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Capítulo 2 – Da temporalidade à facticidade do ser-aí

2.2 A estrutura do cuidado como ser do ser-aí

O ser-aí, enquanto ente que se projeta em possibilidades, já foi lançado em um mundo de significatividade em que, de início e na maior parte das vezes, já se perdeu de si em meio aos entes. Esta sentença sintetiza a existencialidade, facticidade e queda. Estes existenciais, co-originários e co-fundantes, do ser-aí constituem-se em uma unidade, como ser do ser-aí. A estrutura que sustenta esta unidade do ser do ser-aí é a estrutura fundamental do cuidado9 (Sorge).

O conceito ontológico de cuidado não deve ser confundido com o modo que, corriqueiramente, fazemos uso do mesmo termo. Usamos cotidianamente o termo cuidado para designar o ato de cuidar de alguém que pode estar doente ou ferido, ou quando oferecemos um ombro amigo ao outro, quando acolhemos o outro em determinada situação ou contexto, quando nos dispomos a escutar o que o outro fala e também uma sessão terapêutica pode ser considerada um ato de cuidado. Mas esse cuidado supracitado é uma ação cuidadora e trata-se, assim, de um sentido ôntico do cuidado. O ato de cuidar do outro, no sentido comum do termo, muito antes já se refere a um modo do caráter de ser-com os outros do ser-no-mundo. Em outro sentido de cuidado utilizado no dia-a-dia dizemos que cuidamos dos negócios, cuidamos dos afazeres de casa, cuidamos das plantas ou mesmo cuidamos para que dê tudo certo. Aqui nos referimos à lida cotidiana com os entes e, portanto, são modos do caráter de ser-junto aos entes intramundanos do ser-no-mundo. Na medida em que cuidar dos outros ou para os outros e cuidar das coisas são, respectivamente, modos do ser-com e do ser junto a... e, portanto, pertencentes à facticidade do ser-no-mundo, são modos

derivados da estrutura do cuidado, isto é, cuidado enquanto ser do ser-aí. Ser-no-mundo em sua essência é cuidado.

O §41 de Ser e tempo é dedicado à explanação do cuidado que se desvelou como ser do ser-aí. O cuidado se desvelou como a estrutura que sustenta a unidade dos caracteres ontológicos fundamentais do ser-aí, isto é, existencialidade, facticidade e queda. Portanto, trata-se de um conceito ontológico e mais originário que o ato de cuidar. Mas como se caracteriza ontológico-existencialmente a estrutura do cuidado?

A designação ontológica do cuidado foi apreendida como: pré-ser-se já-em-um- mundo junto-aos-entes. O que isso significa? Enquanto ser-no-mundo, o ser-aí é o ente que a cada vez está em jogo seu próprio ser, isto é, o ser que está em jogo tem o caráter de ser sempre meu. “Em seu ser, o ser-aí já sempre se conjugou com uma possibilidade de si mesmo” (Ser e tempo, §41: 256). O ser-aí se compreende a partir das possibilidades nas quais já está inserido e das possibilidades que pode vir-a-ser. Enquanto ente que se projeta em possibilidades de si mesmo, o ser-aí é um poder-ser e este se caracteriza como uma destinação em que o ser-aí é como é, de um modo mais apropriado ou não das possibilidades às quais já está inserido. Se relacionar com seu próprio ser de modo mais próprio ou impróprio significa uma espécie de gradação do modo como este ente, entregue à responsabilidade de ser si mesmo, está mais próximo de si mesmo e decide resolutamente sobre as possibilidades abertas. É uma possibilidade do ser-aí ser para o seu mais próprio poder-ser, se antecipar para seu próprio poder-ser. Ontologicamente, isso significa que o ser-aí, em seu ser, já é adiante de si mesmo. A determinação fundamental da existencialidade na estrutura do cuidado é designada como pré-ser-se a si mesmo do ser-aí.

