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A especificidade da organização ideológica capitalista: os efeitos de isolamento e

2 O ESTADO E A IDEOLOGIA CAPITALISTA

2.3 A IDEOLOGIA NO ESTADO CAPITALISTA: O FATOR DE COESÃO

2.3.1 A especificidade da organização ideológica capitalista: os efeitos de isolamento e

Ao tratar das relações entre o Estado e os meios de produção capitalistas, Poulantzas traz a discussão sobre a organização da superestrutura jurídico-política, especialmente pela crítica da ideologia jurídico-política (o Direito) e do burocratismo. Essa crítica é importante porque nos permite analisar a ideologia do Estado capitalista tanto em sua forma teórica geral (fator-efeito de representação da unidade do Estado) quanto em sua expressão particular (fator-efeito de individualização-isolamento dos agentes) – na forma da ideologia de Estado, na formação social concreta. Recordamos que a ideologia jurídica é apenas um tipo particular de ideologia, mas que corresponde à ideologia dominante na FSC.

Além de organizar e fiscalizar o processo e a produtividade do trabalho e garantir ordem política diante da luta/conflito de classes, o Estado deve constituir o fator de coesão ou de ordem na formação social e, para isso, gerar efeitos que dissimulam tal conflito em suas dimensões econômica, política e ideológica. Nesse sentido, podemos observar que ocorrem, pelos menos, dois movimentos ideológicos nesse processo: o processo de individualização- isolamento dos agentes da produção e o processo de unificação virtual destes mesmos indivíduos no burocratismo.

O efeito de isolamento a que nos referimos é parte do papel organizacional do Estado capitalista, e decorre, na concepção de Poulantzas, de um efeito da transformação das estruturas feudais de produção para as capitalistas. Ao discutir esta transformação no modo de produção, o autor refere que, nessa transição para o capitalismo, algumas relações entre os agentes de produção (antes relações “pessoais” ou “naturais”) “se desintegram – sich

aufloesen – o que, no seus efeitos, aparecem como uma ‘nudez’ e uma ‘libertação’, e mesmo

37 Além da dimensão da dissimulação dos interesses, a cena política também é o espaço onde se representam simbolicamente e se articulam os interesses das classes dominantes.

uma ‘individualização’ – Vereinzelung – dos agentes.” (POULANTZAS, 2019, p. 126-127). Esse feito de individualização é constituído na prática pela separação do produtor direto em relação aos meios de produção. Essa separação é o que conduz ao processo de socialização das forças produtivas e ao processo de concentração do capital (MARX, 2013). Isso também possibilita a emergência dos agentes da produção como “indivíduos”, representada pelo direito através do princípio da igualdade formal, que estabelece a igualdade entre produtores e não produtores (ou proprietários), demonstrando a permeabilidade desse efeito tanto na estrutura como na superestrutura jurídico-política e ideológica da formação social:

A superestrutura jurídico-política do Estado está relacionada com essa estrutura das relações de produção, isso se torna claro tão logo nos reportamos ao direito capitalista. A separação entre o produtor direto e os meios de produção reflete-se aí pela fixação institucionalizada dos agentes da produção enquanto sujeitos jurídicos, ou seja, indivíduos-pessoas políticos. Isso é verdade tanto para essa transação particular constituída pelo contrato de trabalho, a compra e a venda da força de trabalho, como para a relação de propriedade jurídica formal dos meios de produção ou as relações institucionalizadas públicas-política. (POULANTZAS, 2019, p. 128). Sob o ponto de vista da análise da ideologia, essa dissociação do sujeito da sua identificação de classe. Ou seja, a separação virtual do trabalhador da sua classe se dá pela incidência da ideologia jurídica e política, a qual decorre da instância ideológica. Conforme Poulantzas (2019), o lugar dominante que sustenta a ideologia jurídico-política na formação social capitalista é fator distintivo de seu funcionamento em relação às organizações pré- capitalistas. Vale lembrar que Poulantzas distingue uma ideologia geral de ideologias particulares (jurídica, religiosa, filosófica etc.) presentes na formação social. Dentro da ideologia geral, sempre haverá uma ideologia particular que ocupe o papel de dominante. A título de comparação, a ideologia jurídico-política ocupa, no MPC, o mesmo papel dominante que a ideologia religiosa ocupa no modo de produção feudal.

A dominância de uma ideologia particular ocorre na formação social quando esta cumpre com a função de viabilizar a exploração em determinado modo de produção, seja pela ocultação, pela dissimulação ou pela legitimação das relações sociais. No caso do feudalismo, por exemplo, é a ideologia religiosa que melhor cumpre essa função por ser capaz de justificar pelo divino a exploração no processo de produção e, assim, proporcionar àquela formação social a instabilidade necessária para o funcionamento daquele modo de produção. No caso da dominância da ideologia jurídica no MPC, cumpre o papel fundamental da ocultação das relações de exploração ou da natureza de classe na formação social. Em razão do efeito de isolamento que gera, é uma condição fundamental de existência e de funcionamento do modo de produção em uma FSC (POULANTZAS, 2019). No plano econômico, a incidência da

ideologia jurídica é condição de possibilidade da relação jurídica de propriedade e ordena assim as relações de trabalho tal qual devem ser no MPC. Da mesma forma que “o sagrado e a religião enlaçam, a ideologia jurídico-política, em primeiro movimento, separa, desenlaça, no sentido em que nos diz Marx que ela ‘liberta’ os ‘agentes’ dos laços naturais” (POULANTZAS, 2019, p. 216-217).

