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Capítulo 4 – Uma aproximação das afinações em geral e a prática clínica

4.2 Uma possível contribuição para a prática clínica a partir das afinações em geral

4.2.4 As afinações e a percepção do outro

De que modo podem as afinações contribuir para a percepção do outro? No caso da prática clínica, que relação existe entre as afinações e a percepção que o terapeuta pode ter de seu paciente? Do modo como pretendemos pensar a clínica, a percepção do outro não está fundamentada na empatia ou na projeção, tal como em algumas teorias psicológicas entendem. Para Heidegger, em Seminários de Zollikon:

a teoria psicológica usual segundo a qual se percebe o outro pela ‘empatia’, pela ‘projeção’ de si mesmo no outro, não significa nada, porque a representação de uma empatia e de uma projeção sempre já pressupõe o ser-com o outro e o ser-com do outro comigo. Ambos pressupõem o ter compreendido o outro como pessoa, senão eu estaria projetando para dentro do vazio (GA 89: 184).

Na prática clínica e em qualquer outro relacionamento, a percepção do outro está fundada na compreensão. Somente percebo o outro porque já possuo uma compreensão do outro enquanto a pessoa que é. Neste perceber o outro, o terapeuta já compreendeu um modo de ser do paciente que se revelou, e este é uma manifestação de como o paciente foi aberto e as coisas aparecem para ele. As “afinações são o como de acordo com o qual as coisas são para alguém de um modo ou de outro” (GA 29/30: 81). Portanto, a percepção que o terapeuta tem do paciente depende, em última instancia, do modo como o paciente foi afinado. Compreendendo como a afinação atravessou e afinou o outro, compreende-se um determinante de seu modo de ser. “A afinação revela ‘como alguém está e se torna’. É nesse ‘como alguém está que a afinação conduz o ser

em seu ‘aí’” (Ser e tempo, §29: 188). Conduzir o ser em seu aí significa determinar como a manifestação do ser pode atingir o ser-aí. E como esta afinação determinante da abertura do paciente deve estar acessível ao terapeuta?

Na prática clínica, o conteúdo do relato do paciente não é o que primeiramente “importa” ao terapeuta, mas antes, o terapeuta está atento para a busca do sentido presente neste relato para o paciente. O sentido do relatado não necessariamente está claro para o paciente, e este é a condição que sustenta a compreensibilidade do relato. É a partir do sentido que “algo se torna compreensível como algo” (Ser e tempo, §32: 208).

E como poderíamos articular a compreensão, a fala do relato e o sentido? Para Heidegger, “a conexão da fala com a compreensão e sua compreensibilidade torna-se clara a partir de uma possibilidade existencial inerente à própria fala, qual seja a escuta. [...] A escuta é constitutiva da fala” (Ser e tempo, §34: 222). Aqui, a fala (Rede) deve ser entendida como o existencial constitutivo da abertura essencial do ser-aí e, portanto, como condição de possibilidade do ato vocal de falar, o dizer. E a percepção acústica do que é dito é possibilitado pela escuta. Na escuta, temos acesso à fala do ente, isto é, ao ser do ente, enquanto o que se mostra deste ente.

Escutar é o estar aberto existencial do ser-aí enquanto ser-com os outros. [...] o escutar constitui até mesmo a abertura primordial e própria para o seu mais próprio poder-ser. O ser-aí escuta porque compreende (Ser e tempo, §34: 222).

Na medida em que ser-no-mundo significa estar em uma compreensão articulada junto aos outros, na escuta o ser-aí está inserido na e respondendo à coexistência e a si mesmo. No escutar recíproco, se forma e se elabora o ser-com. Escutar é estar na abertura para o outro e para o próprio poder-ser. A partir da compreensão sempre afinada, a abertura do ser-aí possibilita “escutar, por assim dizer, o ser dos entes que antes já se abriram” (Ser e tempo, §29: 194). Podemos ser atingidos pelo ente, pois no calar (Schweigen), co-originário à escuta, se aquietam os ruídos do falatório e torna-se possível escutar, ser atingido pelo que se mostra.

Uma vez que escutamos porque compreendemos, e a compreensão é sempre afinada, a escuta deve ser determinada pelo modo como nos encontramos afinados. No encontro que acontece na prática clínica, a escuta do terapeuta, que elabora essa relação, é uma escuta compreensiva do sentido. A escuta terapêutica parte sempre de uma afinação para escutar o sentido do relato.

Na escuta,

a coisa fala a mim. Se compreendermos a linguagem do dizer no sentido de se deixar mostrar como algo, então perceber é sempre linguagem e ao mesmo tempo dizer palavrasxi (GA 89: 215). Se levarmos em conta que o relato do paciente está perpassado e tonalizado, do início ao fim por uma afinação, temos acesso mais claramente ao seu sentido, se compreendermos como está afinado.

Uma afinação é um jeito, não apenas uma forma ou padrão modal, mas um jeito no sentido de uma melodia, que não paira sobre a assim chamada subsistência própria do homem, mas que fornece para este o tom, ou seja, que afina e determina o modo e o como de seu ser (GA 29/30: 81).

A afinação determina a melodia a qual o paciente vibra. É o tom que colore e abre a perspectiva na qual ele enxerga o mundo. As possibilidades de ser do paciente são sempre abertas a partir do seu mundo e, portanto, a partir do modo como está afinado. Em outras palavras, se poder-ser é determinado pelo jeito como o paciente está no mundo, configurando uma espécie de atmosfera, na qual está inserido e transpassado por seu tom. Essa atmosfera tingida pela afinação é o referencial de partida do relato do paciente.

Compreender a fala presente no relato do paciente a partir do referencial que a determina, isto é, de como ele está afinado, significa se aproximar do sentido que tal fala pode na e para a existência do paciente. O sentido se manifesta no relato, mas nem sempre está desvelado para o relator.

Poderíamos dizer que a escuta terapêutica se mostra como uma escuta atenta, pois no calar, “articula tão originariamente a compreensibilidade do ser-aí que dele provém o verdadeiro pode ouvir e a convivência transparente” (Ser e tempo, §34: 224). Revela-se como uma escuta que parte de uma afinação (do terapeuta) “em direção” a uma outra afinação (do paciente) e, pode assim, se aproximar do sentido presente no relato. Pode-se, assim, compreender o modo de ser do paciente que está sendo manifesto em sua fala.

O relato do paciente está desde sempre tingido pela afinação que inaugurou a abertura de mundo do paciente, mas será que esse é o único modo que as afinações atravessam uma sessão terapêutica? Onde mais as afinações se fazem determinantes no fenômeno que se mostra na clínica a partir do modo de ser do paciente?