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5 IDEOLOGIA DOMINANTE E DISCURSO POLÍTICO NA CONJUNTURA

5.2 OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA ANÁLISE DO DISCURSO

5.2.1 A Análise do Discurso pecheutiana

5.2.1.1 Formação social, formações ideológicas, e formações discursivas

A exemplo do que foi pensado por Althusser e Poulantzas, Pêcheux parte da premissa de que existem instâncias (econômica, ideológica e política) que, na formação social capitalista, são determinadas pela instância do econômico. Essa instância aparece como uma das condições (não econômicas) da reprodução-transformação da base econômica (PÊCHUEX & FUCHS, 2014).

Essa reprodução-transformação das relações de produção funciona de modo particular por meio da interpelação do sujeito como sujeito ideológico, isto é, como uma posição

80 Recordamos que os conceitos apresentados não são apenas formulações únicas de Pêcheux, mas também são conceitos teóricos desenvolvidos por outros autores que o seguiram.

ideológica determinada, ainda que se apresente como uma posição natural, resultado de sua livre vontade:

A modalidade particular do funcionamento da instância ideológica quanto à reprodução das relações de produção consiste no que se convencionou chamar interpelação, ou o assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico, de tal modo que cada um seja conduzido, sem se dar conta, e tendo a impressão de estar exercendo sua livre vontade, a ocupar o seu lugar em uma ou outra das duas classes sociais antagonistas do modo de produção (ou naquela categoria, camada ou fração de classe ligada a uma delas). (PÊCHUEX & FUCHS, 2014, p. 162, grifo no original)

O autor compreende que essa reprodução se dá pelas práticas organizadas pelos aparelhos ideológicos do Estado, mas, diferentemente do modo como Althusser expressou a ideia da reprodução inicialmente, para Pêcheux, essas relações que se estabelecem podem levar também à transformação social. Em Vêrités de la Palice, de 1975, o autor reforça que os aparelhos ideológicos do Estado não são puros instrumentos da classe dominante e, sendo assim, não se limitam unicamente (e necessariamente) à reprodução das relações existentes: “se, no seu interior, trava-se ininterruptamente a luta de classe, ‘esses AIE constituem simultânea e contraditoriamente o lugar e as condições ideológicas da transformação das relações de produção’ (PÊCHEUX, 1988, p. 129 apud INDURSKI, 1992, p. 7).

Sendo assim, "o aspecto ideológico para a transformação das relações de produção reside na luta para impor, no interior do complexo dos AIE, novas relações de desigualdade- subordinação" (PÊCHEUX, 1988, p. 131, apud INDURSKY, 1992, p. 7). Dessa forma, completa Indursky (1992, p. 7-8),

a atividade discursiva, que é uma das manifestações da ideologia, exercida pelo sujeito interpelado ideologicamente e, por conseguinte, assujeitado, trava-se no interior dos AIE e reflete inevitavelmente a luta de classes, trazendo intimamente ligada à sua produção as marcas de formação/reprodução/transformação das condições em que foi produzida.

Nesse ponto específico, a Análise do Discurso se aproxima da crítica que Poulantzas dirigiu a Althusser sobre a ausência de uma referência e efeitos da luta de classes no interior do aparelho do Estado. Isso reitera nosso entendimento de que a prática ideológica organizada pelo Estado, como o discurso político, não é, necessariamente, um fator de reprodução, instrumento de uma classe específica, mas pode também apresentar nuances e complexidades em seu funcionamento que só são compreendidas a partir de seu exame na conjuntura de uma formação social.

Esse aspecto tem a ver com o fato de que, conforme compreendemos, a ideologia de Estado pode ser vista como um processo relacional, ligado ao exame da conjuntura do conflito

de classes. É nesse sentido também que a conjuntura ideológica intervém dentro do aparelho do Estado, a partir de posições políticas e ideológicas que, para Pêcheux (PÊCHEUX & FUCHS, 2014, p. 163, grifo no original):

que não constituem a maneira de ser dos indivíduos, mas que se organizam em formações que mantêm entre si relações de antagonismo, de aliança ou de dominação. Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento (este aspecto da luta nos aparelhos) suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento; desse modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem 'individuais' nem 'universais' mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras81.

A noção de formações ideológicas se apresenta como um elemento de análise fundamental para o discurso, já que é a partir dela que identificamos a posição do sujeito após ser interpelado pelas ideologias e sua posição dentro também das formações discursivas. Essas formações discursivas, para a AD, se apresentam como elementos constitutivos das formações ideológicas.

A formação discursiva (FD) é o lugar de discursivização das formações ideológicas, onde uma rede discursos forma matrizes para novos discursos. Os sujeitos, que são interpelados pela ideologia, podem responder à FD de diferentes formas: i) se identificando plenamente; se identificando parcialmente, aceitando alguns saberes e rejeitando outros; não se identificando; ou mesmo deixando de se identificar com uma FD e passando a se identificar com outra FD. A partir desses procedimentos os sujeitos se identificam com um conjunto de saberes e de discursos que demarcam os sentidos em certa direção. Consequentemente, o sentido de uma manifestação discursiva é determinado pela sua relação com uma FD particular e sua evidência diante dos sujeitos. Assim, uma mesma sequência discursiva, inserida em diferentes FDs, pode produzir sentidos totalmente distintos. Esse fato se explica porque o sentido se constitui a partir das relações que diferentes expressões mantêm entre si no interior de cada FD. Essas relações de sentido entre expressões são determinadas pela sua origem ideológica, ou seja, pela posição que ocupam e seu sentido em determinada formação ideológica (PÊCHEUX& FUCHS, 2014). Os sujeitos, dessa maneira, se inscrevem em uma rede de saberes, discursos e sentidos de uma FD (ou mais de uma) para poder dizer, para produzir discursos.

