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4 A APRESENTAÇÃO DO CASO EXEMPLAR: REFORMA E

4.2 BOLÍVIA REBELDE: O PROCESSO DE MUDANÇA (2000-2016)

4.3.3 O cenário eleitoral (2005)

Ao fim do ciclo de mobilizações antineoliberais, em 2005, ocorreram as eleições nacionais, que encaminhavam Evo Morales à presidência. Ainda assim, à época, não havia indícios de que Evo Morales vencesse o pleito e rompesse com o padrão eleitoral boliviano, se elegendo com mais da metade dos votos.

Na conjuntura eleitoral, havia três alternativas mais consolidadas: a primeira, articulada em razão de interesses externos ao país, com a candidatura de Jorge Quiroga, pelo PODEMOS; outra, também uma alternativa neoliberal, mas com uma articulação interna entre poder econômico e poder político que foi predominante nos anos noventa, o Unidad Nacional

(UN), com o candidato Samuel Doria Medina; e uma terceira, conquistada por meio de

articulações com diferentes setores populares e uma rede de alianças partidárias com um projeto popular, o MAS, com o candidato Evo Morales. Essa configuração eleitoral apontava para o MAS como uma nova alternativa eleitoral para o país, sobretudo porque o partido parecia compreender e incluir as mais variadas demandas das classes populares, a partir de um aglutinamento de matrizes de pensamento marxista, indigenista e nacional popular. A partir desse poder de abrangência, o discurso masista parecia contemplar cada setor aliado no campo popular, unificado a partir da ideia geral de “refundar o país”. As alternativas postas no cenário eleitoral indicavam que a população deveria escolher entre o que já conheciam, por um lado, representado pelo Unidad Nacional (UM) e o PODEMOS e, por outro, poderiam apostar no que se apresentava como uma ruptura com antigo sistema de partidos, representado pelo MAS. O PODEMOS absorveu parte dos quadros do ADN, MIR e MNR e, com isso passou a ocupar o espaço eleitoral a que pertenciam essas siglas. Ainda que o MAS se apresentasse na cena político-eleitoral como uma nova força em ascensão, também é verdade que o partido estava respaldado pela sua base e composição partidária popular, que, pela sua natureza de “instrumento político”, encorpava organizações populares tradicionais, já consolidadas antes da formação do partido. As alternativas mencionadas apresentavam, portanto, horizontes distintos: de um lado, estavam os projetos burgueses predeterminados (desde fora) pelos interesses norte-americanos ou (internamente) pelo capital monopólico nacional e, de outro, um projeto nacional popular. Assim, o projeto masista se apresentava como um processo orgânico de

movilización de sectores campesinos y de trabajadores urbanos, a través de sus formas sindicales, movimientos y partido que están articulando y produciendo la posibilidad de una rearticulación de la forma primordial, a través de procesos de reapropiación de sus recursos naturales y del aparato estatal que permita convertir

el excedente económico en mayor capacidad de democratización política. (TAPIA, 2007, p. 126).

Ainda que o conteúdo das propostas apontasse para uma clara oposição entre políticas neoliberais e interesses nacionais, na campanha política, o UN e o PODEMOS buscavam mitigar essas diferenças e se aproximar de um discurso mais nacional (BALLIVIÁN, 2006). Ambos apresentavam seus candidatos como uma forma de renovação política, e, no campo econômico, argumentavam em favor da nacionalização dos hidrocarbonetos. Enquanto o MAS propunha a nacionalização da indústria do setor hidrocarbonífero e a administração total pelo Estado, os partidos de oposição buscaram se alinhar a esse discurso, em um grau moderado, com posições pouco objetivas e sem comprometimentos. Sobre esse mesmo tema, o UN propunha uma “nacionalização progressiva” e o PODEMOS propôs “nacionalizar os benefícios do gás” (BOLÍVIA, 2006). O que diferenciava o MAS era a proposta da constituinte e a refundação do país em um Estado Plurinacional.

Mesmo com essas nuances discursivas e propositivas, o resultado do processo eleitoral foi a eleição de Evo Morales com 53,7 % dos votos, enquanto Jorge Quiroga, em segundo lugar, alcançou apenas 28,5 %. Ainda que com isso os partidos tradicionais, como ADN e MIR, tenham quase desaparecido enquanto força eleitoral, outros, como PODEMOS e UN73, surgiram como forma de revitalização das antigas formas de organização da burguesia tradicional. Mais relevante que isso, foi o fato de que os setores da direita incrementaram seu poder de organização política por meio dos comitês cívicos departamentais e organizações patronais em oposição ao governo eleito, o que é significante em um país de notória fragilidade do Estado como é a Bolívia (SADER, 2017; GUTIERREZ & LORINI, 2007; CUNHA FILHO, 2010).

