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A espiritualidade como processos de mudança e transformação do sujeito

CAPÍTULO 4 A ESPIRITUALIDADE NA PERSPECTIVA TRANSPESSOAL: UMA

4.1 Espiritualidade: quatro acontecimentos, um consenso

4.1.2 A espiritualidade como processos de mudança e transformação do sujeito

Nesse segundo uso, diferentemente da religião, a espiritualidade não aparece como sistema de dogmas e crenças a ser internalizadas e em que nada modifica o modo de vida do sujeito. Neste caso, o fenômeno espiritual desponta como

experiências fundamentais capazes de transformar a vida de uma pessoa.

Se quisermos ficar com as explicações mais estritas desse uso, continua Tart (2012), é importante entendermos que na espiritualidade encontram-se aquelas experiências capazes por modificar a vida de um indivíduo; e, por isso, são chamadas pelo pesquisador de experiências fundamentais, uma vez que transformam o sujeito não a nível externo (na forma de vestir, nos sapatos que usa ou deixa de usar, no que come ou deixa de comer, nas músicas que escuta ou deixa de escutar, no que bebe ou deixa de beber etc.), mas principalmente no modo como este vive sua vida por inteiro.

Por tal motivo,

A espiritualidade é uma dimensão natural e de grande importância da psique humana e a busca espiritual é um desafio humano legítimo e totalmente justificado. No entanto, é preciso enfatizar que isso se aplica à espiritualidade genuína, com base na experiência pessoal, e não significa um apoio a ideologias e dogmas de religiões organizadas (GROF; GROF, 2010, p. 25).

Diferentemente da religião, o espiritual aponta, dentro desse segundo uso, para experiências pessoais que proporcionam à vida de um indivíduo, e à existência em geral, uma qualidade numinosa (GROF; GROF, 1994, 2010). Por qualidade numinosa entende-se a capacidade de perceber e se relacionar com o mundo e a realidade a partir de outros referenciais que não o comum, o normal, o mesmo. É uma experiência capaz de modificar a visão de sujeito e o sujeito por inteiro.

Dentro dos referenciais da transpessoal, o numinoso é, portanto, um termo que traduz a qualidade da percepção e da vida que se tornou espiritual. Nesse âmbito, a espiritualidade é aquela experiência que tem o potencial de tornar a visão de um

sujeito numinosa, ou seja, o olhar sobre si mesmo e sobre o mundo passa a ser radicalmente diferente, extraordinário, sagrado.

Não casualmente, “A espiritualidade é algo que caracteriza o relacionamento entre a pessoa e o universo e não requer, necessariamente, uma estrutura formal, um ritual coletivo ou a meditação feita por um sacerdote” (GROF; GROF, 1994, p. 47).

De modo ainda mais simplificado, a espiritualidade é entendida aqui como aquelas experiências capazes de transformar a relação de um sujeito com ele mesmo e com o mundo em que vive. O esforço, portanto, não está em mudar o mundo, nem os outros. Pelo contrário, o trabalho exige de nós uma mudança na forma como nos relacionamos com tudo isso. Destarte, o que vai caracterizar uma educação espiritual não é o fato de um indivíduo aprender esse ou aquele assunto, mas se ele vai ser capaz de, no decorrer do processo educativo, alterar a natureza da relação que estabelece com o universo: ele mesmo, o outro e a vida como um todo. Se a natureza dessas relações continua sendo a mesma, é sinal de que não adentrou, ainda, no território da espiritualidade. Pois, completa Tart (2012), o fenômeno espiritual faz com que um indivíduo já não seja o mesmo homem ou mulher de antes, pois trans-formou sua forma de ser e estar no mundo.

Segundo Grof e Grof (2010), essas experiências podem ser mobilizadas em duas grandes categorias: o divino imanente e o divino transcendente. Na primeira categoria de experimentação estão as experiências em que o sagrado manifesta-se no mundo diário. O efeito desse processo é que as coisas conhecidas ganham um brilho e uma percepção diferentes. Assim, começamos a olhar e perceber as pessoas, a natureza, os vizinhos, a família, os animais com um novo olhar; mais ainda, as fronteiras que separam eu e outro passam a ser percebidas como ilusórias e sem concretude.

Usando a analogia com a televisão, essa experiência poderia ser relacionada a uma situação na qual uma imagem em preto e branco de repente ganhasse cores muito vívidas. Como na experiência do divino imanente, muitas das características da imagem da televisão continuam as mesmas, mas são radicalmente intensificadas de uma nova dimensão (GROF; GROF, 2010, p. 26).

Já a segunda experiência, o divino transcendente, não está de modo algum em oposição à primeira; apenas apresenta graus diferentes de percepção e vivência. Nesse nível, por exemplo, as experiências se revelam na medida em que aquilo que

antes não era possível ser visto dá-se a ver. As visões de divindades, heróis lendários, visão de Deus etc.,“voltando à analogia da televisão, seria como descobrir que existem canais diferentes daqueles que costumamos assistir” (GROF; GROF, 2010, p. 26).

O que podemos perceber é que a experiência espiritual pode ser vivenciada por meio de duas ordens inseparáveis e interdependentes; e por isso dizemos que na transpessoal o que há é um jogo constante entre uma transcendência na imanência e imanência em transcendência. De tal modo que adentrar o espiritual não significa deixar de viver nossa vida e ir para algum reino sobre-humano ou sobrenatural.

Poderíamos nos perguntar então:

E o que essas transformações significam para nossa vida? A famosa história do aluno zen e de seu mestre dá conta maravilhosamente bem da resposta. O discípulo perguntou ao mestre: “o que o senhor fazia antes de alcançar a iluminação?” O mestre respondeu: “cortava madeira e carregava água”. “O que o senhor passou a fazer depois de alcançar a iluminação?” O mestre respondeu: “Cortei madeira e carreguei água” (GROF, GROF, 1994, p. 225).

