• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 4 – Uma aproximação das afinações em geral e a prática clínica

4.2 Uma possível contribuição para a prática clínica a partir das afinações em geral

4.2.2 As afinações e o ser-com os outros

Como ponto de partida para pensar modos possíveis de contribuições das afinações na prática clínica, é importante este breve esclarecimento sobre como o ser- com está permeado pelas afinações.

Dissemos que todo e qualquer encontro é um acontecimento ôntico. Sendo assim, qual relação poderíamos estabelecer com as afinações? Ora, para Heidegger, a afinação (Stimmung) é o correspondente ôntico e, portanto, mais conhecido e mais cotidiano do existencial da disposição (Befindlichkeit), constituinte da abertura do ser-aí (Ser e tempo, §29). Como um modo ôntico-existenciário da disposição, a afinação, sempre e a cada vez, afina o ser-aí cotidianamente. O ser-aí do homem está sempre afinado de um modo ou outro, isto é, está inserido em uma determinada afinação.

Na medida em que todo ser-aí está sempre afinado de um modo ou de outro, o encontro entre terapeuta e paciente também está sempre perpassado por afinações. E, por tratar-se de um conceito existenciário, isto é, ôntico, a afinação nos deve ser acessível cotidianamente. Sendo assim, o modo como terapeuta e paciente estarão um com o outro é dado pelas afinações e devemos ter algum tipo de acesso a este modo. A afinação nos dá o como de nosso Dasein compartilhado (GA 29/30: 80), isto é, ela sempre diz respeito, ao mesmo tempo, ao ser-com os outros. O caráter de ser-com os outros está sempre transpassado por afinações “que não são manifestações paralelas, mas justamente o que determina desde o princípio a convivência” (GA 29/30: 80).

Heidegger exemplifica para caracterizar as afinações:

uma tristeza abate um homem com o qual convivemos. [...] O homem que se tornou triste se fecha, se torna inacessível, sem com isso ser rude para conosco. Somente isso se dá: ele se torna inacessível (GA 29/30: 79).

Nesse exemplo, Heidegger quer dizer que, afinado na tristeza ou em outra afinação, o que fazemos e no que nos inserimos continua o mesmo de antes, entretanto, o que muda, de acordo com as afinações, é o como, no qual estamos. Não somente na tristeza, mas este modo como estamos uns com os outros é sempre determinado pelas afinações. Portanto, o caráter de convivência possível de ser estabelecido depende sempre das afinações em jogo na relação.

Na relação com o outro a partir do ser-com estamos a todo o momento afinados de um modo ou de outro. Isto significa que a abertura que nós mesmos somos já se abriu determinada por uma afinação. Mesmo quando nos perpassa uma morosidade em que temos a sensação de não estarmos afinados de modo algum, ainda assim, uma afinação nos transpassa. “É evidente que quando não estou afinado nem de modo alegre nem triste, nem de alguma outra maneira acentuada, também predomina uma afinaçãox” (GA 89: 118).

Para Heidegger, o ser-aí “já está sempre afinado desde o seu fundamento. O que acontece sempre é apenas uma mudança das afinações” (GA 29/30: 82). Afinados, compreendemos e nos comportamos com os entes e com os outros. É a partir das afinações que podemos, no mundo, ser atingidos pelo ser dos entes de um modo ou de outro. “As tonalidades afetivas [afinações] não são nenhum ente” (GA 29/30: 79), mas ser atingidos pelo ente significa também que podemos ser afinados a partir do que nos atinge. “Todo novo ser afinado é sempre apenas uma mudança da afinação que já está sempre presente em todo comportamento” (GA 89: 217).

Não escolhemos voluntariamente como nos afinamos, mas a cada vez já somos tomados por uma determinada afinação. Esta, como que salta por sobre nós e nos arrasta para uma determinada situação. Somos acometidos por uma afinação que determina um novo modo como nos encontramos no mundo com os entes e com os outros. Essa mudança nunca é determinada pela própria vontade, não se pode despertar ou criar voluntariamente uma afinação. As “afinações são sempre apenas superadas e transformadas uma vez mais por outras afinações” (NI: 91-2).