Em 2009, houve novas eleições nacionais e Evo Morales foi reeleito para um segundo mandato (primeiro após a aprovação da nova Constituição) com 64,22% dos votos e o MAS alcançou a maioria nas duas casas da Assembleia Legislativa Nacional74. Em 2010, ocorreram as eleições para os governadores departamentais, em que houve um crescimento do partido tanto nas prefeituras (alcades) quanto nas assembleias legislativas locais75 (PANNAIN, 2018). Nas eleições nacionais seguintes, em 2014, mesmo desgastado em relação às parcelas

73 PODEMOS conquistou 28,5% dos votos e UN 7,8% dos votos (CNE, 2005).

74 Resultados eleitorais das eleições gerais, em 2009 (OEP, 2009). Disponível em: https://www.oep.org.bo/procesos-electorales-y-consultas/elecciones-generales/elecciones-generales-2009/ 75 POLITICAL DATABASE OF AMERICA. http://pdba.georgetown.edu/Elecdata/Bolivia/gub10.html

indígenas do país, Evo Morales venceu com significativo apoio eleitoral, se reelegendo com 61% dos votos.

4.4 SÍNTESE DO CAPÍTULO

Neste capítulo, abordamos a reforma do Estado na Bolívia com o objetivo de compreendê-la através da análise da reconfiguração do poder e seus reflexos na cena política,

locus privilegiado do discurso político e da expressão da ideologia de Estado. A partir desse

exame, foi possível:

i) compreender a reforma do Estado, a partir da sua dimensão abstrato-formal, como um processo de profunda transformação relacional-institucional da formação social, circunscrito nos limites estabelecidos pela reconfiguração do poder político, econômico e ideológico, em uma conjuntura concreta, e que resulta em uma variação da forma como se expressa o Estado e o modo de produção;

ii) identificar especificidades da reforma do Estado no caso boliviano a partir de modificações fundamentais no modelo de Estado capitalista na Bolívia, que alcançaram: a) o poder político, pela sua nova configuração a partir de frações das classes subalternas, que resultou na formação de um bloco político em que estavam ausentes as frações burguesas; b) o conjunto das instituições do Estado, pela mudança na forma de expressão do regime de político, de uma democracia republicana e representativa a uma democracia plurinacional semi- representativa; c) e especialmente, a ideologia, através da modificação na ideologia jurídico-política do Estado – que implicou a mitigação do princípio constitucional da igualdade formal;

iii) explicar o processo histórico a partir da emergência de setores populares que geram efeitos: primeiramente, na composição política das instituições do Estado, pois deslocam a antiga classe dominante e restringem seu poder aos níveis departamentais; que também modificam a própria configuração do bloco no poder, trazendo à disputa de hegemonia setores populares com poder político, mas ainda sem o domínio do poder econômico, que permaneceu com a antiga classe dominante no período inicial do processo. Quanto a essa reconfiguração, portanto, verificamos que as forças sociais que ocuparam os aparelhos do Estado são de frações subalternas que transformaram sua força

social em política, contudo, não tiveram condições objetivas de transformar essa força em dominância econômica no período estudado. Entendemos que, no caso boliviano, essas forças sociais em ascensão eram compostas, no início do processo (2006-2008), pelos núcleos dirigentes campesino-indígena e sindical e, posteriormente, configuraram a prevalência dos setores campesino (cocaleiro) e sindicais, em detrimento do núcleo indígena e de suas demandas plurinacionais.

iv) Compreender que, a partir dessas modificações, a cena política boliviana se apresenta como um campo de luta ideológica, através das práticas (discursivas) que atuaram sobre esse processo e que compunham organicamente as classes subalternas e dominantes que efetivaram a reforma do Estado.

A análise deste capítulo reforça nossa premissa de que essa reconfiguração do poder – o processo de reforma de Estado – constitui um objeto privilegiado para o exame da ideologia de Estado. Isso porque existe a necessidade de adequação do discurso político sobre o Estado capitalista, uma vez que a ideologia que permeia esse discurso deve ser capaz de articular tanto as contradições entre o capital e o trabalho como também aquelas relacionadas ao conflito entre formações sociais capitalistas e pré-capitalistas, ou seja, o discurso político deve conciliar e ressignificar a materialidade histórica multicivilizatória da formação social boliviana com as novas formas de expressão do regime de Estado.

5 IDEOLOGIA DOMINANTE E DISCURSO POLÍTICO NA CONJUNTURA