Entretanto, para Heidegger, há um nexo entre existencialidade e facticidade. O ser-aí não existe simplesmente como algo que paira solto no ar, mas, a cada vez, o existir é fático. Isso quer dizer que a existência sempre acontece em um mundo, de tal modo que o ser-no-mundo também se caracteriza como pré-ser-se (Sich-vorweg). O ser- aí, entregue à responsabilidade de ser si mesmo, adiante de si, já foi lançado em um mundo de significância. Somente na medida em que já foi lançado, o ser-aí pode existir no mundo. A facticidade do ser-no-mundo é abarcada na estrutura do cuidado pela expressão já em um mundo. Neste momento, mais plenamente apreendido, o nexo entre existencialidade e facticidade pode ser lido como: pré-ser-se-já-em-um-mundo.

Podemos cuidar dos outros e das coisas porque, essencialmente, o ser-no-mundo pertence ao cuidado. O existir fático do ser-aí já está sempre lançado e empenhado no

mundo das ocupações na lida com os entes. Ser junto aos entes intramundanos caracteriza a queda (Verfallen) constituinte do ser-aí. Pertence à medianidade cotidiana da queda o fenômeno da fuga de si10 mesmo do ser-aí, que, no empenho com os entes intramundanos, se esquece e perde-se de si mesmo ao se aviar nos entes. Na lida cotidiana com os entes e esquecido de si mesmo na queda, o ser-aí se conforta na familiaridade acolhedora do caráter público e impessoal do a gente (Man). Na queda, quem decide não sou eu ou você, mas é a gente quem decide. A partir do caráter de ser junto a... evidencia-se a ocupação (Besorgen) enquanto modo do cuidado. O ser junto aos entes intramundanos da ocupação está, portanto, essencialmente articulado com o pré-ser-se a si mesmo já em um mundo.

De modo sintético, Heidegger conclui que:

a totalidade existencial de toda estrutura ontológica do ser-aí deve ser, pois, apreendida formalmente na seguinte estrutura: o ser do ser-aí diz pré-ser-se a si mesmo por já ser em (no mundo) como ser junto a (aos entes que vem ao encontro dentro do mundo) (Ser e tempo, §41: 257).

O cuidado é a estrutura primordial do ser-aí. É essa estrutura que determina ontologicamente o ser do ser-aí, na medida em que sustenta a unidade entre existencialidade, facticidade e queda. Com a caracterização do cuidado, no entanto, ainda não atingimos o solo suficiente para a compreensão do ser-no-mundo enquanto transcendência para, posteriormente, compreender o papel das afinações na analítica do ser-aí, enquanto o que nos lança em meio ao ente em sua totalidade e sustenta essa abertura. Este solo adequado deve ser alcançado com a temporalidade enquanto sentido do ser do ser-aí.

O que significa sentido para Heidegger? Antes de falarmos da temporalidade como sentido do ser do ser-aí é importante introduzirmos brevemente, mesmo que ainda em caráter provisório, uma compreensão sobre o que significa sentido. No dia-a-dia dizemos que algo tem sentido. Quando dizemos isso sobre uma frase ou sobre uma coisa queremos dizer que alcançamos algum entendimento sobre aquilo a que nos direcionamos. Entretanto, o que é compreendido não é o sentido em si, mas o ser do ente mesmo que se mostrou. Algo “tem sentido” quando temos acesso a esse

10 A fuga de si mesmo, característica da queda do ser-aí, será aprofundada no Capítulo 3, quando

determinado ente, em outras palavras, quando temos uma compreensão do ser desse ente.

O sentido não é um ente, mas é o que primeiramente torna o ente acessível. Isso quer dizer que a nossa compreensão do ser do ente se dá porque este se tornou acessível no sentido. O sentido é a condição de possibilidade para que algo possa ser compreendido. Sentido deve ser entendido aqui como o “contexto no qual se sustenta a possibilidade de compreensão de alguma coisa, sem que ele mesmo seja explicitado ou, tematicamente, visualizado” (Ser e tempo, §65: 117), em outras palavras, sentido é um existencial do ser-aí e é aquilo que sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Para Heidegger, “a questão do sentido do cuidado é, pois, a seguinte: o que possibilita a totalidade articulada do todo estrutural do cuidado, na unidade de sua articulação desdobrada?” (Ser e tempo, §65: 118).

A partir da breve conceituação apresentada aqui podemos dizer de modo antecipatório que a temporalidade, como sentido do ser do ser-aí, quer dizer: a temporalidade é a condição de possibilidade que sustenta que o ser-aí, enquanto cuidado, possa compreender a si mesmo e aos outros.