Por isso, para além dessas categorias de experimentações, o que nos interessa aqui são os efeitos que uma experiência de educação espiritual é capaz de trazer para a vida de um indivíduo. Pois, as experiências espirituais “podem provocar uma verdadeira influência transformadora benéfica nos seus receptores e em suas vidas” (GROF; GROF, 1994, p. 48).

Pouco importa, na perspectiva transpessoal, se ela será de ordem imanente ou transcendente, pois na espiritualidade o imanente torna-se transcendente e o transcendente imanente; mas o que interessa é o fato de que esse tipo de experiência altera a vida do sujeito em suas bases. Como pudemos averiguar na citação acima, são experiências que modificam a forma pela qual vivemos a vida e não o papel que exercemos nesta.

O imanente-transcendente, nessa via, são apenas expressões diferentes de uma mesma face. A espiritualidade não está no que se faz, mas em como fazemos; é para nosso modo de ação que ela se volta. Assim, não importa que tipo de identidade tenhamos (professores, médicos, pintores, cozinheiros, lavadeiras etc.). Não diz respeito ao tipo de pessoa que somos (homens cis gênero, mulheres trans gêneros, negros ou brancos etc.); não refere-se ao alimento que comemos (se comemos carne,

peixe, verdura ou legumes); e, ainda, que estilo de roupas vestimos (em vestir bata ou sunga) ou o corte de cabelo que seguimos (raspado, longo, trançado, corrido).

O fenômeno espiritual está diretamente relacionado com a seguinte questão: sendo pintores, de que forma nos relacionamos com a vida? Comendo legumes, como nos relacionamos com o mundo? Com o cabelo raspado ou longo, como agimos com os outros e cuidamos da vida? Se em nada disso alteramos nosso modo de ação, a espiritualidade nos permanecerá inacessível. Pois, o termo espiritual apresenta uma conotação de trans-formação, de um processo a ser trilhado na intenção de encaminhar o indivíduo a novas formas de experienciar a si mesmo, a modos mais amplos em que as maneiras usuais de se ver são modificadas em suas bases.

4.1.3 A espiritualidade acontecendo como aquisição de valores supremos e altruístas

Sobre o terceiro uso, pudemos averiguar que é muito comum encontrarmos a espiritualidade sendo utilizada dentro da perspectiva transpessoal como sinônimo da aquisição de atitudes e comportamentos impregnados de valores altruístas. Quando usado nesse sentido, observa-se que adentrar nessa experiência significa adquirir, por uma espontaneidade e naturalidade próprias da mudança de visão do sujeito, características de bondade, compaixão, desapego, generosidade, amor, paciência etc.

Nas palavras do cientista Tart (2012, p. 57),

O que eu quero dizer quando emprego palavras como “espírito” e “espiritual”? Não sei se elas podem ser definidas com a mesma precisão das coisas materiais (por exemplo, geladeira), mas por “espiritual” refiro-me a uma esfera de valores, experiências, realidades e intuições[...].

Nesses termos, o espiritual remete não somente às experiências do não religioso e de mudanças na forma de ver e viver a si mesmo e à vida,

[...] como também a todos os estados de consciência e a todas as funções e atividades humanas que têm como denominador comum a posse de valores superiores aos comuns – valores éticos, estéticos, heróicos, humanitários e altruístas (ASSAGIOLI, 1992 apud GROF; GROF, 1992, p. 51).

De modo bem concreto e prático, a espiritualidade, por ser essa experiência de transformação radical com o modo que se vive e não com o que se exerce, provoca consequências de muitas ordens.

Podem aliviar várias formas de desordens emocionais e psicossomáticas, assim como dificuldades com relacionamentos interpessoais. Podem também reduzir tendências agressivas, valorizar a própria imagem, aumentar a tolerância para com os outros e elevar sua qualidade de vida (GROF; GROF, 1994, p. 48).

Além disso, trazem efeitos na redução da separatividade com as outras pessoas, com a natureza e o mundo. Mas o mais importante ainda é que essa aquisição de valores supremos e altruístas “[...] são consequências naturais das experiências transpessoais; a pessoa as aceita e as adota voluntariamente, sem a imposição de injunções externas, preceitos, ordens ou ameaças de punição” (GROF; GROF, 1994, p. 48).

É com base no supracitado que encontramos outro aspecto distintivo das modificações próprias da experiência espiritual em um processo formativo. Elas não se baseiam em leis ou ordens externas ao indivíduo. O sujeito não precisa de regras ou normas externas que garantam o bem viver ou o equilíbrio social. Nem mesmo de normas que digam que ele precisa ser mais amoroso ou paciente. Esses valores ocorrem de modo natural e não por uma força que vem de fora.

O indivíduo coloca-se, ele mesmo, em trabalho de perceber o valor de certas qualidades e atitudes. Não por uma lei que diz que precisa ser assim, mas porque ele acredita que assim é o melhor para o mundo, para vida, para o universo.

Por tal motivo, o processo de formação e desenvolvimento espiritual

É uma longa e árdua jornada, uma aventura por estranhas terras plenas de surpresas, de alegrias e beleza, de dificuldades e até de perigos. Envolve o despertar de potencialidades até então adormecidas[...] (ASSAGIOLI, 1992 apud GROF; GROF, 1992, p. 51).

Nessa via, as experiências espirituais são ativadoras de valores e potenciais adormecidos (éticos, estéticos, humanitários), que levam um indivíduo, no trabalho de mudança consigo, a adquirir o que Wilber (2006) denomina de atitudes especiais como bondade, amabilidade, sabedoria etc. E esse é um uso muito comum.