81 Sobre as expressões “atitudes” e “representações” o autor deixa claro que, devem ser pensadas a partir de um sentido marxista, compreendidas, portanto, como práticas sociais.

Esse aspecto é relevante para pensarmos o discurso político na medida em que, quem enuncia, parte da FD a qual se identifica e se relaciona com sujeitos (a quem ele dirige o discurso), por vezes, que se identificam com uma FD distinta. É o caso do discurso de Estado direcionado a ambas as classes fundamentais, que pode apresentar a mesma manifestação discursiva e sentidos totalmente diversos para cada uma dessas classes. Esse aspecto será novamente retomado em nosso exame do discurso no caso de estudo.

Em termos teóricos e analíticos, o funcionamento das formações ideológicas e das formações discursivas coexistem dentro da instância ideológica, que assumem, em determinado modo de produção, configuração distinta. Esse modo de funcionamento é também trabalhado em Poulantzas para pensar a teoria regional do político na formação social capitalista. Ambos, com fundamento na releitura de Marx por Althusser, compreendem que as instâncias se apresentam em diferentes configurações a depender do modo de produção.

De forma muito sintética, seguindo essa perspectiva, vale recordar que, na formação social capitalista, segundo as formulações desses autores, é a região do econômico que ocupa papel determinante (se sobrepõe) sobre as demais, conforme esquema 1:

Figura 1 – Esquema de configuração das regiões no FSC

Fonte: esquema elaborado pelo autor

Além disso, no MPC, é a ideologia jurídico-política que exerce a dominância sobre as demais sub-regiões ideológicas, conforme o esquema 2:

Figura 2 – Esquema de configuração da região ideológica no MPC

Fonte: elaborado pelo autor

Podemos aqui traçar um paralelo com o exemplo que Pêcheux refere para explicar o modo pelo qual ocorre a interpelação através das formações ideológicas na formação social. Segundo o autor,

a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos”: esta lei constitutiva da Ideologia nunca “se realiza em geral", mas sempre através de um conjunto complexo determinado de formações ideológicas que desempenham no interior deste conjunto, em cada fase histórica da luta de classes, um papel necessariamente desigual na reprodução e na transformação das relações de produção, e isto, em razão de suas características "regionais" (o Direito, a Moral, o Conhecimento, Deus etc....) e, ao mesmo tempo, de suas características de classe. (PÊCHEUX e FUCHS, 2014, p.164, grifo no original)

No trecho acima, o que o autor denomina como “caraterísticas regionais (o Direito, a Moral, o Conhecimento, Deus etc....)” se apresenta na formulação poulantziana como sub- regiões da ideologia dominante. Pêcheux segue sua formulação com o exemplo da formação

ideológica religiosa, que, no modo de produção feudal, assume papel de ideologia dominante.

Segundo ele, a formação ideológica religiosa

realiza “a interpelação dos indivíduos em sujeitos” através do Aparelho Ideológico do Estado religioso “especializado” nas relações de Deus com os homens, sujeitos de Deus, na forma específica das cerimônias (ofícios, batismos, casamentos e enterros etc...) que, sob a figura da religião, intervém, em realidade, nas relações jurídicas e na produção econômica, portanto, no próprio interior das relações de produções feudais. (PÊCHUEX & FUCHS, 2014, p. 165)

Nesse exemplo, ao referir-se à formação ideológica (FI) religiosa e seu funcionamento, visualizamos também o funcionamento idêntico do que Poulantzas

denominou de “sub-região da ideologia religiosa”. Nesse sentido, para ambos, o esquema 3 poderia representar essas formações ideológicas (FIs) no modo de produção feudal (MPF):

Figura 3 – Esquema de formações ideológicas no MPF

Fonte: esquema elaborado pelo autor

No modo de produção feudal, a partir dessa perspectiva compartilhada, verificamos que é a ideologia religiosa, ou a FI religiosa, que se apresenta como dominante no interior da instância ideológica. Compreendemos que essas semelhanças têm sua razão no fato de que os autores compartilham os fundamentos da escola althusseriana. Não queremos com isso, entretanto, dizer que são conceitos sinônimos. O que buscamos com essa comparação é uma forma de melhor expor a noção de formação ideológica e compreendê-la, assim como os demais conceitos da AD, em sua relação ao nosso registro teórico acerca do Estado.

Pois, nesse sentido, quando analisamos o discurso como prática de ideologia de Estado, analisamos as formações ideológicas que se relacionam com a formação discursiva sobre o político. Tendo compreendido inicialmente as relações que constituem a formação social, as formações ideológicas e as formações discursivas, é necessário também compreender como se dá a materialidade dessas relações por meio dos discursos e das ideologias.