As razões levantadas por Poulantzas (2019) para a dominância da região jurídico- política da ideologia dominante estão relacionadas diretamente com a dominação da classe hegemônica. Essa dominância se explica, em síntese, pelo papel que o autor atribui à ideologia no MPC: o de ocultação, dissimulação. A individualização dos agentes-suportes das relações de produção são um efeito estrutural do direito capitalista sobre a infraestrutura econômica. Esse efeito de individualização atua como fator de dissimulação das relações de dependência pessoal e de exploração – prestação de sobretrabalho ao proprietário dos meios de produção – portanto, afasta os agentes das condições materiais de sua existência. Ao destacar esta característica fundamental e original das relações de produção capitalista, Poulantzas (2019) refere que esse efeito de isolamento tem sobre a luta econômica de classe fundamental importância, na medida em que

Consiste no fato de que as estruturas jurídicas e ideológicas [...], instauram, em seu nível os agentes de produção distribuídos em classes sociais, na qualidade de ‘sujeitos’ jurídicos e ideológicos, tem como efeito, sobre a luta econômica de classe, a ocultação, particularmente para os agentes, de suas relações como relações de classe (POULANTZAS, 2019, p. 130).

Esse efeito, se considerado no campo da luta política de classes, têm como resultado a “concorrência” entre o “indivíduo”, o “sujeito livre” e os demais “indivíduos” de sua classe, obscurecendo assim os antagonismos de classe, os ressignificando e reduzindo suas relações à forma ideológica da “concorrência”. A concorrência, nessa lógica, é a simplificação dissimulada das relações de classe e consiste na ideia de que os agentes da produção estão em concorrência. Os trabalhadores concorrem entre si, da mesma forma que o fazem proprietários dos meios da produção. Assim, as relações sociais econômicas “são efetivamente vividas pelos suportes através de um fracionamento e uma atomização específica”. (POULANTZAS, 2019, p. 130). Esse isolamento dos agentes na produção transborda às demais estruturas da formação social, portanto, como um efeito privilegiado da ideologia particular (jurídica) do Estado capitalista. Na prática da sociedade capitalista, esse igualitarismo formal – o princípio de igualdade jurídica – constitui no plano imaginário dos trabalhadores, uma mistificação sobre o processo de produção e a sua relação com aquele processo. Nesse sentido, Boito Jr. (2007, p. 28) sintetiza muito bem a questão:

direito capitalista que, criando a igualdade formal, cria, no trabalhador, a ilusão de que a relação de exploração do seu trabalho e uma relação contratual entre partes livres e iguais. Sob o efeito dessa ilusão ideológica, o trabalhador pode conceber a sua presença na empresa e o trabalho que lá realiza como resultado de uma opção sua, e a exploração da força de trabalho pode se reproduzir de modo mais ou menos pacifico. A necessidade material pode obrigar o trabalhador a alugar a sua força de trabalho ao capitalista, mas é a ideologia jurídica burguesa que o convence de que esta e uma prática legítima ou natural. A autoridade patronal é legitimada, então, por esse efeito ideológico especifico.

Esse efeito de isolamento, portanto, constitui a própria base da dissimulação aos agentes, das estruturas do econômico e das bases gerais da exploração capitalista. Por meio dele, a ideologia jurídico-política, ao ocultar aos agentes da produção, na sua luta econômica, as relações de classe, possibilita ao Estado cumprir com a sua função global: a de constituir o fator de coesão às relações estabelecidas no âmbito da produção e de ocultar a luta política de classe, agora resumida à luta econômica e à participação política pela via democrático- representativa. É nesse sentido que, sobretudo em relação à luta política, o discurso político e a representação dos interesses de classe assumem particular importância na cena política, já que ali a dissimulação e ocultamento se apresenta, de forma exemplar, como mecanismo de mediação entre a realidade material e as condições imaginárias e os sentidos produzidos sobre a vida.

Dessa forma, é na constituição do imaginário sobre o Estado que a ideologia aparece no discurso político com especial relevância no momento da reforma das instituições. Como já mencionamos antes e discutiremos com maior detalhes no capítulo 3 deste trabalho, a ideologia de Estado surte especial efeito sobre as classes populares e pode ser decisiva para a conquista de apoio à hegemonia de determinada fração da classe dominante em uma conjuntura de instabilidade hegemônica.

