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CAPÍTULO 2 – ETNOMATEMÁTICACOMO PROPOSTADE INTERVENÇÃO

2.1 A Etnomatemática e seus percursos

Como apresentado no capítulo anterior, a concepção de educação aqui assumida reconhece-a como um processo espontâneo de socialização realizado no interior de um grupo social e cultural e desenvolvido pelo compartilhamento de saberes, comportamentos e práticas, reconstruídos de geração em geração. Considera-a um processo intencional, realizado no ambiente escolar, pela transmissão formal de conhecimentos acumulados por uma cultura.

Nessa perspectiva, procuramos discutir o modo como a seleção desses conhecimentos, tidos como de caráter universal, tem sido feita pela escola: produz-se um currículo descontextualizado, distante de seu papel simbólico, sem diálogo com os saberes prévios dos alunos, a revelar um poder homogeneizante dessa instituição.

Fica evidente que a escola tem utilizado pré-julgamentos no processo de formação de seus alunos, quando, na verdade, sendo essa instituição dotada de hegemonia discursiva sobre aqueles, caberia a ela mesma, escola, descontruir tais visões:

A aprendizagem matemática ao longo dos anos permaneceu com muitos mitos e preconceitos, e há necessidade de fundamentar uma ruptura dos paradigmas nas posturas didáticas tradicionais. Nesse sentido, a matemática foi caracterizada como matéria destinada a indivíduos com pendores especiais. Isso levou muitos alunos a reprovação nas escolas e a desistência do estudo, repudiando a aprendizagem matemática como um estudo de difícil compreensão e sem entender a sua aplicabilidade e importância. Existem crenças na aprendizagem matemática que ficam arraigadas e que podem ser produtoras de erro. (MACHADO, 1987, p. 85)

É necessário, dessa maneira, romper com o ensino tradicional e derrubar mitos, desconstruindo visões pré-fabricadas acerca da matemática enquanto disciplina curricular. Tal necessidade, entretanto, não é nova, já tendo sido apontada pelo Ministério da Educação, desde 1997, pelo menos, quando da publicação dos conhecidos

Parâmetros curriculares nacionais (BRASIL, 1997, p. 25):

Desse modo, um currículo de Matemática deve procurar contribuir, de um lado, para a valorização da pluralidade sociocultural, impedindo o processo de submissão no confronto

com outras culturas; de outro, criar condições para que o aluno transcenda um modo de vida restrito a um determinado espaço social e se torne ativo na transformação de seu ambiente.

A orientação do Ministério da Educação, há quase 20 anos, tem sido para a construção de um currículo que dialogue com os conhecimentos prévios do aluno e seja relevante, de seu ponto de vista sociocultural. Não por menos: o aluno é a razão de existência da escola, protagonista do processo educativo, como afirmou anteriormente Domite (2004). Para que ocorra a aprendizagem, sua relevância para o aprendiz é de extrema importância. E, para tanto, é necessário romper também com essa visão unidimensional e unidirecional de sociedade. Todas estas questões aqui expostas estão também presentes nas orientações do órgão máximo da educação brasileira, pelo menos desde 1997:

O ensino de Matemática costuma provocar duas sensações contraditórias, tanto por parte de quem ensina, como por parte de quem aprende: de um lado, a constatação de que se trata de uma área de conhecimento importante; de outro, a insatisfação diante dos resultados negativos obtidos com muita frequência em relação à sua aprendizagem. A constatação da sua importância apoia-se no fato de que a Matemática desempenha papel decisivo, pois permite resolver problemas da vida cotidiana, tem muitas aplicações no mundo do trabalho e funciona como instrumento essencial para a construção de conhecimentos em outras áreas curriculares.

Do mesmo modo, interfere fortemente na formação de capacidades intelectuais, na estruturação do pensamento e na agilização do raciocínio dedutivo do aluno. A insatisfação revela que há problemas a serem enfrentados, tais como a necessidade de reverter um ensino centrado em procedimentos mecânicos, desprovidos de significados para o aluno. Há urgência em reformular objetivos, rever conteúdos e buscar metodologias compatíveis com a formação que hoje a sociedade reclama. (BRASIL, 1997, p. 15)

Há pelo menos três décadas também, alguns educadores matemáticos passaram a buscar uma compreensão desta disciplina ligada à vivência social do ser humano. Estava ali nascendo entre os matemáticos e os educadores matemáticos um movimento que considera a matemática como uma produção cultural. Tal proposta denomina-se Etnomatemática.

E, dessa perspectiva, entendemos a Etnomatemática como um campo muito amplo, que abarca diversas dimensões, como aqui afirmamos. Dito isso, salientamos que nosso entendimento está alinhado com a certeza de que

a etnomatemática não consiste nas ideias matemáticas de outras culturas, nem é a representação dessas ideias pela matemática. Esses constructos podem ser parte da etnomatemática, mas não a sua essência. A etnomatemática é uma tentativa de descrever e entender as formas pelas quais ideias, chamadas pelos etnomatemáticos de matemáticas, são compreendidas, articuladas e utilizadas por pessoas que não compartilham da mesma concepção de ‘matemática’. Ela tenta descrever o mundo matemático na perspectiva do outro. (BARTON, 2006, p. 55) A Etnomatemática pretende, em se tratando dos aspectos relativos ao ensino- aprendizagem, fazer emergir no professor-educador modos de fazer com que seus alunos reflitam, raciocinem, meçam, contem e aprendam a concluir. E correlacionem tais procedimentos com a busca pelo entendimento de como a cultura se desenvolve e como potencializa as questões de aprendizagem. Assim, o foco desta abordagem tem sido a legitimação dos saberes adquiridos pelos educandos ao longo do processo de construção de suas experiências, em seu meio sociocultural, ao estudar possibilidades para operar com as aprendizagens que ocorrem tanto no ambiente escolar quanto fora dele (DOMITE, 2003b).

