: 97-8), por causa da ocupação pelos povos indígenas de Roraima de dois ambientes distintos, as serras e os campos, que resultam em formas de exploração ligeiramente diferenciadas.14 Os homens, além disso, estão incumbidos da manutenção da harmonia coletiva e do papel de interlocução política com o mundo exterior ao das comunidades. É a proeminente figura masculina que ocupa o papel da chefia.

Para Arantes (2000: 91-4), nos relatórios das expedições oficiais são mencionados apenas os homens indígenas ocupando os papéis de ajudantes, guias de expedições e interlocutores políticos. O papel de guia era exercido pelos homens por seu conhecimento da língua portuguesa e do território que habitavam, no entanto, as mulheres conhecem tão bem o território quanto os homens pelo fato de que nas empreitadas mais longas as famílias viajavam juntas. Além disso, para a autora (Arantes 2000: 102), o fato dos homens deixarem suas famílias para servirem de guias ou ajudantes nas expedições ocorridas em Roraima ao longo dos séculos, comprometeu a estrutura das sociedades e suas conseqüências foram sentidas tanto pelos que deixavam como pelos que permaneciam em suas comunidades. Fatores com implicações nas relações entre homens e mulheres.

Um olhar atento aos dias de hoje permite verificar as transformações em aspectos da organização tradicional resultantes da interferência das instituições indigenistas e agentes regionais, como na divisão das tarefas alocadas a cada um dos gêneros. As meninas indígenas foram recrutadas como mão-de-obra nas casas dos fazendeiros de gado e passaram pela experiência dos internatos, e ainda hoje é visível o trabalho das meninas e jovens como empregadas domésticas na cidade de Boa Vista. As irmãs beneditinas incentivavam o aprendizado das 'prendas domésticas', através da realização de atividades de costura, bordado, arte culinária e outros misteres para as moças se tornarem 'boas mães de família' (Arantes 2000: 110). Processo que posteriormente se consolidou na criação dos 'clubes de mães' nas comunidades. A experiência do internato

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A caça ocorre com maior intensidade durante os meses de novembro a março, quando a produção agrícola é menos abundante; a pesca, embora praticada como a caça durante todo o ano, ocorre com mais intensidade na estação seca. E as atividades de coleta adquirem maior relevância na região dos campos, onde a caça é mais escassa e a prática de pecuária extensiva.

formou várias catequistas e professoras. E a influência da igreja se faz registrar em vários momentos, além das reuniões em torno dos projetos de corte e costura, foi no I Congresso dos Catequistas que as mulheres começam a (re) pensar seus papéis nas comunidades e iniciam um processo que culminará na formação de sua organização. É a Virgem Maria de Guadalupe a padroeira do movimento das mulheres.

Pode-se dizer que nas relações iniciais com a sociedade não indígena as mulheres não foram escolhidas como canais de interlocução privilegiado, assim como no âmbito interno de suas comunidades não tiveram um canal político expressivo. Nas assembléias eram auxiliares sem direito a voz e voto, como se referem, o que impossibilitou a eleição das mulheres como conselheiras regionais e lideranças com interferência na formalização de uma organização representativa de seus povos. Após a criação do CIR, elas também não ocuparam cargos exclusivos no Conselho e apenas recentemente uma figura feminina tem posição de destaque na assessoria jurídica. Contudo, um 'movimento de mulheres indígenas de Roraima' foi sendo consolidado pela participação feminina nas lutas e embates de seus povos, processo que se efetiva na consolidação de uma organização específica das mulheres, que trato a seguir.