A especificidade da estrutura do Estado capitalista decorre da forma que se articulam a estrutura jurídica (a ideologia jurídica) e o burocratismo. Vimos que a estrutura jurídica estabelece, de forma coesa com a função global do Estado, inicialmente, o fator-efeito de individualização-isolamento dos agentes da produção, para em seguida refletir o fator-efeito de representação da unidade do Estado. Este último resulta de diversas práticas, decorrentes da igualdade formal, estabelecido pelo direito aos agentes da produção, que, ao isolá-los no processo de trabalho, resulta em uma falta de unidade política na formação social. Essa unidade, que poderia ocorrer por meio da identificação e organização de classe, é superada pela noção de que o Estado atende a interesses universais. A estrutura jurídica, portanto, se desdobra de maneira a representar, no interior dos aparelhos do Estado, a encarnação dos interesses gerais, e não apenas de uma classe: nesse sentido, surge o termo “estrutura jurídico-

política”, pois é a partir do direito capitalista que o Estado aparece no imaginário como uma representação da totalidade nacional.

O efeito propriamente político da ideologia jurídica é consolidado por meio do burocratismo, que constitui, de forma geral, segundo a concepção clássica do marxismo, uma forma de organização interna dos aparelhos de Estado específicos do capitalismo, que se consolida pelo direto capitalista: o princípio da impessoalidade dos agentes públicos e seus atos, a publicidade desses atos, a legalidade, a separação entre bens públicos e privados etc. O direito capitalista, dessa forma, iguala os agentes que ocupam posições desiguais na produção, representando um caráter formalmente igualitário à produção. A burocracia, pelo mesmo princípio igualitário, recruta seus agentes em todas as classes sociais, atribuindo, dessa forma, um caráter aparentemente universalista do Estado (POULANTZAS, 2019). Esse processo de universalização é impensável nas formas pré-capitalistas. Na análise de Boito Jr. (2007, p. 26- 7, negrito nosso) sobre essas formas de Estado, o politólogo destaca que

Nada disso ocorria nos Estados pré-capitalistas. No escravismo e no feudalismo, o direito tratava desigualmente os desiguais, originando as ordens e os estamentos, e

as instituições do Estado traziam marcado nas suas normas, na sua composição e no seu funcionamento seu caráter de classe – basta lembrar a organização dos

Estados Gerais do absolutismo francês, que excluía os servos e separava, uns dos outros, os representantes do clero, da nobreza e dos plebeus.

Essa dinâmica dá lugar ao que Poulantzas (2019) chama de efeito de representação da unidade, encarnado pela figura ideológica do povo nação. O povo nação se constitui, segundo essa representação, por uma comunidade de indivíduos separados no processo de produção e unificados simbolicamente em uma única nação. “O Estado representa a unidade de um

isolamento que é em grande parte – pois o ideológico desempenha aí um papel – seu próprio efeito” (POULANTZAS, 2019, p. 134, grifo no original). A estrutura jurídico-política

acumula as funções, portanto, de isolar e representar a unidade, concretizada na forma do povo nação. A ideia de Estado-nação está vinculada, assim, à especificidade dessa forma burocrática que assume o funcionamento dos aparelhos de Estado em razão da estrutura jurídico–política. O burocratismo é definido por Poulantzas (2019) como um modo de organização e de funcionamento do aparelho de Estado que coexiste no caso do Estado capitalista à categoria burocrática específica. Mais tarde, em sua obra de 1978, O Estado, o

poder, o socialismo, o autor grego define o burocratismo como uma manifestação do impacto

político da ideologia burguesa sobre o Estado.

O burocratismo, portanto, pode ser entendido pelas formas que assume na organização dos funcionários do Estado, mas não se resume a essas formas. Por meio da ideologia

dominante na estrutura ideológica do Estado, o burocratismo encarna o igualitarismo e o universalismo em suas práticas como formas essenciais de representação da totalidade social, que constituem, de forma específica, o efeito de unidade na FSC.

O que nos importa ressaltar aqui, por fim, é que essa fusão ocorre pela constituição imaginária de povo nação a partir dos efeitos de isolamento e de unidade dos agentes sociais. A ideologia jurídico-política, nesse sentido, unifica os agentes-suportes pela ressignificação da sua situação de classe. É ao nível do discurso que esses sujeitos, agora “indivíduos” privados, são representados através do Estado nação, onde são unificados por meio de práticas igualitárias diante da comunidade nacional, como as de reconhecimento de direitos (sujeitos de direito), as de “livre” acesso e participação nos aparelhos do Estado – que estariam “abertos” a todas as classes sociais (POULANTZAS, 2019). Dessa forma, o papel político da ideologia do Estado capitalista, além de poder representar, justificar e organizar os interesses políticos dominantes, aqui compõe o efeito de unidade pela igualdade formal.

Este aspecto de unidade pelo direito é essencial para nossa análise do conceito ampliado da ideologia dominante, já que, quando analisada em nosso caso exemplar, o aspecto “povo nação” traz uma particularidade atípica no Estado capitalista: o reconhecimento constitucional da diferença38 pelo direito – que supõe uma reformulação discursiva acerca da ideologia particular do Estado (a ideologia jurídico-política).