Essa aliança dos elementos culturais e históricos com a matemática pode propiciar, na formação dos estudantes, uma mudança, com o objetivo de preparar cidadãos críticos e conscientes de suas raízes. Concordamos com Powell e Temple (2006, p. 274), ao dizer que,

além de compreender a matemática acadêmica, a qual, conforme Moses e Cobb (2001) argumentam, na sociedade de hoje é essencial à cidadania engajada, os alunos também têm de ter um entendimento crítico e analítico da história. A história é importante à identidade dos alunos. No entanto, a história memorizada sem entendimento é simplesmente informação comparável a recursos existentes sem que se tenha acesso a eles. A Etnomatemática, como linha de pesquisa da educação matemática, investiga, dentre outras coisas, as raízes culturais das ideias matemáticas, a partir da maneira como elas se dão em diferentes grupos socioculturais e também nos profissionais. Em outras palavras, procurando de algum modo seguir os caminhos da Antropologia, a Etnomatemática busca identificar problemas matemáticos cujo ponto de partida seja o

conhecimento do “outro”, em termos de raciocínio e linguagem. Nessa busca, o pesquisador “etnomatemático” passa, primeiramente, por um processo de estranhamento e tensão, que pode ser mais ou menos proveitoso, a depender de quanto ele saberá lidar com a questão da diversidade cultural.

As implicações políticas e as bases epistemológicas e sociais da Etnomatemática têm sido discutidas e analisadas ao longo dos anos por diferentes pesquisadores de diferentes partes do mundo. De modo geral, tais pesquisadores reconhecem o conhecimento matemático, como anteriormente mencionado, como uma produção sociocultural, considerando que: (i) as pesquisas procuram estabelecer interações entre a matemática e outros campos de estudos, especialmente a antropologia, a história e a pedagogia; (ii) no tocante ao ensino e à aprendizagem, o professor deve, em seu trabalho, levar em conta o contexto sociocultural do grupo no processo de aprendizagem dessa disciplina (DOMITE, 2004, p.19).

É importante salientar que, de um lado, a Etnomatemática tem sido muito bem- sucedida ao tratar e desenvolver-se em educação matemática, como um modo de explicitar as relações matemáticas implícitas no saber-fazer, como uma atitude, um

método e, mesmo, um comportamento. Segundo Domite (2004, p. 17), por outro lado, a

Etnomatemática ainda é pouco reconhecida ou pouco aplicada como prática pedagógica. De modo interessante, os PCN de Matemática (BRASIL, 1997, p. 21) reconheceram, já naquela ocasião, que a Etnomatemática pode ser uma proposta interessante de ação em sala de aula, uma vez que não dissocia os saberes prévios dos alunos, nem ignora o contexto sociocultural do qual advêm. O documento, entretanto, também menciona o desconhecimento dessa proposta pela maioria dos professores e sua restrição aos muros da universidade:

Dentre os trabalhos que ganharam expressão nesta última década, destaca-se o Programa Etnomatemática, com suas propostas alternativas para a ação pedagógica. Tal programa contrapõe-se às orientações que desconsideram qualquer relacionamento mais íntimo da Matemática com aspectos socioculturais e políticos — o que a mantém intocável por fatores outros a não ser sua própria dinâmica interna. Do ponto de vista educacional, procura entender os processos de pensamento, os modos de explicar, de entender e de atuar na realidade, dentro do contexto cultural do próprio indivíduo. A Etnomatemática procura partir da realidade e chegar à ação pedagógica de maneira natural, mediante um enfoque cognitivo com forte fundamentação cultural. Todavia, tanto as propostas

curriculares como os inúmeros trabalhos desenvolvidos por grupos de pesquisa ligados a universidades e a outras instituições brasileiras são ainda bastante desconhecidos de parte considerável dos professores que, por sua vez, não têm uma clara visão dos problemas que motivaram as reformas. O que se observa é que ideias ricas e inovadoras não chegam a eles, ou são incorporadas superficialmente ou recebem interpretações inadequadas, sem provocar mudanças desejáveis.

No contexto acadêmico-científico, Costa (2012) analisou as produções em Etnomatemática em um periódico nacional de Educação Matemática (Bolema) ao longo de 25 anos, evidenciando que a produção de artigos que tratam da dimensão educacional da etnomatemática é modesta, diante da multiplicidade de contextos e significados produzidos por esse campo de pesquisa. Mais recentemente, a consulta ao caderno de resumos do CBEm5 aponta que a realidade observada por Costa (2012) tem-se modificado: no CBEm5 constituiu-se um grupo de trabalho: “GT 1 - Etnomatemática, práticas educativas e formação de professores”, com o objetivo de compreender a divulgação de pesquisas ou relatos de experiência que colocam em foco a dimensão educacional da etnomatemática, seja por meio de práticas educativas desenvolvidas em diferentes espaços socioculturais, seja por meio de práticas voltadas à formação de professores.

Independentemente do que aqui foi exposto, as observações de Domite (2003) nos parecem atuais, pois, mesmo havendo um crescimento do número de trabalhos que abordam a dimensão educacional da Etnomatemática, as práticas apresentadas ainda nos parecem pouco alinhadas com os pressupostos desse campo.