Na medida em que temos acesso às coisas sempre de um modo afinado e que essa coisa que nos atinge pode nos afinar de um novo modo, então, pode-se concluir que “as tonalidades afetivas [afinações], que as coisas provocam em nós, são por nós transportadas em seguida até as próprias coisas” (GA 29/30: 103). A coisa em si não é dotada de uma afinação, isto é, quando nos entediamos lendo um livro, o livro mesmo não tem uma afinação de tédio e tampouco nos “transmite” um tédio, ao contrário, significa que o livro desperta em nós uma afinação de tédio:

Nós falamos sobre um ‘campo alegre’ e não temos em vista que o próprio campo está alegre: sobre um ‘quarto sereno’, sobre uma ‘paisagem melancólica’. Mas a paisagem não é ela mesma melancólica, ela apenas nos afina deste modo, ela causa em nós essa tonalidade afetiva (GA 29/30: 103).

Uma paisagem pode nos afinar melancolicamente e, “em seguida”, já nos relacionamos com tal paisagem a partir dessa afinação melancólica. Compreender a partir de uma afinação e ser afinado pelo que compreende é algo que acontece simultaneamente e a todo o momento. Tocamos e somos tocados pelo que vem ao encontro. “Quando estou triste as coisas me interpelam de modo diferente ou de modo algum” (GA 89: 217), mas isso não significa que não posso ser acossado por um outro tipo de afinação. “Em virtude da tonalidade afetiva [afinação], nós somos expostos ao

ser, que nos oprime ou nos eleva” (GA 38: 232). Por exemplo, quando estamos na presença de uma pessoa alegre e expansiva, a tendência é que sejamos contagiados pelo seu bom humor e isso nos afine também na alegria. Do mesmo modo que, mesmo em um momento “tranquilo”, tendemos a ficar irritados quando alguém nos fecha e nos provoca insistentemente no trânsito. Por esse mesmo motivo, em um contexto de terapia de grupo, devemos evitar formar grupos com três ou mais pessoas deprimidas, pois a tendência é que o grupo inteiro se deprima ou não tenha fluidez nos encontros. Enfim, “o fato de as afinações poderem se deteriorar e transformar diz somente que o ser-aí já está sempre afinado” (Ser e tempo, §29: 188).

A mudança ou transformação de uma afinação não acontece em decorrência de uma ação volitiva. Não vivenciamos uma afinação e a apreendemos a partir do nosso querer. “A tonalidade afetiva [afinação] não é qualquer vivência que apenas acompanha a nossa restante atitude anímica” (GA 38: 210). Para Heidegger, a opinião corriqueira que ganha expressão no interior da psicologia é que as

tonalidades afetivas [afinações] são sentimentos. O sentir é, ao lado do pensar e do querer, a terceira classe de vivências. Esta classificação das vivências é estabelecida sob o embasamento da concepção do homem como um ser vivo racional” (GA 29/30: 79).

Compreender as afinações a partir da concepção tradicional de homem como animal racional, distorce seu sentido originário. No entendimento das afinações como um acréscimo às faculdades da alma, pensar e querer na vivência, “ignora-se a essência interna da tonalidade afetiva [afinação] como também seu poder” (GA 38: 203).

As afinações não são vivências que emergem a cada momento, mas somente o ser-aí do homem pode vivenciar alguma coisa, porque antes já se abriu em uma afinação. O abrir-se transpassado por uma afinação determina o como das vivências. Não podemos “vivencialmente” nos “apropriar” de nossa afinação a partir de um querer. As afinações são mais originarias que qualquer querer ou vontade, pois as afinações estão aquém dos desejos. Somente queremos alguma coisa, porque antes estamos afinados de tal modo que abre para esse querer. O ser-aí

se abre para si mesmo antes de qualquer conhecimento e vontade e para além de seus alcances de abertura. Ademais, nunca nos assenhoramos da afinação sem afinação, mas sempre a partir de uma afinação contrária (Ser e tempo, §29: 190).

Portanto, assenhorar-se do modo como estamos afinados não é um ato volitivo. Quando “acessamos” uma afinação, significa que já estamos em outra afinação. A partir destas descrições das características da afinação e o ser-com os outros, buscaremos em seguida, explicitar uma compreensão das afinações na convivência estabelecida na prática clínica a partir da abertura.